quinta-feira, 1 de novembro de 2012

À espera – Os filhos de Éris-4 (4 de 4)


O visor do capacete estava rachado, o que dificultava um pouco a visão de Swift. Sua cabeça latejava por conta do golpe dado por Mei. A engenheira olhava para fora da sala pelo vidro da porta externa. “Você pode me explicar o que está acontecendo?”, exigiu Swift. Mei fez sinal para que ele se calasse.

“Relatório da engenheira da Central Bernard Silva de Exploração e Refino. Matrícula nove-teta-barra-cinco. Mei, Lynn. Milésimo nongentésimo quinto dia, nove horas da manhã, fim da espera pela nave de carga Conquistadora de Midgard. A missão da Fu Lu Shou em Éris-4 acabou.”

Swift tentou se levantar para ver a nave, mas Mei o impediu. “Eles ainda vão demorar um pouco a aterrissar e sair da nave. Teremos tempo para conversar um pouco”, disse ela. A partir de um dispositivo remoto, a engenheira iniciou a reprodução de um vídeo. Era o corredor da ala das cabines. Homero fugia de algo que ainda estava distante. Desesperado, ele entrava em sua cabine. Alguns minutos depois, surgia uma pessoa no corredor. A pessoa ficava muito tempo parada na frente da porta e então entrava. Alguns minutos depois, saía e refazia seu caminho no corredor.

Não era possível ver o rosto do assassino nas imagens. A pessoa usava um traje espacial com a capacete. O mesmo traje que Swift e Mei estavam vestindo. “Por que está me mostrando isso, Mei? Isso é uma confissão? Vai me matar como fez com Homero?”, o encarregado-chefe tremia um pouco sob a mira da engenheira.

“Isso é ridículo, Swift”, a mulher suava por baixo de seu traje. “Se eu fosse uma assassina você não estaria vivo agora.” O encarregado-chefe se levantou com calma e Mei deu um passo para trás. Ficaram os dois se encarando. Cada um com a certeza de que o outro era o responsável pelas mortes de Homero e Natalya. “Por que você o matou, Swift? Ele era seu amigo.”

Do lado de fora, a Conquistadora de Midgard já estava no solo. Dentro da sala, ainda confuso pela pancada, o encarregado-chefe tentava se defender. “Não ouse me acusar, Mei. Suas mentiras podem enganar outras pessoas, mas só estávamos eu e você neste Berço da Discórdia. Os últimos filhos de Éris-4. Se eu não matei, só pode ter sido você.”

“Mas você matou, Swift. Matou seu amigo. Matou uma criança. E nem mesmo sente remorso por isso”, Mei chorava. O encarregado-chefe ordenou que ela provasse a acusação. E assim foi feito. Com as imagens no monitor, ela chamou atenção para um detalhe no traje do assassino. Um pequeno corte sobre a omoplata esquerda. Swift instintivamente olhou para o seu traje. E lá estava o rasgo. “Não é possível...”, ele deixou escapar.

Swift explicou que não se lembrava de nada. Não tinha memória alguma sobre a morte de Homero ou de Natalya. “Eu sei exatamente o que aconteceu”, disse Mei. “E a culpa toda é deste rasgo. De todos nós, você era o único que saía da capital, com seu veículo de exploração terrestre, para verificar o estado das demais bases do planeta. Acidentalmente, em algum momento, você rompeu seu traje.”

Ele não parava de passar a mão pelo rasgo, ainda que suas luvas limitassem o tato. “Por que eu não morri?”, Swift estava consternado. “Muito simples”, explicou a engenheira. “A Fu Lu Shou sempre afirmou que a atmosfera de Éris-4 era imprópria para humanos. E isso é verdade. Mas a atmosfera não é letal. Ela possui apenas uma série de gases que os humanos desconheciam. Nesses quase dois mil dias, eu tive bastante tempo para pesquisar tudo a respeito do planeta.”

Vendo a inutilidade de seu traje rasgado, Swift levantou o visor do seu capacete. “Isso é verdade. Me lembro de nas últimas vezes que eu estive do lado de fora senti meu rosto dormente depois de algum tempo. Algo diferente de tudo o que eu já havia sentido. Uma força, sabe? Agora tudo faz sentido.”

“Swift, eu sei que você é uma boa pessoa. E realmente acredito que você não se lembre do que fez. Ainda assim eu preciso que você continue imóvel enquanto os tripulantes da Conquistadora de Midgard estão chegando”, Mei trocou a arma de mão. “Você vai ser preso e eu prometo testemunhar a seu favor.”
O encarregado-chefe riu com o discurso da engenheira. “Você acha mesmo que haverá um julgamento, Mei? Nós seremos levados daqui para a Colônia Humana mais próxima, a 31. E lá assassinatos são condenados com execução imediata. Nem duvidaria se me matassem aqui mesmo.”

“O que você sugere?”, Mei insistiu. “Que eu simplesmente finja que está tudo bem? E se você começar a matar novamente?” Swift se irritou. “Eu não sou um assassino! Se o problema está na atmosfera deste planeta, nós saímos daqui e tudo acaba. Se você continuar apontando esta arma para mim até os tripulantes da Conquistadora de Midgard chegarem haverá sangue em suas mãos.”

Mei já sentia o sangue em suas mãos, mas sabia que aquela era a decisão correta. Ela olhou para o lado de fora e viu que os primeiros tripulantes já começavam a sair da nave. Começava a ficar mais tranquila, quando voltou-se novamente para o encarregado-chefe. Seu rosto parecia craquelado e, quanto mais sua boca abria, mais negra ficava. A engenheira sentiu-se sugada na direção de Swift, mas reparou que seu corpo não se movera. “Então foi assim que ele matou Homero e Natalya”, pensou Mei. “Ele literalmente sugou suas vidas.”

Temendo pelo pior, Mei atirou contra Swift, mas o disparo atingiu a parede. O encarregado-chefe jogou-se na direção dela. Os dois caíram no chão. Swift aproximava sua boca do corpo de Mei, enfraquecendo-a. Enquanto isso, a engenheira tateava o chão, em busca da arma, que havia caído. No exterior da base, os tripulantes da nave de carga nem imaginavam o que estava acontecendo.

De repente, um tiro iluminou toda a sala de monitoramento, fazendo com que a tripulação percebesse a movimentação estranha no local. De baixo do corpo do encarregado-chefe, Mei tentava erguer-se. Segurou-se na cadeira, ajoelhou e por fim levantou. Viu o corpo de Swift caído aos seus pés. O rosto morto aos poucos ia voltando ao normal.

Mei saiu da sala pela porta externa e viu os tripulantes da Conquistadora de Midgard correndo em sua direção. Um alívio correu por seu corpo ao lembrar que havia deixado uma câmera gravando com áudio tudo o que acontecia na sala de monitoramento. Seria o suficiente para inocentá-la da morte do encarregado-chefe. A engenheira permitiu-se sorrir, com as lágrimas rolando por seu rosto. Só então ela percebeu. Sua face dormente. De um jeito que jamais sentira. Exatamente como Swift descrevera. Tateando seu traje, ela percebeu um rasgo eu seu peito.

O sol amarelo azulado se punha no horizonte. Mei tirou seu capacete e sorriu para os tripulantes da Conquistadora de Midgard. “A espera terminou”, disse ela, sem, contudo, emitir qualquer som. Apontou sua arma para a têmpora direita e despediu-se de Éris-4, o Berço da Discórdia.

Nenhum comentário: