Incomodado com a ausência de evidências que pudessem levá-lo aos
captores da parceira, Xavier bateu de porta em porta. Muitos vizinhos fingiram
que não estavam em casa, mas uma senhora o atendeu com boa vontade. Disse que
na noite anterior ouviu um movimento de carro, um veículo saindo em alta
velocidade da casa de Flores após um pequeno grupo que ela não era capaz de
identificar ter feito a pichação. Para Udo, aquelas informações bastavam. Sua
parceira havia mesmo sido sequestrada pelo Exército Azul.
Longe dali, Julia Flores dirigia. Seu carro não era potente
ou novo, mas já tinha provado algumas vezes ser capaz de aguentar uma longa
viagem. Ela não sabia bem para onde ia, mas já imaginava que seus antigos
companheiros soldados estivessem procurando por ela naquele momento, depois de
verem a letra azul em sua porta.
No banco de trás, Nek dormia. Havia passado a madrugada
muito agitado. Estava aprendendo as primeiras palavras e já sabia falar “mamãe”.
A estrutura vocal dos eebs não permitiam que ele falasse com muita clareza, os
fonemas eram um pouco diferentes, mas Julia sabia bem o que o pequeno azul
queria dizer.
Flores não havia planejado bem sua fuga. Quando viu que
algum dos vizinhos a havia denunciado, instintivamente entrou em casa, pegou
Nek, algumas comidas prontas e água. O essencial para que pudesse dirigir sem
parar até que fosse necessário abastecer. E este momento estava chegando. Não
sabia para onde estava indo, mas calculava mentalmente as melhores rotas para
sair do país. Sabia que esta não era a solução definitiva. Muitas das nações ao
redor eram aliadas do governo de Tomás Souza e a denunciariam, como o Paraguai,
a Bolívia e a Venezuela. Já outros, como Argentina, Uruguai e Colômbia, não
ofereciam risco a ela ou ao menino eeb, mas também não seria possível
atravessar a fronteira sem chamar a atenção dos militares. Sem rumo, por
enquanto, ela apenas dirigia.
Quase doze horas após sair de casa, a soldado era vencida
pelo cansaço. Por duas vezes acabou saindo da pista, mas sem acidente. Nek
permanecia dormindo no banco de trás, coberto por uma manta preta. Fazia frio
naquela época do ano e Julia não tivera tempo de pegar um casaco apropriado
para ele.
Uma sirene. Uma motocicleta a seguia, indicando que era
necessário parar no acostamento da estrada. “Me encontraram”, pensou Flores.
Ela julgava ter uma boa vantagem sobre seus antigos parceiros, mas parecia que
estava enganada. “Ainda posso escapar. Sou mais forte e tenho melhor
treinamento.” O plano era simples. Ela encostava, deixava o homem se aproximar,
o matava e seguia viagem fora das estradas principais. Quando o homem da
motocicleta encostou do lado do carro, porém, ela se surpreendeu. Era apenas um
policial, não um dos soldados. Ela estava a salvo ainda. Por ser extremamente
letal, nunca mandariam um policial comum para detê-la.
“A senhora pode sair do carro?”, perguntou imperativamente o
policial. “Está com pressa?” Julia negou com a cabeça. Apresentou sua carteira
de habilitação para conduzir e os documentos do carro. “A senhora não mora
muito peto daqui. Pode me explicar o que está fazendo na região?” Flores não
respondeu. Continuava parada, analisando se seria necessário matar o homem.
O policial pediu que ela se afastasse do veículo. Julia
obedeceu. Ele puxou a chave da ignição e abriu o porta-malas. Não encontrou
nada. Em seguida, olhou o motor. Pelos movimentos, Flores deduzia que o homem
acreditava que havia algo escondido no carro. Com pequenos passos, ela seguia o
policial, garantindo que ele ficasse sempre ao alcance de um chute, para que a
soldado pudesse eliminá-lo antes que a arma fosse sacada.
Agachado no chão, o policial já estava convencido de que não
havia qualquer problema com o veículo. Iria apenas solicitar que a mulher o
seguisse até o posto policial mais próximo para checar a veracidade dos
documentos. Foi então que ele percebeu. Um tecido cobrindo algo no banco detrás
do carro. Talvez fossem armas e ninguém que não trabalhasse para o governo
tinha permissão para andar armado. O homem colocou a mão na maçaneta da porta
do carro, mas sentiu a mão da mulher fechando sua traqueia.
O homem foi jogado ao chão e levou a mão ao coldre para
atirar em Julia, mas percebeu que não estava mais armado. Sua pistola havia
sido jogada longe pela mulher. “Soldado Julia Flores, do esquadrão”, ela disse,
antes que ele conseguisse por os pensamentos em ordem e fazer a pergunta. “Você
não tem autorização para ver o que eu estou transportando”, Flores estendeu a
mão para ajudar o homem a levantar.
“Por que não me disse desde o começo?”, o policial esfregava
a garganta. Sabia que por pouco não havia morrido com o golpe. Movimentos
letais desnecessários eram uma característica dos soldados. O homem pediu
desculpa por ter atrapalhado o trabalho de Julia e ainda escoltou seu carro até
a saída da cidade. “Por pouco”, pensou Flores, “por pouco”.
A motocicleta finalmente havia sumido no retrovisor de Julia
e só então ela respirou aliviada. Quando colocou Nek no carro e partiu ela
estava determinada a nunca mais matar ninguém, mas sabia que, pelo bem estar do
menino, se fosse necessário, ela eliminaria quem se aproximasse demais.
O sono tinha passado. A adrenalina, constante companheira de
trabalho, corria forte por suas veias. Poderia dirigir por mais doze horas sem
piscar. Mas uma luz no painel indicava que o tanque do carro estava quase
vazio. Em um posto de beira de estrada, Julia encostou.
Primeiro, fez uma busca visual para identificar ameaças.
Depois, caminhou pelo estabelecimento, checando se estava seguro. Só aí
abasteceu o veículo. A bomba era antiga e Flores sabia que ia demorar até
conseguir sair do posto.
O barulho de chaves caindo e tudo ficou preto. Alguém havia
colocado um capuz em Flores e ela sentia que tentavam algemá-la. A soldado não
sentiu ninguém se aproximando, o que provava que não eram bandidos comuns. Eram
terroristas. Mesmo sem enxergar, ela quebrou os braços de dois homens e estava
preparada para a luta, mas ao retomar a visão, viu que sete homens apontavam
armas para sua cabeça.
Como ordenado, ela se ajoelhou, mas seu semblante não mudou.
Não implorou por sua vida, embora soubesse que eram seus últimos momentos. O líder
do grupo se aproximou. Era um homem de pouco menos de vinte anos. Tinha a pele
azul, mas não era viscosa como a dos eebs. E tinha um nariz e cabelos. Era um
mestiço, embora Flores jamais ouvira falar que fosse possível cruzar humanos e
alienígenas. “Rav”, disse um dos homens, entregando uma pistola para o mestiço.
Provavelmente era o nome dele. Rav apontou a arma para Flores e ia atirar, mas
um choro o interrompeu. Era Nek, no banco de trás. Havia acordado com o
tumulto. Ao ver o pequeno eeb, o líder terrorista puxou Julia pelo cabelo e a
jogou no porta-malas. Ela desmaiou com impacto.
Quando acordou, ainda estava na mala. O carro parou em algum
ponto e ela ouviu os homens se preparando para deixá-la sair. A luz foi
entrando no porta-malas aos poucos e Julia viu Nek no colo de Rav. O mestiço a
ajudou a sair e a conduziu. Estavam em uma pequena cidade, com casas minúsculas
umas coladas às outras. Parecia um filme de velho oeste.
Flores era boa em calcular pessoas. Isso era fundamental em
seu trabalho, para não deixar que ninguém escapasse. E, pelas contas dela,
cerca de três mil pessoas deviam morar naquela cidade, escondida no meio de uma
floresta. Eram humanos, eebs e mestiços vivendo em harmonia, trabalhando e
montando famílias. O lugar ideal para que ela criasse Nek, longe de todo o medo
e de toda a opressão do presidente Tomás Souza.
O soldado Udo Xavier estava há horas na estrada. Desde
que descobrira o desaparecimento de sua parceira ele percorrera diversas
cidades em busca de alguma pista. Não havia descoberto nada, até que recebeu
uma ligação de outro soldado. “Xavier, conseguimos”, dizia o soldado Bento. “Conseguimos
ativar remotamente o rastreador do carro da soldado Flores. Estou te enviando a
localização e mandando alguns soldados do esquadrão para te ajudar. Vamos
resgatar Flores se ela ainda estiver viva e eliminar todos os terroristas que
encontrarmos.”
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