terça-feira, 20 de novembro de 2012

Os Azuis – Alvo (4 de 5)

O soldado Xavier encontrou a casa de Julia Flores vazia. Não havia nada fora do lugar, nenhum bem ou documento estava desaparecido, indicando que o lugar não havia sido saqueado. Poderia parecer apenas que a mulher havia saído para trabalhar, se não fossem quatro detalhes. A porta estava destrancada e nenhum soldado do principal esquadrão do governo deixaria sua casa desprotegida. O carro de Julia não estava na garagem, embora naquele dia Xavier tivesse se comprometido a buscá-la. Em um quarto, roupas e alguns brinquedos indicavam que uma criança havia passado um tempo naquela casa, mas Flores não tinha filho, sobrinho, primo ou qualquer outo parente que se encaixasse no perfil. E, por fim, uma imensa letra azul marcava a fachada da residência da soldado.

Incomodado com a ausência de evidências que pudessem levá-lo aos captores da parceira, Xavier bateu de porta em porta. Muitos vizinhos fingiram que não estavam em casa, mas uma senhora o atendeu com boa vontade. Disse que na noite anterior ouviu um movimento de carro, um veículo saindo em alta velocidade da casa de Flores após um pequeno grupo que ela não era capaz de identificar ter feito a pichação. Para Udo, aquelas informações bastavam. Sua parceira havia mesmo sido sequestrada pelo Exército Azul.

Longe dali, Julia Flores dirigia. Seu carro não era potente ou novo, mas já tinha provado algumas vezes ser capaz de aguentar uma longa viagem. Ela não sabia bem para onde ia, mas já imaginava que seus antigos companheiros soldados estivessem procurando por ela naquele momento, depois de verem a letra azul em sua porta.

No banco de trás, Nek dormia. Havia passado a madrugada muito agitado. Estava aprendendo as primeiras palavras e já sabia falar “mamãe”. A estrutura vocal dos eebs não permitiam que ele falasse com muita clareza, os fonemas eram um pouco diferentes, mas Julia sabia bem o que o pequeno azul queria dizer.

Flores não havia planejado bem sua fuga. Quando viu que algum dos vizinhos a havia denunciado, instintivamente entrou em casa, pegou Nek, algumas comidas prontas e água. O essencial para que pudesse dirigir sem parar até que fosse necessário abastecer. E este momento estava chegando. Não sabia para onde estava indo, mas calculava mentalmente as melhores rotas para sair do país. Sabia que esta não era a solução definitiva. Muitas das nações ao redor eram aliadas do governo de Tomás Souza e a denunciariam, como o Paraguai, a Bolívia e a Venezuela. Já outros, como Argentina, Uruguai e Colômbia, não ofereciam risco a ela ou ao menino eeb, mas também não seria possível atravessar a fronteira sem chamar a atenção dos militares. Sem rumo, por enquanto, ela apenas dirigia.

Quase doze horas após sair de casa, a soldado era vencida pelo cansaço. Por duas vezes acabou saindo da pista, mas sem acidente. Nek permanecia dormindo no banco de trás, coberto por uma manta preta. Fazia frio naquela época do ano e Julia não tivera tempo de pegar um casaco apropriado para ele.

Uma sirene. Uma motocicleta a seguia, indicando que era necessário parar no acostamento da estrada. “Me encontraram”, pensou Flores. Ela julgava ter uma boa vantagem sobre seus antigos parceiros, mas parecia que estava enganada. “Ainda posso escapar. Sou mais forte e tenho melhor treinamento.” O plano era simples. Ela encostava, deixava o homem se aproximar, o matava e seguia viagem fora das estradas principais. Quando o homem da motocicleta encostou do lado do carro, porém, ela se surpreendeu. Era apenas um policial, não um dos soldados. Ela estava a salvo ainda. Por ser extremamente letal, nunca mandariam um policial comum para detê-la.

“A senhora pode sair do carro?”, perguntou imperativamente o policial. “Está com pressa?” Julia negou com a cabeça. Apresentou sua carteira de habilitação para conduzir e os documentos do carro. “A senhora não mora muito peto daqui. Pode me explicar o que está fazendo na região?” Flores não respondeu. Continuava parada, analisando se seria necessário matar o homem.

O policial pediu que ela se afastasse do veículo. Julia obedeceu. Ele puxou a chave da ignição e abriu o porta-malas. Não encontrou nada. Em seguida, olhou o motor. Pelos movimentos, Flores deduzia que o homem acreditava que havia algo escondido no carro. Com pequenos passos, ela seguia o policial, garantindo que ele ficasse sempre ao alcance de um chute, para que a soldado pudesse eliminá-lo antes que a arma fosse sacada.

Agachado no chão, o policial já estava convencido de que não havia qualquer problema com o veículo. Iria apenas solicitar que a mulher o seguisse até o posto policial mais próximo para checar a veracidade dos documentos. Foi então que ele percebeu. Um tecido cobrindo algo no banco detrás do carro. Talvez fossem armas e ninguém que não trabalhasse para o governo tinha permissão para andar armado. O homem colocou a mão na maçaneta da porta do carro, mas sentiu a mão da mulher fechando sua traqueia.

O homem foi jogado ao chão e levou a mão ao coldre para atirar em Julia, mas percebeu que não estava mais armado. Sua pistola havia sido jogada longe pela mulher. “Soldado Julia Flores, do esquadrão”, ela disse, antes que ele conseguisse por os pensamentos em ordem e fazer a pergunta. “Você não tem autorização para ver o que eu estou transportando”, Flores estendeu a mão para ajudar o homem a levantar.
“Por que não me disse desde o começo?”, o policial esfregava a garganta. Sabia que por pouco não havia morrido com o golpe. Movimentos letais desnecessários eram uma característica dos soldados. O homem pediu desculpa por ter atrapalhado o trabalho de Julia e ainda escoltou seu carro até a saída da cidade. “Por pouco”, pensou Flores, “por pouco”.

A motocicleta finalmente havia sumido no retrovisor de Julia e só então ela respirou aliviada. Quando colocou Nek no carro e partiu ela estava determinada a nunca mais matar ninguém, mas sabia que, pelo bem estar do menino, se fosse necessário, ela eliminaria quem se aproximasse demais.

O sono tinha passado. A adrenalina, constante companheira de trabalho, corria forte por suas veias. Poderia dirigir por mais doze horas sem piscar. Mas uma luz no painel indicava que o tanque do carro estava quase vazio. Em um posto de beira de estrada, Julia encostou.

Primeiro, fez uma busca visual para identificar ameaças. Depois, caminhou pelo estabelecimento, checando se estava seguro. Só aí abasteceu o veículo. A bomba era antiga e Flores sabia que ia demorar até conseguir sair do posto.

O barulho de chaves caindo e tudo ficou preto. Alguém havia colocado um capuz em Flores e ela sentia que tentavam algemá-la. A soldado não sentiu ninguém se aproximando, o que provava que não eram bandidos comuns. Eram terroristas. Mesmo sem enxergar, ela quebrou os braços de dois homens e estava preparada para a luta, mas ao retomar a visão, viu que sete homens apontavam armas para sua cabeça.

Como ordenado, ela se ajoelhou, mas seu semblante não mudou. Não implorou por sua vida, embora soubesse que eram seus últimos momentos. O líder do grupo se aproximou. Era um homem de pouco menos de vinte anos. Tinha a pele azul, mas não era viscosa como a dos eebs. E tinha um nariz e cabelos. Era um mestiço, embora Flores jamais ouvira falar que fosse possível cruzar humanos e alienígenas. “Rav”, disse um dos homens, entregando uma pistola para o mestiço. Provavelmente era o nome dele. Rav apontou a arma para Flores e ia atirar, mas um choro o interrompeu. Era Nek, no banco de trás. Havia acordado com o tumulto. Ao ver o pequeno eeb, o líder terrorista puxou Julia pelo cabelo e a jogou no porta-malas. Ela desmaiou com impacto.

Quando acordou, ainda estava na mala. O carro parou em algum ponto e ela ouviu os homens se preparando para deixá-la sair. A luz foi entrando no porta-malas aos poucos e Julia viu Nek no colo de Rav. O mestiço a ajudou a sair e a conduziu. Estavam em uma pequena cidade, com casas minúsculas umas coladas às outras. Parecia um filme de velho oeste.

Flores era boa em calcular pessoas. Isso era fundamental em seu trabalho, para não deixar que ninguém escapasse. E, pelas contas dela, cerca de três mil pessoas deviam morar naquela cidade, escondida no meio de uma floresta. Eram humanos, eebs e mestiços vivendo em harmonia, trabalhando e montando famílias. O lugar ideal para que ela criasse Nek, longe de todo o medo e de toda a opressão do presidente Tomás Souza.

O soldado Udo Xavier estava há horas na estrada. Desde que descobrira o desaparecimento de sua parceira ele percorrera diversas cidades em busca de alguma pista. Não havia descoberto nada, até que recebeu uma ligação de outro soldado. “Xavier, conseguimos”, dizia o soldado Bento. “Conseguimos ativar remotamente o rastreador do carro da soldado Flores. Estou te enviando a localização e mandando alguns soldados do esquadrão para te ajudar. Vamos resgatar Flores se ela ainda estiver viva e eliminar todos os terroristas que encontrarmos.”

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