quarta-feira, 31 de outubro de 2012

À espera – O mapa na parede (3 de 4)


O sentimento era dúbio em relação à pequena vítima. Enquanto Mei a acusava de ser a assassina de Homero, Swift era mais razoável. “Não há sentido em acreditar que esta criança possa ter tirado a vida do nosso chefe de segurança”, disse o encarregado-chefe. O tiro não fora letal. A arma da engenheira, como a de todos da base, estava ajustada na potência mínima. Apenas o suficiente para desacordar o oponente. A menina ofegava, desmaiava e acordava assustada, em um ciclo que se repetia. “Tem que ser ela”, Mei era a tradução do desespero, “em jamais atiraria em uma criança inocente! Eu jamais atirei em alguém na minha vida. Eu sou só uma engenheira...”

A menina, exceto pelo peito queimado, tinha a pele muito suja, principalmente nos pés, joelhos, mãos e ao redor da boca. O cabelo louro estava totalmente emaranhado e olheiras vermelhas ressaltava os olhos claros. Swift e Mei levaram a garota até a sala do encarregado-chefe, onde estavam os suprimentos médicos restantes. Em cerca de duas horas conseguiram estabilizar a menina, que parecia dormir serenamente.

Mesmo sabendo que a criança estava bem, Lynn Mei andava de um lado para o outro procurando coisas para fazer. Coisas que aplacassem a dor da menina. Coisas que a fizessem esquecer que era responsável pelo tiro que por muito pouco não matou uma inocente. “Eu preciso sair”, a engenheira falava mais rápido que de costume, “não posso ficar aqui”. Antes que Swift pudesse impedi-la, Mei já havia deixado a sala, largando sua arma sobre a mesa.

Se a criança havia chegado a Éris-4, pensava o encarregado-chefe, há registro dela. Como havia de todas as pessoas que já passaram pelo planeta, quer em uma nave, quer em um útero, quer geradas artificialmente. Swift buscou o leitor de íris, escaneou a menina e enviou os dados para o computador da Central Bernard Silva de Exploração e Refino. Em segundos, um nome surgiu no monitor. Natalya Eugene. E a partir deste nome e dos dados associados a ele, era possível reconstruir a vida da menina.

Natalya tinha nove anos, como Swift suspeitara. Era filha de Lorena Eugene, que trabalhava como técnica em refino na capital. Não tinha pai ou qualquer outro parente em Éris-4. Tanto Natalya quanto Lorena estavam agendadas para partir do Berço da Discórdia na última nave-balsa que levou passageiros para a Colônia Humana 31. Mas de acordo com os registros médicos da capital, dois dias antes da partida Lorena teve uma doença infecciosa grave que os cientistas acreditavam ter erradicado há séculos: tétano. Com a mãe morta, ninguém levou Natalya para a nave-balsa. Sem parentes, ninguém se deu conta de que Natalya havia sido esquecida. Com apenas quatro anos de idade, a menina foi deixada à própria sorte em uma das muitas alas desativadas do Central Bernard Silva de Exploração e Refino. Para sua sorte, conseguiu chegar à unidade de tratamento de águas e se alimentou dos restos de comida de Swift, Mei e Homero, que eram enviados para o local. Viveu como um rato, sem roupas, sem amor, sem contato humano. Talvez, no fim das contas, o tiro da engenheira tenha sido uma dádiva na vida da menina.

Assim que mudou o dia, pelo horário terrestre, a menina acordou. Após cinco anos rastejando sozinha pelos esgotos do planeta, não sabia falar uma palavra. E não confiava em Swift. A solução encontrada pelo encarregado-chefe foi deixa-la em sua cabine com água, comida e entretenimento suficientes para que ficasse calma até seu retorno. Se Natalya era inocente, Swift ainda tinha uma missão. Descobrir quem matou seu amigo.

De sua bolsa, o encarregado-chefe sacou o lençol onde havia gravado o mapa feito em sangue por Homero na parede de sua cabine, pouco antes de sua morte. Ao estender o tecido no chão, Swift se dedicou calmamente a entender cada parte do desenho. Cada sala, cada borrão de sangue, cada pista deixada pelo amigo. Provavelmente se Swift visse aquele mapa cinco anos antes, boa parte do desenho soaria misterioso. Após tanto tempo perambulado pela base abandonada, era como se o mapa houvesse sido desenhado por ele próprio.

Tudo era muito comum no mapa. Não havia uma seta, um “X”. Nada que indicasse por onde Swift pudesse começar sua busca. Ele começou a suspeitar que dentro de seu delírio de moribundo, Homero tivesse feito o desenho, sem ter a chance de colocar a informação mais importante. Mas Swift confiava em seu amigo. Com tantos anos de trabalho juntos, ele sabia que o chefe de segurança era detalhista e que provavelmente começara o desenho pela pista. Observando o tecido com calma, viu um pequeno retângulo que tinha as linhas mais finas. Talvez os primeiros traços de Homero na parede, antes que o fluxo de sangue atrapalhasse a execução dos detalhes.

O retângulo era uma sala. Ao fim de um corredor muito longo. Uma sala que o encarregado-chefe não conhecia. E ao checar a planta baixa oficial da Central Bernard Silva de Exploração e Refino, Swift percebeu que oficialmente aquela sala não existia. Aquela era uma ótima pista.

Com o auxílio do computador da base, Swift registrou o mapa em seu traje e saiu para procurar a sala desconhecida. Ficava a cerca de três quilômetros de sua sala, mas em uma ala em que não era possível usar qualquer meio de transporte interno por conta dos corredores estreitos. Havia um pequeno labirinto em seu caminho, mas com o apoio do mapa não houve qualquer dificuldade para superá-lo. Seu único temor era ser encontrado pelo assassino antes de descobrir a pista deixada por Homero. Quando enfim chegou ao final do corredor, encontrou a porta da tal sala travada. Era uma daquelas portas antigas, que utilizavam dobradiças e abriam movendo-se em ângulo para dentro ou para fora. Esta, no caso, abria para dentro da sala. E algo não deixava que se movesse.

A luz, porém, chamou a atenção de Swift. Raios amarelo-azulados passavam por debaixo da porta, indicando que aquela sala tinha uma janela. Ou, Swift torcia por isso, uma porta que desse acesso pelo exterior da capital.

O encarregado-chefe fez todo o caminho de volta, até o edifício principal da base. Precisava voltar à sua cabine para buscar o capacete de seu traje. Ao abrir a porta, se deparou com um cenário atordoante. O corpo de Natalya jazia em sua cama, gelado e sem vida. Tão aparentemente intocado quanto o de Homero no dia anterior. A menina nem tivera tempo de provar a comida fresca deixada por Swift. Desesperado, o homem sentou-se e chorou como uma criança.

No acesso central da capital, Swift pegou um dos veículos de exploração. Estava mais determinado do que nunca a fazer o assassino pagar por tomar as vidas de dois inocentes. Do lado de fora, iluminado pelo sol quente, sem qualquer som que não fosse o do seu próprio corpo dentro do traje, Swift se sentia ainda mais sozinho. Um pouco pela morte do amigo. Um pouco pela ausência de Mei. Mas se sentia sozinho por Natalya. Quatro pessoas viviam no Berço da Discórdia e todas viviam sozinhas.

Ao acessar a sala pelo lado de fora, o encarregado-chefe ficou satisfeito por ver que havia uma porta. Estava aflito em fazer grande esforço para quebrar a janela e encontrar o assassino bem descansado dentro da sala, pronto para matá-lo. Com a arma em punho, preparado para atirar, foi até a porta e digitou seu código de matrícula da Fu Lu Shou. O sistema de segurança não aceitou. Em seguida, digitou sete-sete-gama-doze. A matrícula de Homero. A porta abriu.

A sala tinha muitas telas e, diferente de toda aquela ala, tinha energia. Era uma sala de monitoramento, criada pelo próprio Homero para fazer captação de todas as imagens do circuito fechado de câmeras quando a maior parte da base estivesse desativada. A sala era bem ampla, com muitos equipamentos, e a porta estava bloqueada por uma estante caída no chão. Talvez, o próprio Homero tenha restringido o acesso à sala, para que seu assassino não chegasse.

Sentado na única cadeira disponível na sala, Swif ligou os equipamentos e procurou o momento estimado da morte de Homero. Esperava que as gravações mostrassem a imagem do assassino. E torcia para conseguir, daquele ponto em diante, acompanhar o paradeiro do criminoso. Mas, por mais que o encarregado-chefe mexesse nas gravações, não conseguia encontrar os registros do dia do assassinato de seu amigo. Decidiu, então, buscar os vídeos daquele mesmo dia, que mostrassem quem esteve em sua cabine para sugar a vida de Natalya.

Swift sentiu uma forte dor na cabeça. Um golpe. E aos poucos sua visão ficou turva. Desmaiou. Acordou em menos de dois minutos terrestres. Sobre ele, estava Mei. Ela apontava a arma do encarregado-chefe e também usava seu traje para exploração fora da base. “Nós precisamos esclarecer algumas coisas, Swift”, disse a engenheira decidida, ajustando o disparo da arma para a máxima potência.

terça-feira, 30 de outubro de 2012

À espera – Na escuridão (2 de 4)



“Relatório do chefe de segurança da Central Bernard Silva de Exploração e Refino. Matrícula sete-sete-gama-doze. Homero, François. Milésimo octingentésimo nonagésimo nono dia, duas horas da tarde, continuo aguardando a chegada da nave de carga Conquistadora de Midgard. Desde a última hora, a situação mudou muito. Diferente do que pensávamos, não estamos sozinhos na capital. Eu prefiro não especular, pois pareceria ridículo, então suponho que seja algum antigo habitante da capital. Mas, se me perguntassem com franqueza, eu diria que até a última hora só havia três pessoas em todo o planeta. Eu estava fazendo a minha ronda diária na unidade de tratamento de águas, que está desativada, mas preferi voltar para a minha cabine. Precisava gravar meu relatório e não queria ser ouvido.”

Na gravação, François Homero estava sussurrando. A voz parecia calma, mas era nítido que ele estava se escondendo de alguém. Houve uma longa pausa até que ele retomasse a narração do relatório.
“Está se aproximando. Minha cabine é a única fechada, então não será muito difícil supor que eu estou escondido aqui. Central de comando da Fu Lu Shou, encerro aqui meu relatório, mas vou continuar gravando uma mensagem para o encarregado-chefe Robert Swift.”

As palavras sensibilizaram Swift. Naquele momento, o incidente deixava de ser apenas uma ocorrência e se tornava a morte de seu amigo. Os dois se conheciam desde criança, quando estudaram juntos na instituição infantil da Colônia Humana 27. Desde cedo, François Homero queria trabalhar com segurança e por isso estudou estratégia militar. Já Swift não tinha muita certeza do que queria e acabou cursando a academia apenas por insistência do amigo. Anos mais tarde, o agora encarregado-chefe foi contratado pela Fu Lu Shou e assim que pôde indicou Homero para uma vaga em Éris-4. Swift sentia-se culpado pelo destino do amigo.

“Meu amigo”, dizia Homero na gravação, “meu mais antigo amigo. Me desculpe por ter falhado com você nessa missão. Vamos pensar pelo lado bom”, o chefe de segurança não conteve o riso, “pelo menos acabou o tédio por aqui. Por Alá... está aqui na minha porta. Preciso desligar. Em uma hora gravo um novo relatório.”

Com um ruído que arranhou os ouvidos de Mei e Swift, a gravação foi encerrada. Os dois ficaram em silêncio por alguns minutos, cada um elaborando sua própria teoria sobre a morte de Homero. O corpo não possuía nenhuma marca de violência. Apenas um corte na mão, claramente feito pelo próprio segurança para desenhar o mapa na parede. Não havia sinais também de consumo de medicamentos. Era como se alguém simplesmente tivesse entrado na cabine e exigido a vida de Homero, sem sequer tocá-lo.

Em momento algum Mei relaxou a mão que segurava sua arma. Acreditava que, a qualquer momento, o assassino de Homero fosse invadir a ala das cabines para matar os dois membros restantes da missão. E se sentia especialmente exposta. Se Swift decidisse que não havia nenhum assassino, os dois voltariam a suas rotinas de trabalho. Com isso, Mei continuaria na capital, presa com a pessoa que matou Homero enquanto Swift passearia por Éris-4 a bordo de seu veículo de exploração. Para evitar que isso ocorresse, a engenheira estava obstinada em levar o encarregado-chefe para a unidade de tratamento de águas em busca de alguma pista.

“Qual a sua aposta?”, interrogou Swift enquanto tirava o lençol branco que cobria a cama da cabine de Homero. Pressionou o tecido contra a parede, gravando o mapa desenhado pelo amigo. Em seguida, guardou o lençol em sua bolsa, caso precisasse consultá-lo depois. “Ainda não tenho certeza”, disse Mei, “mas acredito que um dos detentos da ala prisional possa ter escapado antes da transferência de todos os habitantes da capital para as Colônias Humanas. Da ala prisional é fácil chegar à unidade de tratamento de águas.”

O encarregado-chefe sabia que era necessário investigar, mas achava que a ala das cabines poderia fornecer muito mais informações do que a unidade de tratamento de águas. Para ele, o encontro de Homero com seu algoz na unidade desativada fora um mero acaso.

A unidade de tratamento de águas era uma das maiores maravilhas da ciência. E a grande ferramenta que permitia a instalação de humanos em bases temporárias, como a capital de Éris-4. Nas Colônias Humanas, toda a biosfera da Terra era simulada ou recriada, com condições atmosféricas favoráveis, fauna e flora. A água era retirada de lençóis freáticos (naturais ou artificiais), rios e oceanos. No caso de planetas, como Éris-4, em que não era possível desenvolver uma biosfera, as empresas controladoras optavam pela construção de uma base temporária. E cada uma possuía uma unidade de tratamento de águas, um espaço amplo (cerca de um terço da área de toda a base), que retirava a água ou substância semelhante existente do solo, a adaptava para que virasse monóxido de dihidrogênio e eliminava as impurezas. Essa água era usada em toda a base, quer para aquecimento e resfriamento de ambientes, limpeza, geração de energia e consumo humano, sendo reaproveitada por um longo período, até que se tornasse totalmente imprópria. Neste caso, a substância era armazenada em naves-tanque, que a utilizavam para controlar a temperatura externa na decolagem e, em seguida, eliminada no espaço, anulando o risco de contaminação de humanos.

Como a Central Bernard Silva de Exploração e Refino estava praticamente desativada, não havia necessidade de manter a unidade em funcionamento. Apenas um equipamento de menor porte permanecia operando, garantindo as condições vitais necessárias no edifício administrativo, na ala das cabines e, quando necessário, em áreas que Swift, Mei e Homero precisassem acessar. Isso fazia da unidade um monstro sombrio e silencioso, que podia abrigar muitos segredos. Inclusive um assassino escondido.

Mei e Swift caminhavam com cuidado na unidade. Apesar de a maior parte da capital ter sido construída com metal, a unidade de tratamento de águas utilizava no chão fibras de carbono, semelhantes a madeira. Isso fazia com que os passos ressoassem e ecoassem, aumentando a tensão dos dois. Com suas armas e lanternas em mãos, eles exploravam o lugar em busca de alguém ou alguma pista.

Quanto mais andavam, mais barulho fazia, mas em certo momento, Swift começou a desconfiar dos sons que ouvia. Havia passos fora do ritmo em que ele e Mei andavam. Passos de outra pessoa. De uma pessoa leve e rápida. A engenheira começou a desconfiar dos barulhos também. Pararam os dois, tentando identificar de onde vinham os passos, mas o eco atrapalhava a percepção. De repente, os passos começaram a correr na direção dos dois. E, num choque, Mei foi derrubada no chão. Sua lanterna rolou para longe. E o som elétrico de um tiro foi escutado. Swift temia pela vida de sua companheira de missão. Mas ao apontar sua lanterna para ela, nada viu além de um corte começando a sangrar em seu queixo. Os passos cessaram, mas uma respiração ofegante era ouvida há poucos metros dali. Quando a luz da lanterna de Swift chegou à fonte do som, havia uma pessoa caída, com o peito queimado pelo disparo elétrico da arma de Mei. Uma menina, que não tinha mais do que nove anos terrestres.

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

À espera – Berço da Discórdia (1 de 4)



O que mais incomodava Swift não era a solidão ou o tédio. Era o regime de vinte e quatro horas. Não importava aos seus empregadores que aquele planeta minúsculo em uma esquina qualquer do universo tinha uma rotação de treze horas e meia; Swift era obrigado a fazer seus relatórios baseado nas horas terrestres. E por isso mesmo, com o sol amarelo azulado bem acima de sua cabeça, fazendo-o suar por baixo de seu traje, embaçando seu visor, ele era obrigado a iniciar o relatório informando que eram quatro horas da madrugada. Ainda que o relatório completo fosse resumido a “Milésimo nongentésimo terceiro dia de espera, quatro horas da madrugada, continuo aguardando a chegada da nave de carga Conquistadora de Midgard”, o que mais irritava Swift era registrar o falso horário.

Enquanto pilotava seu veículo de exploração terrestre, o encarregado-chefe Robert Swift observava a superfície do planeta, se despedindo novamente, como fazia todos os dias, do local em que habitara por dezessete anos terrestres e torcendo para que aquela fosse a última vez que se despedia. Quando anunciaram que a Conquistadora de Midgard estava a caminho, há mil novecentos e três dias, Swift fez suas malas e, para comemorar a partida daquele planeta que aprendeu a apreciar, bebeu todos os destilados que ainda guardava em sua cabine. Desde então, sem ter com o que se embriagar e racionando o que ainda restava de comida, o homem esperava que a nave chegasse. Ou a morte. O que viesse mais rápido.

O planeta Éris-4, chamado carinhosamente por seus habitantes de Berço da Discórdia, era uma pequena maçaroca de lama que em nada lembrava a superfície da Terra. Era possível atravessar o planeta por seu paralelo principal em menos de quatro dias utilizando os veículos de exploração disponíveis. Não há oceano, apesar de a água ser abundante logo abaixo de sua crosta. Chove diariamente, mas a água é rapidamente absorvida pelo solo, extremamente pastoso.

Até onde a vista alcançava da Central Bernard Silva de Exploração e Refino, a paisagem era coberta por uma vegetação rasteira, que todo dia desaparecia no horário das chuvas, mas que voltava a se erguer da lama no dia seguinte. As plantas serviam de alimento para uns pequenos pássaros sem penas, os únicos animais que podiam ser vistos a olho nu. E a carne destes pássaros era extremamente letal aos seres humanos.

Diziam os bioarquitetos que chegaram a Éris-4 a bordo da nave Serpente que o planeta já havia sido cheio de vida. Nada de vida inteligente. A superfície do Berço da Discórdia era coberta de vegetação exuberante e muitas eram as espécies de animais – pequenos pássaros, pequenos roedores e pequenos anfíbios, principalmente – que se reproduziam sob o sol amarelo azulado. Talvez nesta época o planeta não merecesse seu apelido.

Ninguém jamais ouvira falar de Éris-4 até cerca de dois séculos terrestres. Foi nessa época que a nave Comodoro Valente se chocou contra o planeta, ao voltar de uma missão diplomática. Boa parte da tripulação morreu com a queda, mas alguns oficiais conseguiram enviar uma mensagem de socorro. O resgate não chegou a tempo. Foram mais de trinta anos entre o acidente e a aterrissagem da Serpente.

A Serpente não era exatamente uma nave de auxílio. Era um monstro metálico com capacidade para transportar mais de cento e cinquenta tripulantes, além de cargas e equipamentos. E a nave já chegou a Éris-4 com uma missão: explorar o potencial econômico do pequeno planeta. Durante cinco anos, as equipes da Serpente tentaram descobrir de que modo aquela bola lamacenta poderia contribuir para o desenvolvimento da Terra e das Colônias Humanas. Neomineradores, geólogos, bioarquitetos, estrategistas militares e operadores logísticos percorreram cada quilômetro quadrado, sem enxergar muita serventia naquele corpo celeste.

Pouco antes de a Serpente partir, uma explosão chamou a atenção dos cientistas. Enquanto alguns neomineradores tentavam perfurar o solo em um local que eles acreditavam ser rico em carvão, o mau funcionamento de um dos equipamentos acabou matando parte da equipe. Para quem estava de longe, parecia apenas fogo, mas quando os sobreviventes voltaram para a nave, seus trajes estavam coberto por um líquido viscoso de um verde muito escuro. Era um combustível fóssil.

Apesar de o petróleo da Terra ter sido totalmente explorado até o século vinte e três e os humanos terem desenvolvidos fontes alternativas de energia, nenhuma jamais performou tão bem quanto os combustíveis fósseis. Boa parte de todas as missões espaciais foram baseadas na busca por óleos e minérios. Quando a notícia de que havia combustível fóssil em Éris-4 chegou à Terra, a Fu Lu Shou, conglomerado interplanetário que operava a nave Comodoro Valente, reivindicou a descoberta e posse do planeta. A batalha judicial entre a Fu Lu Shou e a Luckywinds, dona da nave Serpente, antes parceiras e agora rivais, levou Éris-4 a ser apelidada de Berço da Discórdia.

Quando finalmente a Fu Lu Shou garantiu sua posse sobre Éris-4, muitas naves chegaram ao pequeno planeta. Em pouco tempo, foi construída uma capital, toda de metal, que combinava edifícios administrativos, área para armazenamento e refino do óleo verde e espaço para convivência. O complexo foi batizado de Central Bernard Silva de Exploração e Refino, em homenagem ao piloto da Comodoro Valente. Nas décadas seguintes foram erguidas plantas de exploração, que alimentavam a capital com o óleo, que após ser processado era mandado para a Terra e para as Colônias Humanas por meio das naves-tanques.

Swift chegou a Éris-4 no auge da produção. A cada mês uma nave-tanque partia do planeta levando o óleo e outra chegava trazendo comida e suprimentos. O agora encarregado-chefe, na época, era da força policial. Em dezessete anos terrestres ele cresceu organicamente na hierarquia da capital, passando pelos importantes cargos de comandante de polícia e conselheiro do encarregado-chefe. Seu maior erro foi brigar com o responsável pela capital um dia antes de ser entregue a mensagem que mudou a rotina do planeta.

A mensagem foi levada por uma nave-tanque. A primeira que chegara a Éris-4 em mais de um ano. A carta era assinada pelo presidente da Fu Lu Shou e avisava sobre a venda do Berço da Discórdia para a Luckywinds. Por conta de uma guerra entre duas Colônias Humanas que não tinham contrato com a Fu Lu Shou, as naves-tanque eram obrigadas a fazer um percurso muito maior para chegar ao planeta. Com o aumento do custo logístico, o óleo proveniente de Éris-4 não era mais competitivo no mercado e a companhia havia decidido vender o ativo para a rival, cujas naves tinham autorização para atravessar a zona de guerra.

Naves-balsas foram até o Berço da Discórdia para levar todos os seus habitantes para a Colônia Humana mais próxima. Era necessário, porém, que um pequeno contingente ficasse na capital, à espera de seus novos donos. A briga de Swift com o encarregado-chefe (por motivo banal; um desentendimento por conta do filho de um que queria namorar o filho do outro) fez com que ele fosse o escolhido para ficar responsável pela Central Bernard Silva de Exploração e Refino até que a Conquistadora de Midgard chegasse.

Além de Swift, apenas outras duas pessoas continuavam em Éris-4. Um delas era Mei, engenheira responsável por manter a capital funcionando. A outra era Homero, grande amigo de Swift, a cargo da segurança. Os três, contudo, mal se viam. Afogados em suas tarefas, eles se reuniam uma vez por semana para consolidarem seus relatórios. E uma hora depois voltavam para suas solidões.

No milésimo nongentésimo terceiro dia, a reunião demorou mais do que o previsto para começar. Swift e Mei conversavam na sala do encarregado-chefe por mais de duas horas, quando decidiram ir à cabine de Homero. Swift sabia que seu amigo havia estocado todos os medicamentos disponíveis na capital e desconfiava que, volta e meia, deixava de trabalhar para se drogar. Talvez ele tivesse esquecido a reunião por conta disso.

Da sala do encarregado-chefe à ala das cabines era uma longa caminhada. Por mais que Swift acreditasse que era apenas uma banalidade que afastava o amigo do compromisso, Mei não estava tão segura. Preferiu fazer o trajeto com sua arma em punho.

E o pior aconteceu. Na cabine de Homero, o corpo do chefe da segurança estava caído no chão, morto há três ou quatro dias. Nas paredes, marcas de sangue pareciam desenhar a planta baixa da capital. E sobre a mesa, um pequeno disco tinha escrito o nome de Robert Swift. Era o último relatório de Homero, com a data de duas horas da tarde do milésimo octingentésimo nonagésimo nono dia à espera da Conquistadora de Midgard.

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

A rua do meio – Um chope e mais um maço de Yellows (5 de 5)


Quando a porta do quanto quatrocentos e dois se abriu e Mário viu a lamúria ameaçando Tábata com uma faca, pareceu que o tempo tinha parado. O jornalista conseguiu pensar em uma centena de coisas em uma fração de segundos. Pensou na ex-mulher, que sempre o acusou de não tomar as atitudes certas. Pensou em Tábata, frágil e indefesa no balcão do bar. Pensou em seu trabalho. Mário era repórter policial e estava acostumado a ver crimes, mas nunca tinha estado em uma situação como aquela.

“Você precisa se acalmar, meu amigo”, disse o jornalista para o homem louro com a faca na mão. Os olhos vermelhos não paravam de lacrimejar. “Vá embora!”, ordenou a lamúria com a voz embargada e soluçante. “Você precisa me deixar terminar isso!”

O repórter deixou o livro cair perto da porta e, em pequenos passos, foi se aproximando do casal. A ruiva estava caída no chão, desesperada, com os olhos verdes implorando por ajuda. Ela não conseguia dizer nenhuma palavra. Até onde lembrava, o manuscrito do livreiro não dava muitos detalhes sobre as lamúrias. Eram criaturas que não possuíam habilidades especiais ou fraquezas, estando fadadas apenas ao sofrimento constante.

“Por que não deixamos a Tábata ir embora e conversamos só nós dois?”, o jornalista tentava distrair a lamúria. O homem gemia baixinho, como se uma dor física dominasse seus pensamentos. “Eu preciso terminar isso”, a lamúria repetia como um mantra, “posso não ter outra chance”.

Era possível sentir a determinação da lamúria. Apesar da aparência que contagiava sofrimento, a mão que segurava a faca era firme e os músculos do braço estavam bem contraídos. “Vá embora, por favor. Isso não vai acabar bem. Isso precisa acabar.”

Mário se agachou, tentando enxergar melhor as reações de Tábata. Queria passar alguma dica para ela, como se fosse pedir para que a ruiva corresse para fora do quarto. Mas ela não olhava de volta. Estava apavorada com aquela faca perto dela.

“Você vai acabar machucando a moça”, apelou Mário. Quanto mais o repórter falava, mais as lágrimas rolavam pelo rosto da lamúria. “Eu já tive uma chance”, disse o homem, “mas não consegui finalizar. Agora nada vai me impedir de acabar com isso. Preciso acabar com isso”. Mário pensava na outra chance a que a lamúria se referia. Provavelmente falava do corte sobre a sobrancelha de Tábata.

O jornalista se levantou. Já estava muito próximo da ruiva e da lamúria. E, ao olhar para o homem, começou também a chorar, já com os olhos muito vermelhos. As lágrimas entristeceram ainda mais a lamúria, que acabou relaxando um pouco o braço e estendeu a mão livre para amparar o repórter. “Precisamos acabar com isso”, disse Mário. A lamúria concordou com a cabeça.

Aproveitando-se da fraqueza do homem, Mário o empurrou contra a parede, quebrando um espelho. Com o choque, a faca voou para longe e Tábata pôde correr para a outra extremidade do quarto. A lamúria desmaiou e seu corpo ficou caído sobre os cacos do espelho.

Com cautela, para não assustá-la, Mário se aproximou de Tábata. Ele tentou acalmá-la, mas a moça parecia estar com taquicardia. “Fique tranquila. Nós já vamos embora daqui e você poderá esquecer esse cara”, disse seguro o repórter. “Deixe apenas eu pegar o livro que estava comigo para que possamos sair.”

Ao abaixar para pegar o livro, Mário viu novamente a foto que pegara na casa de Tábata. E lá estava a lamúria, antes de se tornar uma lamúria. Mas a Tábata na foto não era mais a mesma. No lugar da pele sardenta havia um tecido que parecia cinzas e ruínas. Seus cabelos ruivos não eram mais do que fumaça espessa e os olhos verdes estavam vazios. Antes que o jornalista pudesse se assustar com a imagem, um grito chamou sua atenção. Era a lamúria. E sobre ela estava a criatura cinza e esfumaçada, devorando sua caixa toráxica.

Quando finalmente o homem morreu, depois de muito agonizar e chorar, a criatura se virou para o repórter. “Não posso mais ser Tábata”, o som saía da boca cinzenta com eco, “você me viu da maneira que eu sou. Agora você será o meu hospedeiro”. A criatura se transformou em uma imensa fumaça negra, que avançou na direção de Mário. Mas antes que pudesse dominá-lo, surgiu uma barreira. Uma barreira forte, de corpo quadrado e sem cabelos. Das trevas do quarto a sombra se projetou para proteger o repórter.

No corpo da sombra, a criatura se contorcia. Parecia que ambos brigavam para dominar aquela sombra tridimensional. Temendo ter o mesmo destino da lamúria, Mário pegou a faca e cravou no ventre da sombra. Por um segundo, a sombra pareceu sorrir, como se o repórter tivesse feito a coisa certa. Logo depois, o corpo quadrado se atirou pela janela para fora do quarto, sendo dissolvido pelo sol da tarde.

No canto do quarto, um gemido chamou a atenção de Mário. Era Tábata, caída no chão. A verdadeira Tábata, dona do corpo que a criatura estava usando. “Você está bem?”, o repórter segurava a cabeça da moça. “O que aconteceu aqui?”, ela perguntou. “Você... Parece que eu te conheço, mas não sei de onde.” A mulher perguntava pelo marido e pela filha. Não se lembrava de nada do que havia acontecido recentemente.

Mário levou Tábata até o livreiro, que ficou feliz ao ver que seu manuscrito estava intacto. Ele ainda explicou a real natureza da criatura que se fazia passar pela ruiva. Era uma sugadora. Atraía pessoas para a Rua do Meio, se alimentava de suas alegrias até que não sobrasse nada além da tristeza. Foi isso o que ela fez com a sombra e com a lamúria, transformando os dois de pessoas normais para seres compostos por sofrimento. E era isso que ela pretendia fazer com Mário.

O velho se responsabilizou por levar Tábata de volta para casa, no Mundo-Além-Da-Esquina. “Como você, eu sou um turista”, revelou o livreiro. “Posso entrar e sair quando quiser. Apenas escolhi ficar aqui, para documentar o que se passa na Rua do Meio. Acho que podemos precisar de um jornalista também. Ainda não temos nenhum.”

De fato, Mário resolveu ficar na Rua do Meio. Passou a morar na casa que pertencia à criatura que dominava Tábata. Todas as noites passava na banca de jornais e depois no bar, onde podia tomar um chope e fumar seus Yellows. Com o tempo, decidiu escrever seu próprio livro, manuscrito, claro, sobre o que havia acontecido desde que conhecera a Rua do Meio. Um detalhe, porém, o incomodava em toda a história. E, por isso, procurou o livreiro para pedir ajuda.

“O senhor me disse que quem está há algum tempo na Rua do Meio perde o nome”, disse o jornalista, “mas na primeira vez que eu estive nesta rua ouvi uma conversa que me deixou confuso. E ainda não consegui entender. Um grupo bebia na rua e falava sobre um homem. Um tal presidente Lopes. Suponho que ele seja presidente da Rua do Meio, ou algo parecido. Mas se ele estivesse tempo o suficiente por aqui para ser presidente, seu nome já não teria sido esquecido?”

O livreiro riu e fez um gesto para que Mário o acompanhasse. Seguiram por entre as pilhas de manuscritos até o fim da livraria. Lá, o velho abriu uma porta, a porta dos fundos, de onde era possível ver uma rua paralela àquela onde a livraria estava situada. E além dessa, havia outra rua. E mais outra. E outra, até que a vista não alcançasse mais. “Meu jovem repórter, ainda há muito para você descobrir sobre a Rua do Meio.”

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

A rua do meio – Lamúria (4 de 5)



O ventilador de teto girava, mas Mário não sentia nenhum vento em seu corpo. Jogado no sofá de sua sala, no Bairro Peixoto, o jornalista ainda tentava entender o que havia acontecido nas últimas horas. Não conseguia parar de pensar em Tábata, nos cabelos cacheados ruivos, nos olhos vedes brilhantes, nas sardas que se espalhavam pela pele, nos braços fortes e firmes, na camiseta branca quase transparente, nos jeans muitos justos. Mas, pincipalmente, pensava naquele corte sobre a sobrancelha.

Enquanto se perdia nas lembranças de abata, era trazido de volta à realidade pelo discurso da sombra viva. O sujeito forte, quadrado, sem cabelos e sem corpo fora incisivo ao dizer que Tábata era o verdadeiro risco e que Mário deveria ficar longe da Rua do Meio. Mas será que a história era verdade?

Mário não sabia em que acreditar. De um lado, ele tinha fresca a memória de Tábata tentando se abrir sobre seu agressor no bar, o surgimento da sombra na porta e a fuga da ruiva, que acabou afastando o jornalista da Rua do Meio por algum tempo. Do lado oposto, havia a conversa da última madrugada na salinha dos fundos do bar, onde a sombra tentou convencer Mário a desistir de sua busca enquanto podia.

Sem saber qual lado era o certo, restou ao repórter apurar o fato. E se a Rua do Meio não possuía aparentemente uma força policial, um órgão governamental ou, ao menos, uma assessoria de imprensa, havia entre seus imóveis uma velha livraria, tão misteriosa quanto a própria rua.

A Rua do Meio não se abriu logo à porta do prédio de Mário desta vez. Foi preciso caminhar alguns quarteirões até achar, bem no meio da Miguel Lemos, a esquina com a já conhecida banca de jornais onde Yellows era a marca de cigarros mais vendida. O jornalista foi andando pela rua, que seguia em direção ao Arpoador e desta vez era dividida por um túnel, até encontrar o pequeno livreiro de cabelos rebeldes.

Tão logo Mário entrou na livraria, o livreiro pediu que ele fizesse silencia. Então, o pequeno homem caminhou pela loja, solicitando gentilmente que os demais fregueses se retirassem, oferecendo como brinde pelo transtorno os exemplares que os mesmos consultavam no momento. Em seguida, trancou a porta da frente e guiou o jornalista até as poltronas, onde se sentaram. “Não sabia se você voltaria”, disse o livreiro, com uma xícara de chá quente nas mãos, “mas já estava preparado para termos esta conversa”.

Mário agradeceu o livro que o ajudou a encontrar a Rua do Meio, lamentou o incidente que fez com que as páginas do exemplar se soltassem e voltou a agradecer ao velho pela página da lista telefônica com o endereço de Tábata, caso ele tivesse algo a ver com aquilo. Logo depois, o jornalista implorou que o velho explicasse algo sobre a Rua do Meio que o ajudasse a entender melhor toda aquela situação, para enfim encontrar Tábata e saber se ela estava bem.

“O seu problema, meu jovem”, o livreiro falava em voz baixa, entre um gole e outro no chá, “é que você pensa na Rua do Meio como um lugar. Isso aqui não é um lugar. É apenas uma ideia”. Mário já não se espantava mais com o que ouvia e o velho sabia disso. Prosseguiu: “Esta rua não existe no espaço e não existe no tempo. Não se surpreenda se da próxima vez que você cruzar a esquina se deparar com o trânsito louco de Nova Delhi. E não se incomode se as tropas de Napoleão cruzarem o seu caminho enquanto estiver no bar em frente tomando uma cerveja.”

O repórter deixou escapar uma risada. “Nada me surpreende mais aqui”, comentou Mário, servindo para si uma xícara de chá. Desta vez, quem riu foi o livreiro. “Pois devia se surpreender com muita coisa. A Rua do Meio aprisiona almas atormentadas que não têm mais para onde ir, os espíritos que não pertencem mais ao Mundo-Além-Da-Esquina, como chamamos aqui. E a cada dia que passa, mais moradores chegam à nossa humilde rua e não conseguem mais sair. Raros são os turistas, como você, que podem ir e vir quando bem entendem.”

“Esta rua já foi uma travessa”, o velho olhava para cima, como se pudesse visualizar os primeiros dias daquele lugar esquecido pela humanidade. “Foi nessa época que eu cheguei. Não éramos mais do que dez moradores naquela época, vivendo em barracas. Muitas coisas aconteciam. Muitas pessoas desapareciam ou simplesmente mostravam suas verdadeiras faces. Homens viravam cães, mulheres viravam pássaros. Alguns dormiam o tempo todo, enquanto outros nem conseguiam piscar. A única coisa que acontecia com todos era a perda. Em pouco tempo perdíamos nossos nomes e nossos passados. Foi então que eu decidi começar a escrever. Peguei um punhado de folhas e passei a relatar todos os acontecimentos da Rua do Meio. E quando esses relatos se acumularam, eu abri esta livraria. Tudo aqui foi escrito pelo meu próprio punho, na esperança de um dia ajudar a alguém. Esse é um desses dias. Me diga como eu posso ajudar.”
O jornalista só conseguia pensar em uma única coisa. “Tábata. Se você está aqui desde os primeiros dias, deve conhecê-la. Ouvi coisas estranhas sobre ela e gostaria de saber a verdade e onde ela está.”

“Tábata”, repetiu o livreiro. “Como eu disse, perdemos nossos nomes aqui, então ela deve ser nova. E ainda não mostrou quem ela realmente é. Vou te dizer o que posso fazer para ajudá-lo.” O velho levantou-se, foi até sua escrivaninha e tirou da gaveta um livro. “Este aqui é o maior trabalho da minha vida. É apenas uma lista, com desenhos e breves descrições sobre os tipos de pessoas que vivem na Rua do Meio. Não fala das pessoas propriamente ditas. Não terá uma página sobre eu, sobre o bartender ou sobre o jornaleiro, mas sobre a essência de cada um que vive nas inúmeras residências desta rua.”

Com um forte aperto de mãos, Mário agradeceu ao velho e saiu da livraria com o exemplar. Pensou em voltar para o bar, onde poderia comer algo enquanto descobria mais sobre os habitantes da rua, mas temia que o bartender o pusesse para correr como fez na última noite. Andou mais um pouco, atravessou o túnel, que murmurava em um tom assustador, e foi encontrar do lado oposto um edifício de cinco andares. Era o maior da rua, sem dúvidas. Apesar de não haver qualquer letreiro, suas portas giratórias e os uniformes dos empregados indicavam que aquilo era um hotel. Como o livreiro havia falado que poucos eram os turistas que passavam pela Rua do Meio e que Tábata, por ainda ter um nome, era nova no local, talvez alguém do hotel soubesse quem era ela e onde estava.

Alegremente, o gerente do hotel recebeu Mário na porta e o levou até o restaurante, indicando uma mesa bem iluminada. Próximo dali, um pianista animava os presentes e os garçons passavam apressados de um lado para o outro com suas bandejas repletas de pratos. Enquanto aguardava um filé com batatas, o repórter começou a ler o livro.

Os relatos do livreiro eram fascinantes e havia todo tipo de figura na Rua do Meio. Não era possível encontrar nenhum relato sobre vampiros, lobisomens ou curupiras naquelas páginas, mas os desenhos e descrições indicavam personagens tão complexos e interessantes quanto os seres consagrados pelo folclore e pelas mitologias.

Uma das páginas chamou a atenção de Mário. Era sobre as sombras, como a que ele havia conhecido. O texto do livreiro dizia que eram pessoas que tinham suas vidas sugadas pelo desespero a um ponto que o próprio corpo desaparecia. As últimas linhas indicavam, contudo, que em geral as sombras eram traiçoeiras e tentavam enganar as pessoas, acreditando que levando desespero a elas seus corpos poderiam ser restaurados. “Não há como confiar no que a sombra disse, então. Tábata realmente está em perigo.”

Depois de almoçar e conhecer um pouco melhor sobre os tipos que viviam na Rua do Meio, Mário sacou do bolso a foto que pegara na casa de Tábata, aquela em que ela parecia estar ao lado de alguém, mas não havia outra pessoa na imagem. Com cautela para não assustar ninguém e não atrair atenção indesejada, o repórter foi de mesa em mesa perguntando se alguém conhecia a ruiva. A resposta, em todos os casos foi negativa.

De volta a seu lugar, Mário largou a foto sobre a mesa e pediu a conta. Quando o gerente apareceu para apanhar o dinheiro, deixou escapar um número. “Quatrocentos e dois”, disse o homem. O jornalista perguntou do que se tratava o número e o gerente apontou para a foto. “Tábata?”, perguntou otimista o repórter. “Não sei quem é Tábata”, disse o gerente. “Mas esse sujeito está hospedado no quarto quatrocentos e dois.”

Quando o repórter olhou novamente a foto para a qual o gerente apontava, percebeu que Tábata não estava mais sozinha na imagem. Ao lado dela, um homem louro, de olhos azuis, sorria. Certamente era ele quem tinha desaparecido com a moça, pensava Mário. Ao lembrar as complicadas numerações e endereços da Rua do Meio, preferiu conferir com o gerente onde ficava o quarto. “Não se preocupe”, divertiu-se o homem, “aqui é um espaço para turistas, a numeração é tradicional. Pode ir até a segunda porta do quarto andar, mesmo”.

Ainda que houvesse elevador, Mário não teve paciência para aguardar. Disparou pelas escadas até o quatrocentos e dois e arrombou a porta com um chute. Dentro do quarto, Tábata estava caída ao chão, com o homem louro de pé com uma faca na mão. Sua aparência estava bem distante do sorriso da foto. Seus olhos eram muito vermelhos e lacrimejavam incessantemente. Mário não sabia quem era o homem, mas sabia o que ele era. Havia visto aqueles mesmos olhos chorosos nas páginas do livreiro. O homem era uma lamúria, uma criatura que lamenta silenciosamente o próprio sofrimento.

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

A rua do meio – A sombra e a ausência (3 de 5)


Rua do Meio, terceira casa, sobrado. Um endereço pouco comum, mas nada surpreendente para a Rua do Meio. O difícil era encontrar a residência de Tábata. Da mesma forma que não havia uma placa com o nome da rua, também não havia letreiros com os nomes das lojas ou sinalização dos números dos edifícios. Com o endereço em mãos, Mário ia tentando adivinhar onde morava a ruiva misteriosa que ele conhecera alguns meses antes e desde então jamais abandonara seus pensamentos.

A rua, nesta encarnação, estava especialmente longa. Mesmo assim, o repórter já havia cruzado suas pistas de um lado para outro diversas vezes. Tocava interfones, pedia informações. Muitos conheciam Tábata, mas o máximo que podiam ajudar era repetindo o endereço. “Rua do Meio, terceira casa, sobrado.” Apenas quando Mário pediu socorro ao livreiro ficou mais fácil achar o apartamento.

Quando finalmente o jornalista se pôs em frente ao prédio de Tábata, sua cabeça ficou ainda mais confusa. Em nenhuma ordem possível – seja da direita pra esquerda ou vice versa – aquela era a terceira casa. E tampouco havia um sobrado. Era apenas uma casa de um andar, que aparentava ter menos de cinquenta metros quadrados, sem janelas e sem telhado. “Terceira casa se refere ao terceiro imóvel construído na Rua do Meio”, explicou o livreiro. “E o endereço diz sobrado, pois esta foi uma das casas que sobrou das construções originais desta rua.”

Não havia mais sentido em buscar sentido na Rua do Meio, Mário pensava. Mas era fundamental achar Tábata, para saber se estava tudo bem com ela. O jornalista tocou a campainha da casa algumas vezes, mas não houve resposta. Bateu à porta, mas ninguém foi atender. Foi então que ele percebeu alguns arranhões próximos à fechadura e preferiu forçar a entrada. A porta cedeu com um rangido bem agudo e a luz que entrou pela fresta crescente mostrou o interior da casa. O imóvel parecia ainda menor por dentro e havia uma escada que levava para um porão, mas lá embaixo não havia nada.

No cômodo único da casa, muitos porta-retratos se espalhavam pelos móveis. Em todos eles, Tábata parecia estar posando ao lado de alguém, mas só ela aparecia nas fotos. Era como se a outra pessoa simplesmente tivesse sido apagada. Mário guardou uma das fotos no bolso, caso precisasse explicar para alguém quem era a ruiva. Além das fotos e dos móveis, apenas um bilhete sobre a mesa de centro.

“Precisei sair, pois não estava bem. Se eu fosse você, sairia também. Me desculpe por te fazer ir tão longe, mas sempre é possível voltar pelo mesmo caminho. E, se voltar a ver a Rua do Meio entre os endereços que você tão bem conhece, escolha o caminho mais longo para voltar para casa. T.”

Mário não sabia se aquele recado era para ele, apesar de ter falado com Tábata havia menos de uma hora pelo telefone. Não sabia nem se o recado era recente, pois havia uma mancha de café seca no papel. Mas aquelas palavras confusas e genéricas não poderiam afastar o repórter. Para ter alguma chance de saber onde a jovem estava, ele foi procurar o homem que considerava o perseguidor da ruiva.

No bar, com o maço de Yellows em mãos, Mário aguardou até anoitecer. E aguardou mais um pouco, até que o bartender se aproximou. “O homem que você procura está na salinha que eu mantenho fechada ali nos fundos”, disse o responsável pelo estabelecimento, enquanto limpava a mesa do jornalista. “Se eu fosse você iria até lá o quanto antes. Ou o sujeito pode acabar desistindo. Ou pode ser você quem desista.”

O jornalista tomou o resto de cerveja que ainda havia em seu copo e foi para a tal sala. Na penumbra, não parecia haver alguém. Talvez o bartender estivesse mentindo sobre o tal homem, o sujeito grande, quadrado e sem cabelo que Mário havia visto contraluz na porta do bar na noite em que conheceu Tábata. Ou, quem sabe, o homem realmente tivesse ido embora. Quando acendeu a luz para enxergar melhor, o repórter quase caiu para trás. Havia apenas uma sombra na sala.

Uma sombra. E mais nada. Uma sombra de um homem quadrado, forte e sem cabelos. Ora em duas dimensões, grudada na parede, ora em três dimensões, indo na direção do jornalista. O homem era apenas uma sombra.

“Soube que você me procura”, disse a sombra. Mário riu de nervoso. “Espero que não tenha sido um erro”, respondeu o jornalista, puxando uma cadeira. Não sabia se apontava outra cadeira para que o homem também se sentasse. Não sabia se sombras sentavam. “Quero saber onde está Tábata.”

“O erro não foi ter me procurado”, a voz da sombra era impaciente. “O erro foi achar que eu tenho algo a ver com isso. Naquela noite, quando você me viu na porta deste bar, eu não estava atrás da Tábata. Eu estava atrás de você.”

Mário fazia cara de espanto. Mais pelo fato de estar falando com uma sombra do que propriamente pelo que a sombra estava dizendo. “Foi a Tábata que me impediu. Quando ela correu para fora do bar, fazendo com que você fosse atrás dela, eu não pude segui-los. O dia já havia nascido e eu não podia voltar para a rua naquele momento. Estava enfraquecido, sob o risco de minha sombra se esvair.”

A sombra prosseguiu com a explicação, enquanto Mário demonstrava estar claramente desconfortável. “Chame-a de anjo, de demônio ou de sereia. Do que você quiser. Tábata é uma criatura e sua verdadeira face nem de longe lembra aquela ruiva de olhos verdes que te encantou na outra noite. Você viu o corte na testa dela e acha que ela está em risco, mas é nela que você deve ficar de olho.”

“Esqueça esta mulher”, recomendou a sombra. “Você estará preso à Rua do Meio para sempre. E se isso não parece ruim o suficiente, eu te digo uma coisa. Um dia fui em quem entrou nesta rua. Achei estranho uma rua diferente, que corria entre a King Street e a Pall Mall, em Londres. Conheci uma linda morena de olhos amendoados em um pub e hoje sou só uma sombra.”

A porta se abriu e a luz que entrou diluiu a sombra na parede. Era o bartender. “O bar fechou! Está na hora de você sair, repórter! Mas se eu fosse você daria ouvido a tudo o que o homem disse.”

terça-feira, 23 de outubro de 2012

A rua do meio – O livreiro e o livro (2 de 5)



Foram quinze longos dias. Mário aproveitou que tinha férias vencidas no trabalho e passou quinze dias de pé. Quinze dias dando voltas no quarteirão desenhado pelas ruas Siqueira Campos, Barata Ribeiro, Hilário de Gouveia e pela avenida Nossa Senhora de Copacabana. Quinze dias esperando que milagrosamente a Rua do Meio voltasse a aparecer, com seus bares e restaurantes, com sua banca de jornais e suas amendoeiras. E com Tábata.

As pessoas que passavam pelas ruas do bairro, os camelôs e comerciantes daquela vizinhança, já conheciam bem o repórter que tantas vezes se aproximou para perguntar se alguém conhecia a Rua do Meio. Se alguém sabia como chegar lá. De pé, na Barata Ribeiro, no local onde ele viu a rua que não existia pela primeira vez, Mário era motivo de piadas.

Quando os quinze dias a que Mário tinha direito se esgotaram ele foi obrigado a voltar ao trabalho. Munido das ferramentas comuns ao ofício de qualquer jornalista (papel, caneta, internet, telefone e curiosidade), ele pesquisou tanto quanto pode. Procurou políticos, médiuns, professores e pais de santo. Até cartógrafos ele buscou em busca de uma resposta. Ninguém jamais ouvira falar da tal Rua do Meio.

Toda noite, ao voltar para casa, ele ia até o lugar onde deveria estar a rua em que ele conheceu a bela Tábata, mas achava apenas lojas fechadas e prédios gradeados. Talvez fosse justamente o que ele temia: um delírio. Mas as memórias eram vivas demais para que fosse apenas uma loucura.

Alguns meses se passaram. Mário ainda pensava com frequência no que havia ocorrido, mas não estava mais determinado a buscar a rua. Foi então que voltou a acontecer. Saindo de um restaurante na esquina da Atlântica com a Constante Ramos, o repórter percebeu algo estranho. Uma rua que seguia da Constante até a Santa Clara, separada da Domingos Ferreira por poucos metros. Estava lá a Rua do Meio.

Muito mais comprida do que da última vez e com muitas diferenças, a Rua do Meio ainda mantinha a mesma aura. Novamente, todo o comércio estava aberto e muitas pessoas andavam pela rua, mas era impressionante como o número de lojas havia aumentado.

A primeira coisa que Mário fez ao entrar na rua foi buscar a banca de jornais, aquela mesma em que ele pedira informações da primeira vez. Agora, comprou apenas seu maço de Yellows e voltou para a rua. Andou um pouco, tentando achar Tábata ou o bar onde se conheceram, mas não havia sinal de nenhum dos dois. Preferiu então explorar uma livraria.

A tal livraria parecia mais um sebo. Havia pilhas e mais pilhas de livros usados e nenhuma identificação de seção, autor ou estilo. Em um canto, algumas poltronas indicavam que os clientes poderiam ler as obras no próprio local. De trás de uma enorme escrivaninha, um senhor muito pequeno com os cabelos muito brancos fazia anotações em fichas pautadas.

“Boa tarde, senhor”, interrompeu Mário. “Com licença. Estou procurando uma mulher.” O velho riu e tossiu um pouco. “Não tem nenhuma mulher aqui. Só um velho livreiro e muitos livros. Se quiser algo, me peça. Ou vá embora”, disse o velho.

O jornalista andou pelos corredores da livraria e folheou muitos exemplares. Nada que ele conhecesse. Nunca havia lido nenhum daqueles livros, nunca ouvira falar de nenhum dos autores. Preferiu pedir ajuda ao velho.

“Queria uma ajuda, mas não sei nem como alguém poderia me ajudar. Essa é a Rua do Meio, certo?”, Mário sentia que seria expulso do lugar. O velho livreiro saltou de sua cadeira e disse já saber do que o repórter precisava. Subiu em uma pequena pilha de livros, e de lá para uma pilha maior, até conseguir alcançar um exemplar de capa marrom. O livro estava totalmente destruído pelo tempo e as páginas pareciam que iam se soltar a qualquer momento.

Mário perguntou se deveria ler o livro em uma das poltronas, mas o velho resmungou, afirmando que seria uma leitura cansativa e ele provavelmente precisaria dormir um pouco em algum momento. “Quanto é o livro então?”, disse o jornalista, sacando a carteira do bolso. O livreiro apenas o empurrou para fora da loja e fechou a porta. O repórter temia deixar a rua e só voltar a achá-la meses depois, mas não via nenhuma solução melhor do que ler aquele livro.

Em casa, no Bairro Peixoto, Mário deitou-se no sofá para devorar aquelas páginas velhas. O livro estava todo escrito à mão, com uma caligrafia difícil de compreender. Mas foi só insistir um pouco que a leitura fluiu. A obra chamava-se “Rua do Meio – Mapas e indicações”. Não havia, contudo, qualquer mapa, apenas palavras e mais palavras.

Foram praticamente dois dias lendo o livro sem parar para comer, beber água ou usar o banheiro. E quanto mais Mário avançava nas páginas, mais ele tinha certeza que não estava compreendendo nada. E tal e qual o velho livreiro havia dito, assim que a última sentença foi concluída, o jornalista sentiu um sono incontrolável e desmaiou no sofá.

Sonhou. No sonho, Tábata estava sentada no sofá junto com ele. Seus cabelos estavam mais alaranjados, os olhos brilhavam como neon, as sardas se uniam como constelações. Ela usava um vestido verde que desenhava seu corpo com perfeição e quando falava sua voz não saía, mas era possível ouvir um canto marinho correndo por toda a sala. Tábata então se levantava, agarrava Mário pela mão e o carregava até a saída do edifício. Em frente ao prédio, havia um imenso paredão, que não terminava em nenhuma das direções. Os tijolos se seguiam eternamente para a direita, para a esquerda e para cima. Tábata, então, largava a mão de Mário e corria em direção ao paredão, até desaparecer, mas o jornalista permanecia estático. Num estalo, ela voltava a aparecer atrás dele e cobria seus olhos com as mãos. Em seguida ela sussurrava outra canção marinha em seus ouvidos e quando tirava as mãos da frente dos olhos, lá estava a Rua do Meio. E Mário acordou.

O sonho havia durado menos de um minuto, tempo suficiente para que ele se sentisse revigorado. Trocou rápido de roupa e correu para fora de casa. Bem em frente ao seu prédio estava a Rua do Meio, que se desenrolava imensa até a praia.

Desta vez, a rua parecia completa. Estava lá a livraria, mas também estava o bar. A banca de jornais continuava próxima à esquina, e todo aquele povo ainda perambulava pela rua, jogando conversa fora. Mário foi instintivamente procurar o livreiro, para agradecê-lo e devolver o exemplar, na esperança de que ele pudesse ajudar outra pessoa. Quando esticou a mão para entregar o livro, todas as páginas se soltaram. E enquanto o jornalista ajudava o velho a catar tudo, uma página diferente chamou sua atenção. Era uma página amarela, de lista telefônica. E nela, uma linha estava sublinhada em vermelho.

“T. 323 – Rua do Meio, terceira casa, sobrado”

Era Tábata, só podia ser. “323. O que é 323?”, perguntou ao livreiro. Era o telefone, segundo ele. Apenas três algarismos. Mário sacou seu celular, mas a ligação não completou. Foi então que ele entendeu. Pediu uma moeda para o velho, correu até um orelhão da Rua do Meio e de lá ligou. O telefone chamou três vezes até que alguém atendesse. A voz era aquela mesma com que ela sonhara, aquela que se confundia com um canto marinho, com uma sereia. “Achei que você não fosse ligar”, disse Tábata.

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

A rua do meio – Tábata e um maço de Yellows (1 de 5)



Passava das duas da manhã quando Mário voltava para casa. O trabalho como repórter o agradava muito, mas alguns dias eram tão pesados que ele precisava entrar pela madrugada para terminar uma matéria. Estava exausto e uma cerveja bem gelada ajudaria muito a relaxar. O ônibus foi do Centro até Copacabana sem parar em nenhum ponto, até que o deixou em um ponto da Barata Ribeiro.

Mário morava em Copacabana desde que nascera. Primeiro em uma casa na Bolivar, depois em um apartamento na Tonelero e agora, após seu divórcio, tudo o que conseguia pagar era uma quitinete no Bairro Peixoto. Já eram trinta e cinco anos de Copacabana e ainda assim o bairro tinha a estranha capacidade de surpreendê-lo. Esta noite era um desses momentos.

Tão logo desceu do ônibus, os olhos de Mário foram capturados por uma imagem fora do comum. A rua à sua frente, que cortava a Barata Ribeiro em direção à Nossa Senhora de Copacabana, estava extremamente iluminada e cheia de gente conversando nas calçadas. Apesar da hora avançada, todo o comércio estava aberto, com alguns restaurantes, um bar, uma banca de jornais e duas lojas de roupas. Mas nem era isso o que surpreendia o jornalista. O principal problema é que a rua ficava exatamente entre a Siqueira Campos e a Hilário de Gouveia.

“Trinta e cinco anos e nunca percebi esta rua”, pensava Mário, coçando a barba. Ele tentava puxar pela memória, mas nada vinha. Não sabia que rua era aquela. Tentou procurar por uma placa de identificação, mas não achou nada. Curioso, atravessou a Barata Ribeiro e foi até a agitada nova rua.

Mário correu até a banca, para tentar conseguir algumas informações. Ao perceber que o jornaleiro não era nada amistoso, achou que era prudente comprar alguma coisa para ganhar simpatia. Puxou uma revista qualquer da prateleira e pediu um maço de cigarros. Não tinha Marlboro, não tinha Camel, não tinha nem Hollywood. Então Mário pediu qualquer marca forte, pagou e colocou no bolso. Ao perguntar que rua era aquela, ou viu como resposta “Rua do Meio”. Ainda intrigado, mas achando a própria pergunta um tanto estranha, indagou há quanto tempo aquela rua existia. “Pelo amor de Deus, meu amigo. Você deve estar brincando”, disse o jornaleiro.

Na esquina, acendeu um dos cigarros. Yellows. Uma marca que nunca ouvira falar. Andando pela calçada, esbarrou em alguns pedestres, até que parou perto de um grupo, que bebia na rua. Eles estavam tão à vontade que certamente eram frequentadores do local. O repórter ficou próximo, para tentar ouvir alguma coisa.

O assunto era política. Eles reclamavam de corrupção. Um dos homens, o que tinha o copo mais cheio e usava óculos de lentes grossas, falava que a impunidade incentivava os desvios de dinheiro e a negligência com as necessidades da população. Outro dos rapazes, de terno cinza e gravata frouxa no colarinho, alegava que a CPI não daria em nada, pois os suspeitos de lavagem de dinheiro eram do partido do presidente. “Se ao menos o presidente Lopes, que sempre defendeu a honestidade, se posicionasse...”, suspirou um terceiro sujeito.

Presidente Lopes? Que presidente era esse? O nome do presidente da República não era nem parecido com isso. Mário não era repórter de política, mas era bem informado o suficiente para saber que não existia presidente nenhum chamado Lopes no Brasil. Nem da República, nem da Câmara, do Senado, do STF ou de qualquer CPI. Devia ser só papo de bêbado. O jornalista jogou a bituca no chão, colocou a revista debaixo do braço e entrou no bar mais próximo.

No balcão, havia apenas um banco livre. E foi lá que Mário sentou. Pediu uma caneca de chope e um pacote de amendoins. E ficou ali, saboreando a bebida, enquanto folheava a revista. Era uma dessas revistas de fofoca de celebridades. Como não assistia novelas, parecia até que estava lendo algo em outra língua. Pediu para que o bartender jogasse a revista fora e lhe trouxesse outro chope.

Na televisão sobre o balcão passava uma reprise de um jogo de futebol. Já nos acréscimos do segundo tempo, o Niteroiense ganhava do Atlético do Amazonas. Mário não se conteve: “Niteroiense? Atlético do Amazonas? Que times são esses?” Com um riso, o bartender respondeu: “Realmente, já passaram jogos melhores na televisão”.

O repórter desistiu de entender qualquer coisa. Apenas continuou ali, até a bebida acabar, até não haver mais amendoim. Duas horas se passaram e os primeiros raios da manhã surgiam do lado de fora do bar. Mário virou-se para assistir à alvorada através dos vidros empoeirados do estabelecimento, quando Tábata entrou.

Tábata era uma ruiva com a pele coberta de sardas e olhos verdes cintilantes. Vestia jeans bem apertados e uma camiseta branca que permitia ver a renda do soutien. Ela sentou-se no balcão ao lado de Mário, em um banco que havia vagado poucos minutos antes, quando um homem, brigando com a mulher no celular, partiu sem deixar gorjeta. Ela pediu um drink e perguntou se o repórter tinha cigarros. “Eu tenho, mas não é permitido fumar em estabelecimentos fechados.”

Ela divertiu-se com a preocupação de Mário, mas após um aceno permissivo do bartender ela puxou um dos Yellows do maço do jornalista. “Você vem sempre aqui?”, ele perguntou. Ela sorriu, deixando-o envergonhado. “Não, pergunto para valer. Não é cantada.”

“Eu não sou uma cliente frequente, se é isso que quer saber. Gosto mais do restaurante italiano que tem aqui ao lado, mas hoje estava procurando por algo mais forte”, ela disse. Tábata tinha braços fortes e sua aparência não era nada frágil, mas quando ela ajeitou os cabelos a opinião do repórter mudou. Um pequeno corte, bem recente, sobre a sobrancelha mostrava que ela sofria nas mãos de alguém.

Mário tentou não falar sobre aquilo. Se ofereceu para pagar uma bebida para ela, mas Tábata não aceitou. Não aceitava favores de estranhos. “Meu nome é Mário. Eu sou jornalista. E nunca estive nessa rua antes.” Ainda assim ela não aceitou a bebida, mas brindaram juntos. O maço ficou sobre o balcão e alternadamente eles puxavam cigarros e acendiam. Tentaram falar sobre banalidades, mas o corte no rosto da ruiva realmente perturbava o repórter.

“Posso perguntar o que houve, Tábata?” Ela fugiu com os olhos e voltou a esconder o corte sob os cabelos encaracolados. “Não foi nada, eu...”, ela olhava para todos os lados, como se tentasse identificar quem ainda estava no bar àquela hora. Como se tentasse tomar fôlego para criar coragem, Tábata segurou forte as mãos de Mário. Mas quando parecia que ia começar a falar, um homem surgiu à porta.

Como já havia amanhecido, tudo que o repórter viu do sujeito foi a silhueta. O homem parecia ter cerca de dois metros, não tinha cabelo e o corpo era muito quadrado. Um leve tapa daquela sombra humana já seria capaz de abrir um corte em Tábata.

Nervosa, a garota acabou derrubando a bebida que estava em suas mãos. Foi apenas um segundo, mas tempo suficiente para que o sujeito quadrado sumisse da porta. Enquanto Mário buscava uma toalha para secar Tábata, ela correu para fora do bar, com Mário logo atrás dela.

Seguiram pela Rua do Meio em direção à Nossa Senhora de Copacabana. Enquanto corriam, os letreiros iam apagando e as portas dos estabelecimentos se fechavam. As folhas das amendoeiras, que antes eram bem verdes, caíam amareladas. Quando o repórter chegou na esquina, não conseguia dizer para qual direção Tábata havia ido e não via a jovem em lugar nenhum.

Parado na via principal do bairro, ele buscava nos bolsos seu maço de Yellows, mas logo lembrou que os cigarros haviam ficado sobre o balcão do bar. Foi então que virou-se para a Rua do Meio e ela já não estava mais lá. Via apenas a agência dos Correios que sempre estivera ali.

Mário não sabia exatamente o que se passara nas últimas horas, mas precisava descobrir com urgência quem era Tábata. E o que havia acontecido com ela. E, principalmente, como voltar para a Rua do Meio.

terça-feira, 9 de outubro de 2012

Renée Tulip e a noite de autógrafos



Enquanto aguardava na fila, Ricardo se lembrava do primeiro livro que havia lido de Manuel Holanda. Fora o divertido “Renée Tulip e os vasos chineses”, em uma edição de bolso já surrada pelo tempo. Na época, Ricardo não devia ter mais do que treze anos, mas se apaixonou pelas aventuras da detetive Tulip.

Depois disso, ele se tornou leitor voraz das obras de Manuel Holanda. Com avidez, acompanhou todos os casos de Renée Tulip, quer quando ela, em sua primeira aventura, desvendou o assassinato de seu pai, quer quando, em seu caso mais importante, ela foi convocada pelo secretário-geral da ONU para descobrir o paradeiro de um ex-ditador africano.

O problema é que desde a última aventura de sua detetive favorita houve um hiato de mais de dez anos. Nesse período, Manuel Holanda se converteu a uma seita apocalíptica e deixou a literatura de lado. Quando o fim do mundo, tão anunciado pelo reverendo que guiava sua crença, não se concretizou, o escritor reviu sua fé e deu uma banana para a seita. Se internou em um sítio da família nos pampas gaúchos e bateu à máquina as quatrocentas e vinte e sete páginas da nova aventura de Tulip.

O mercado editorial aguardou o resultado com temor. Ninguém sabia bem o que esperar da nova obra após o período de conversão, mas ao mesmo tempo as prateleiras necessitavam de um trabalho inédito de Holanda, um dos escritores mais traduzidos da história da língua portuguesa. Até que as vendas começassem, naquela quinta-feira em que Ricardo aguardava na fila, o grande público nada sabia do conteúdo do livro.

A aventura chamava-se “Renée Tulip e o pacto demoníaco”. A detetive descobre que seu nêmesis, Clark Karamasov, o assassino de seu pai, se juntou a um grupo de terroristas para destruir a humanidade. Renée se vê então obrigada a ir até o inferno e fazer um pacto com o demônio para evitar as mortes. No fim, o demônio ressurge para cobrar a alma da detetive, que é salva pelo sacrifício de John Bacon, seu ex-marido, de quem ela não sabia o paradeiro há quase uma década.

Enquanto aguardava na fila, muito longa dado o intervalo desde a última publicação e o contingente crescente de fãs no período, Ricardo teve tempo para ler três dos doze capítulos. Já estava até pensando em discutir um pouco da obra quando chegasse sua vez de pedir um autógrafo com dedicatória a Manuel Holanda.

Cansado, caminhando passo a passo na imensa fila que saía da Biblioteca Nacional e seguia pela Rio Branco, dobrava na Araújo Porto Alegre e novamente na Rua México, o grande fã da detetive Tulip se assustou quando uma gota caiu em uma das páginas do livro. E depois mais uma gota. e outra. até que se fez a chuva. De dentro da Biblioteca, um funcionário saiu com alguns pedaços de papel, senhas, que distribuiu para os primeiros da fila, garantindo sua entrada na noite de autógrafos. Ricardo não conseguiu pegar.

No metrô, frustrado, ele evitava mexer no livro úmido com medo de estragar as páginas. Foi para Ipanema e de lá para o Leblon, onde entrou em uma livraria que nunca fechava. Sentou-se no café, ao fundo, e lanchou. E continuou lendo a história do pacto demoníaco de Renée.

Lá pelas tantas, no começo da madrugada, um sujeito gordo, cabelos brancos e barba grossa, entrou na livraria. Tirou o chapéu e a capa de chuva e cumprimentou pelo nome os funcionários do estabelecimento. Era Manuel Holanda. O escritor. O verdadeiro pai de Renée. Vizinho da livraria e vizinho de Ricardo, ainda que ele nunca tivesse sabido disso.

Ricardo pagou a conta, colocou o livro debaixo do braço, e cautelosamente seguiu Manuel pela livraria. Queria saber o que o escritor lia, quais eram suas influências. Será que compraria algo de Arthur Conan Doyle? O fã suava com a proximidade do artista.

Manuel Holanda andou pelos corredores por quase meia hora. Nesse tempo, tirou das prateleiras um guia de viagem da Itália, um dicionário italiano-português, um livro sobre as obras de arte do Vaticano e uma caderneta pautada. Talvez estivesse planejando uma viagem a Roma. Ou, o mais provável, estaria pensando em enviar Renée Tulip para a Itália.

Após checar se ainda chovia, o autor pagou pelos produtos, colocou seu chapéu, agarrou a capa de chuva e partiu, com Ricardo sempre atrás dele. Agora, estava apenas curioso para saber onde Manuel morava, mas ainda pretendia pedir uma dedicatória em seu livro. Talvez algo como “Para Ricardo, o maior parceiro de Renée em todos estes anos, que esta aventura lhe incentive a recriar seu próprio mundo” ou “Para o amigo Ricardo, leitor voraz de minha obra, meus sinceros agradecimentos”.

Em uma esquina escura, Manuel Holanda apenas parou. Não havia carros passando, mas ele também não atravessava a rua. O escritor segurou sua sacola com força, ajeitou o chapéu na cabeça, enegrecendo os olhos, e virou-se para trás. “Por quanto tempo vai me seguir, garoto?”, a voz grave de Manuel ecoou pela rua vazia.

Sem graça e surpreso, Ricardo pediu desculpa. Se identificou como fã e começou a citar seus livros favoritos de Renée Tulip. “Eu sei o nome dos meus livros”, interrompeu o autor. “Me diga o que você quer ou pare de me seguir.”

A voz falhou, mas Ricardo puxou do sovaco o livro, já com a sobrecapa descascando pelo banho de algumas horas antes. “A noite de autógrafos já terminou, garoto”, esbravejou. “Por favor, senhor. Eu fiquei horas na fila da Biblioteca Nacional. Peguei chuva e quase estraguei o livro. A sua obra é muito importante para mim”, disse Ricardo.

Impaciente, Manuel pegou o livro, rabiscou algumas palavras na página três e jogou o exemplar de volta para Ricardo. Com um largo sorriso,o fã correu para ver o que estava escrito, mas se decepcionou com a dedicatória. “Odeio dar autógrafos?”, repetiu confuso enquanto lia. “Isso mesmo, garoto”, gritou um pouco de longe o escritor, “e pare de me seguir”.

As pernas pesavam, era difícil andar naquele momento. Arrasado, Ricardo nem sabia se queria continuar a ler as aventuras da detetive. Em casa, sentou-se com a roupa molhada na cama e automaticamente ligou a televisão. Uma matéria falava sobre o lançamento de “Renée Tulip e o pacto demoníaco”. Faltavam forças até para desligar o aparelho, então Ricardo assistiu.

Na matéria, muitos fãs comentavam o quanto adoravam Manuel Holanda e o quanto o escritor havia sido amável nos poucos segundo em que estiveram próximos. E três dos fãs mostraram juntos a dedicatória do autor: “Com carinho, Manuel Holanda”. Tão simples quanto simplório.

Ricardo deitou-se na cama com as pernas para fora. Num muxoxo, puxou o livro e começou a folheá-lo. “Pelo menos minha dedicatória foi original”, pensou.

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

O Homem-Maravilha



Era difícil conciliar os dois empregos. Há vinte anos, quando tudo começou, parecia que seria tranquilo, mas tudo foi piorando com o tempo. A vida de José Maurício, mais conhecido como Homem-Maravilha, ficava mais complicada a cada dia e ele sabia de quem era a culpa.

Morador de uma cidadezinha do interior de Minas Gerais, José Maurício sempre foi respeitado por onde passava. Seu pai, durante muitos anos, fora o único médico de toda a região. Quer no colégio, na igreja ou na pracinha, todos tratavam o rapaz da melhor forma possível, pois eram extremamente gratos ao trabalho do doutor Carlos Alberto, seu pai.

Desde a mais tenra idade, José Maurício sempre quis ser médico, seguindo os caminhos do pai. O que ele nunca soube era se aquele desejo era natural, surgido da admiração que sentia por Carlos Alberto, ou se foi uma pequena lavagem cerebral feita dentro da própria casa.

Tudo parecia se encaminhar para o óbvio, até que o Grande Circo Fantástico das Maravilhas chegou à cidade. Naquela época, aos 15 anos, José Maurício já não tinha mais idade para se empolgar com a chegada do circo, mas pela profunda falta do que fazer acabou indo ao espetáculo da primeira noite.

Durante uma hora e vinte minutos ele assistiu a apresentação. Deu algumas risadas com o palhaço, se impressionou um pouco com os malabaristas, arregalou os olhos com o mágico e sua assistente e deu um leve bocejo durante a apresentação dos tigres amestrados. Mas foi com os saltos dos trapezistas que sua vida mudou.

Jana, a Dama dos Ares, e Ruy, o Príncipe do Trapézio, faziam o último show da noite no Grande Circo Fantástico das Maravilhas. Eles balançavam de um lado para o outro e se jogavam para a morte certa, apenas para logo em seguida serem salvos pela mão do companheiro. Faziam piruetas que encantavam a todos os presentes. E o coração de José Maurício parava e voltava a bater a cada novo movimento.

Na hora de voltar para casa, dispensou a companhia dos amigos. Ficou vagando em torno do circo até que a última pessoa fosse embora. Com as luzes já apagadas, ele adentrou à lona maior, caminhou no picadeiro e ficou sentado na arquibancada admirando os trapézios que pendulavam sozinhos.

Em casa, encarou o pai e disse que não queria mais ser médico. Aquela não era sua vocação. Preferia ser artista, queria se juntar ao circo. Levou uma surra de cinto de couro que deixou marcas por duas semanas em suas costas. Quando as marcas sumiram, ele já não estava mais na cidade. Foi até um município vizinho onde agora o circo se apresentava.

Três anos mais tarde, durante uma curta estadia em Belo Horizonte, José Maurício, o Homem-Maravilha, ouvia o público gritar seu nome enquanto saltava de um lado para o outro sobre os espectadores. Via os rostos passando em alta velocidade à sua frente, mas conseguia identificar os sorrisos e as unhas sendo roídas. Estava realizado.

Naquela noite, contudo, seu destino daria uma nova guinada. Ao entrar em seu trailer, encontrou o pai o esperando. O doutor Carlos Alberto parecia pelo menos dez anos mais velho, com os bigodes muito brancos e os cabelos despenteados. Com a força que ainda tinha, carregou o rapaz de volta pro interior, de volta no tempo para quando não tinha a liberdade dos trapézios.

Na casa onde cresceu, José Maurício foi infeliz. Queria voltar para o circo, mas o pai fazia questão que ele terminasse os estudos e fosse para a faculdade se tornar também um doutor. As palavras do pai entravam por um ouvido e saíam pelo outro, até que uma frase o fez refletir. “Meu filho”, disse Carlos Alberto, “essa cidade precisa de você. Eu estou ficando velho e em breve eles não terão mais quem possa tomar conta da saúde de tantas crianças e tantos idosos. Siga meus passos e proteja essa cidade que sempre te amou.”

José Maurício deixou o Homem-Maravilha de lado por algum tempo e foi para São Paulo estudar. Voltou para Minas alguns anos depois, já vestido de jaleco branco. Mas à noite, quando o céu escurecia, o jovem médico ficava na janela, lembrando como era voar.

Um dia, já casado e com filhos, uma fila enorme de pacientes para atender, o médico foi obrigado a abandonar o hospital. Seu pai, muito debilitado, havia morrido em casa. Ele enterrou o velho, arrumou as malas e foi atrás do circo outra vez. Mas, nesse momento, a vida de trapezista já não era tudo. Foi então que optou pela jornada dupla.

Todas as manhãs, José Maurício se despedia da mulher, deixava os filhos no colégio, trabalhava até o meio da tarde, quando então pegava seu carro, dirigia até uma das cidades vizinhas e se apresentava com o Grande Circo Fantástico das Maravilhas. Tinha o pé no chão durante o dia e voava à noite.

Os filhos achavam graça dos dois empregos do pai, mas o admiravam. No começo, parecia que tudo seria fácil, mas as coisas se complicaram. Nem médico nem artista circense podem se dar ao luxo de descansar nos finais de semana e enquanto um trabalho exigia estudo constante o outro demandava exercícios físicos. Os anos se passavam e José Maurício só via sua rotina se endurecer. Era preciso parar.

No dia de sua aposentadoria do picadeiro, a apresentação foi em sua cidade natal. Todo o povo estava lá para ver o último voo do filho do doutor Carlos Alberto. E o Homem-Maravilha estava especialmente maravilhoso naquela noite. Saltou mais alto do que nunca, brincou com os trapézios no ar, sentiu o vento roçando em seu rosto e deu um salto mortal que deixou a todos sem fôlego.

No último momento da apresentação, a emoção falou mais forte e a técnica acabou ficando em segundo plano. Num giro, a mão de José Maurício escorregou e ele caiu. Como sempre se apresentou sem as redes, acabou se chocando contra o chão, Um barulho seco foi ouvido por todos quando a cabeça do trapezista quicou no chão. Sua mulher gritava e seus filhos não sabiam o que fazer. Ainda tentaram levá-lo para o hospital, mas não havia médico naquela noite. O único da cidade fazia sua despedida do Grande Circo Fantástico das Maravilhas.