segunda-feira, 11 de agosto de 2008

Antiquário

O homem parou por alguns minutos na frente da loja, repensando se deveria seguir o conselho do amigo. Que mal faria?, ele pensava. Um amigo conseguiu fama e dinheiro e atribuía tudo à loja em questão. Mesmo assim, se recusava a dizer quais artigos eram vendidos. “Você precisa ir até lá para crer”, disse. O homem estufou o peito, criou coragem e entrou.
A loja era realmente bonita. Alguns lustres de cristal, canapés franceses, uma penteadeira e um divã. Mais parecia um quarto mal decorado do que uma loja, mas mesmo assim tinha certo charme. Um senhor de longas barbas brancas o recebeu e o indicou o caminho até uma escrivaninha. Todo o lugar era coberto por papel de parede, das mais diversas cores e estampas.

- Em que posso ser útil?, interrogou o lojista.
- Na verdade, eu não sei.
- Não seja tímido – disse o velho enquanto limpava os óculos em um antigo lenço com monograma. – Pode me dizer o que veio procurar.
- Não sei ao certo. Vim por indicação de um amigo. Ele disse que conseguiu sucesso e fortuna no seu estabelecimento.
- Sim, me lembro. Mas isso não é garantido. É o que você quer? Dinheiro? Sucesso?
- O que mais eu posso querer?
- Não sei. São inúmeras as possibilidades... Por que não me diz o que você já tem?
- O que eu já tenho?
- Sim. Me conte o seu passado.
- Não lhe entendo – retrucou o homem.
- Seu passado. Afinal, somos uma loja de passado.
- Me perdoe, senhor, mas cada vez entendo menos.
- Compreendo, compreendo. Na certa seu amigo não lhe disse qual era a nossa matéria-prima. Somos vendedores de passado. Fique a vontade, dê uma volta pela loja. Creio que vai acabar encontrando algo que goste.

“Um antiquário?”, indagou-se o homem. “Como meu amigo conseguiria fama e riqueza em um antiquário?”
Deu uma volta pelo estabelecimento, ainda que contrariado. Olhou alguns bibelôs e porta-retratos, mas o que mais lhe impressionou foi o vasto acervo de fotos.

- Vejo que encontrou nosso tesouro – comentou o velho, mais empolgado do que deveria estar. – Vê algo que lhe interessa?
- Como assim? Não consigo entender onde quer chegar...
- Esta aqui, por exemplo – divagou o vendedor. Em suas mãos, o retrato de uma mulher muito bonita sentada em uma cadeira de praia. – Posso dizer que te serve, é o seu número. Não me entenda mal, não estou sugerindo que seja a mulher, mas ela poderia ser sua irmã. Ou melhor, uma ex-namorada.
- Onde quer chegar, senhor.
- Leve a foto. Ela pode lhe servir.
- Mas é uma mulher que eu nem conheço.
- Temos outros exemplares. Fotos de grupo; podem ser seus amigos. Um cavalo; um exótico animal de estimação. Uma casa; quem sabe não foi onde passou a infância?
- Vocês vendem fotos para eu dizer que são minhas?
- Nada disso... Nosso comércio apenas começa com as fotos. Esta aqui, se me permite, é valiosíssima – disse o vendedor com uma foto de um casal com um menino na Itália. – Além da foto, podemos conseguir as passagens de avião da época, reservas em hotel... Com uma gorjeta gorda, até consigo um globo de neve com o Coliseu.
- Uma viagem falsa da minha infância?
- Não. Será muito verdadeira. Note, uma vez, vendi um casamento com uma chinesa para um senhor que mora nas redondezas. A história era tão boa que um dia ele me encontrou na rua e me contou sobre a lua de mel. Acho que até ele já acreditava no falso casamento.
- Não quero uma viagem de mentira!
- Se levar a moça na cadeira de praia, lhe dou de brinde uma carta apaixonada de despedida. E com a casa antiga, lhe apresento a um rapaz que confirmaria que vocês foram vizinhos.
- Desculpe, senhor. Acho que foi um engano ter vindo aqui.

O homem deu as costas ao vendedor e partiu para fora da loja. Já fazia sinal para um táxi quando, sem querer, olhou a vitrine. Lá, uma foto desbotada lhe chamou a atenção. Voltou correndo para o estabelecimento e indagou ao velho:
- E quanto àquela da vitrine?
- O bebê?
- É... Eu sou divorciado e nunca tive um filho... Talvez fosse uma boa idéia.
- Claro. Não está entre os itens mais vendidos, mas quem comprou uma sempre volta para olhar as novidades. Um dos nossos clientes foi tão bem sucedido que até conseguiu o próprio filho. E já passava dos sessenta, o pobre diabo. Sabe o que ele fez? Me deu uma fotografia do menino dele. Mas este não é o caso. Se quiser a foto, tenho um pacote completo. Chupeta, certidão de nascimento, teste do pezinho, tudo. E como fui com a sua cara, te vendo um álbum com vinte retratos por um preço especial. No final, tem dois telefones. Se ligar para eles, um casal confirmará que foram os padrinhos da criança.
- Mas o que aconteceu com o menino? O que ele faz hoje, quantos anos tem?
- Isso depende do senhor. Nós vendemos passado, não presente e futuro.
- Está bem, eu penso em algo. Quanto é?
- Depende... Qual a forma de pagamento?
- Cartão de crédito.
- Lamento, senhor. Só aceitamos cruzeiro, cruzado e contos de réis.

terça-feira, 5 de agosto de 2008

Biografia


Faltava o final, lhe disse seu editor. O escritor decidira redigir sua biografia por acreditar que já estava muito perto da morte. Beirando os oitenta anos, muito do que se passara com ele, já não tinha mais testemunhas, a não ser o próprio escritor. Foi para sua casa de praia e durante dois meses contou toda a sua vida: a infância difícil, as brigas com os pais, a fuga de casa, o aprendizado com velhos professores, namoros, o casamento, consagração na carreira, abandono dos filhos, velhice. Era um calhamaço de mais de setecentas páginas, mas que não tinha fim, de acordo com o editor.

“Não me leve a mal, meu caro, mas da metade em diante o livro é totalmente morto. O último clímax é o seu casamento, e isso aconteceu na página quatrocentos e quatorze. Nem a morte de sua esposa foi um evento memorável. Não é possível que você não teve nenhum caso, uma experiência religiosa que mudou sua vida ou foi roubado pelo antigo empresário”, reclamou o editor. A verdade é que, muito caseiro, a vida do escritor nos últimos anos se resumia a ler, comer e dormir.

Determinado a dar um desfecho glorioso à sua obra então recusada, o escritor estava disposto a dar cabo da própria vida. Foi à farmácia, comprou alguns comprimidos de tarja preta com receita falsificada e sentou à máquina de escrever. Lá, descreveu como tomou cada uma das pílulas, como rolou pelo chão em agonia, como viu sua vida passar diante dos olhos e como só foi encontrado quase uma semana depois pela arrumadeira. Ao colocar o ponto final no texto, tomou seus comprimidos e apagou. Acordou algumas horas mais tarde no hospital com uma úlcera.

Ao retornar para casa, tentou bolar um meio mais eficiente de morrer, afinal não poderia correr o risco de piorar sua condição gástrica no caso de novo fracasso. Tentou enforcar-se, mas a corda rompeu. Pensou em um acidente de carro, mas não sabia dirigir. Cogitou um tiro na cabeça, mas tinha horror a armas de fogo. Tentou cortar os pulsos, mas desmaiou ao ver a primeira gota de sangue. Contratou um assassino de aluguel, mas este acabou preso antes de executar o serviço. Ao final de cada tentativa, as páginas recém escritas com o final apoteótico e a vida lhe passando diante dos olhos antes da derradeira escuridão eram devidamente descartadas.

Sem solução para o fim do livro, desistiu. Naquela mesma noite, deitou-se para dormir e acordou apenas para dar seu último suspiro, por volta das cinco da manhã. O corpo foi encontrado pela arrumadeira. O livro, sem conclusão, jamais foi publicado. E o pior: o escritor jamais viu sua vida passar diante de seus olhos.