quarta-feira, 30 de julho de 2008

Bom dia


- Consultório da Doutora Carolina.
- Bom dia.
- Bom dia, Paco.

Zefa olhou no relógio. Nove horas, como de costume. Todos os dias, verão ou inverno, chovendo ou fazendo sol, ela recebia a mesma ligação. Há três anos. Um homem chamado Paco ligava, dizia “bom dia”, aguardava a resposta e desligava. Nas primeiras vezes, ela chegou a achar estranho.

- Consultório da Doutora Carolina.
- Bom dia – disse uma voz trêmula e um pouco rouca.
- Bom dia. Em que posso ajudar...?

O telefone já havia sido desligado. Zefa chegou a comentar com algumas pacientes a estranheza daquela ligação. O homem não se identificou, não disse o que queria, não pediu informação. Certamente, não seria engano. Ele não pediu desculpa, não disse que ligou para o número errado. Disse apenas “bom dia”.

No dia seguinte, nove em ponto, o telefone tocou novamente e, novamente, repetiu-se a cena. Lá pelo quinto dia, Zefa já supunha ser o estranho visitante.

- Consultório da Doutora Carolina.
- Bom dia.
- Antes de lhe responder, gostaria de saber o seu nome. Já que vamos nos cumprimentar toda manhã, quero saber para quem respondo.

O homem nada disse. Pelo telefone, Zefa ouvia apenas a respiração, um pouco impaciente. Sem saber ao certo o que fazer, ela apenas disse:
- Bom dia.
E o telefone foi desligado. Qual não foi sua surpresa, quando, na segunda-feira, seu interlocutor se apresentou.
- Consultoria da Doutora Carolina.
- Bom dia.
- Bom dia.
- Meu nome é Paco.
- Prazer, Paco. Eu sou a Zefa.

Assim começou esta estranha relação. Nunca conversaram, não sabiam nada um do outro. A outra única vez em que trocaram mais do que a saudação matutina foi quando Zefa lhe deu seu telefone de casa.
- Paco, não desligue. Vou te passar o meu número pessoal. É que eu só trabalho aqui de segunda a sexta-feira. Você pode querer me ligar no final de semana também.
Dito e feito. No sábado seguinte, Paco ligou para a casa da recepcionista aguardando seu tradicional “bom dia”.

Para paco, a história começou muito tempo antes. Na verdade, assim que ele nasceu. Sua mãe lhe acordava todos os dias com um beijo na testa e um “bom dia” sincero, que lhe alegrava muito além da simples manhã. Nunca precisou de um “boa tarde” ou “boa noite”. O “bom dia” já era completo.

Quando fez vinte e cinco anos, sua mãe faleceu. Foi difícil para Paco, mas ele se adaptou a aprendeu a viver sem a progenitora. Afinal, já estava casado e tinha a esposa para, às nove da manhã, lhe desejar um “bom dia”. Foram bons os anos de matrimônio, mas a mão do destino lhe levou a mulher, largando-o sozinho, sem filhos, sem amigos, sem “bom dia”. Foi nessa época que as ligações começaram. Paco escolheu um número aleatoriamente:
- Alô?
- Bom dia.
- Quer falar com quem?

E ele desligava. Por dias e dias insistiu. Semanas e meses se passaram sem que ele conseguisse de alguém a saudação que tanto aguardava. Havia sempre um “quer falar com quem”, “o que deseja”, “pois não”, outro “alô”. Isso quando não ganhava um palavrão ou batiam o telefone no gancho. Foi escolhendo os números a esmo até que ouviu, do outro lado:
- É o cara do “bom dia” de novo? Por que é que volta e meia você insiste em ligar para mim?

Neste dia, paco decidiu fazer uma lista dos telefones que ligava. Por mais que tentasse, seu esforço era em vão. Pareciam todos hostis ao seu cumprimento. Todos ressabiados, com medo de uma brincadeira, de um trote. Suas manhãs foram tormentos até que ouviu as palavras mágicas:
- Consultório da Doutora Carolina.

Paco já estava sem esperanças. Talvez o mundo fosse um lugar inóspito para um adicto em “bom dia” como ele. Decidiu: se esta moça não responder, eu não insisto mais.
- Bom dia.
O coração gelou por um segundo. Apesar de ter decidido que poria fim aos telefonemas, ainda não sabia qual seria seu destino. Apenas deixaria de ligar ou encerraria todas as suas atividades?
- Bom dia. Em que posso ajudar...?

Em nada.
Já havia ajudado o bastante.
Alívio.
Paco voltou a ligar no dia seguinte e no outro e no outro. Pela primeira vez, continuava a receber respostas. Pela primeira vez, tinha bons dias. Ele chegou a ficar nervoso quando a recepcionista perguntou seu nome. Era uma sexta-feira. Paco passou o final de semana nervoso. Deveria responder? Ele achava melhor não. Não queria ir além daquilo. E se ela deixar de falar? Então, era melhor dizer o nome. Após as devidas apresentações, Paco sentiu que voltava a ter um relacionamento, ainda que virtual.

Para Zefa, as ligações de Paco já faziam parte de seu cotidiano. Tanto que, numa terça-feira, quando a paciente das nove e meia chegou para a consulta e o telefona ainda não havia tocado, ela se preocupou. Na certa, Paco teria dormido até mais tarde. Que nada. Ela esperou a ligação o dia todo. No dia seguinte, a mesma coisa.
No terceiro dia, Zefa arregaçou as mangas e foi à luta. Precisava, a qualquer custo, descobrir o que estava se passando com Paco. Estava doente? Estava viajando? Havia morrido? Havia se matado? Ela arrependeu-se de não ter perguntado o sobrenome dele, ou onde ele morava, ou qual era seu telefone. Tudo que ela sabia era que ele ligava às nove, sem falta, sem atraso.

A recepcionista sacou seu caderninho de telefones e ligou para uma cliente da Doutora Carolina que trabalhava na companhia telefônica. Queria a qualquer custo saber o paradeiro de Paco. A moça titubeou, disse que era ilegal, antiético, que poderiam demiti-la se descobrissem, mas acabou cedendo. Deu o nome completo de Paco, o endereço de seu apartamento, o número de seu telefone. Zefa começou tentando ligar para ele, mas não conseguiu resposta. Após o expediente, foi à casa dele, mas ninguém atendeu à campainha. Com seu nome, visitou hospitais e o instituto médico legal. Ninguém soube dizer o que aconteceu. Zefa se preocupou, como se ele fosse um amigo verdadeiro ou um membro da família. Chegou a perder duas noites em claro, só pensando nas possibilidades. Nunca chegou à uma conclusão.

Muito tempo passou, cerca de um ano, e Zefa acabou enterrando em sua memória as chamadas de Paco. Evitava pensar no amigo invisível, mas quando o relógio avisava que chegaram as nove horas, seu coração batia apertado. Num desses dias, ela estava sentada em sua mesa, na recepção do consultório. O telefone tocou, na exata hora cheia e ela atendeu cheia de esperanças.

- Alô? Consultoria da Doutora Carolina. Zefa falando.
Uma voz de mulher respondeu:
- Desculpa, querida. Foi engano.

Ela baixou a cabeça e fechou os olhos. Quase um ano depois, deixou-se contagiar por um telefonema, que poderia ser de qualquer um. Enquanto lamentava, a maçaneta da porta girou, deixando entrar um senhor de uns sessenta anos. Com sua bengala em punho, ele se aproximou vagarosamente.

- Pois não, senhor? Em que posso ajuda-lo?
- Bom dia.
Zefa reconheceu imediatamente a voz rouca a trêmula.
- Paco?
- Sou eu, Zefa.
- Nossa... Já faz um ano. O que aconteceu com você?
- Muita coisa, Zefa.
- Nossa... Eu estou tão nervosa. Cheguei a pensar que você tinha morrido.
- Eu estou bem, Zefa.
- Você precisa me contar o que aconteceu. Tudo. Tudo!
- Só se você me permitir lhe pagar uma xícara de café.
- Claro, Paco. Eu saiu às quatro da tarde.
- Eu passo para lhe buscar.

Paco se afastou, caminhando para a porta. Zefa sentiu um grande alívio tomar conta de seu corpo. E uma ansiedade louca de que as quatro horas chegasse. Ao se dar conta de um detalhe, ela levantou correndo e foi até o corredor do edifício. Paco já estava entrando no elevador.

- Paco, Paco – ela gritou.
- O que foi, Zefa?
- Eu já ia me esquecendo... Bom dia!
- Bom dia, Zefa. E obrigado.

segunda-feira, 28 de julho de 2008

Zé Maria

Não era sempre que seu José Maria se apresentava com tanta empolgação. Aliás, nem sequer gostava de seu nome. Penou no colégio com tantas brincadeiras envolvendo seu nome do meio. Os meninos debochavam, dizendo “lá vem Maria” toda vez que ele cruzava o corredor. Talvez por isso, ou pela falta de capacidade intelectual, abandonou o colégio sem ter completado a sexta série do ensino fundamental. Depois do colégio, fez bico como entregador de pães para ajudar a mãe a sustentar a casa. Zé Maria tinha sete irmãos, sem falar de uma prima que morava com ele e do avô inválido, incapacitado de qualquer tarefa. Foi aos dezessete que decidiu ser porteiro. “Por vocação e opção”, dizia ele, sem saber ao certo o que era vocação e colocando um “i” entre o “p” e o “ç” de “opção”. Repetia a frase que ouvira de um padre durante um sermão. Padre Saulo. Rezava a maioria das missas na paróquia em que Zé Maria freqüentava com a mãe, o batalhão de irmãos, a prima e o avô inválido. Padre Saulo se envolveu com a esposa de um dos messes durante um retiro em Vargem Grande. Um escândalo. Na época, Zé não entendeu, mas pelo pouco que lembra, tenta refazer a história. Hoje em dia, Padre Saulo é pastor de igreja evangélica. Mudou seu nome para Paulo, simbolizando sua transformação. Vive com a esposa do messe, que não é mais esposa do messe, mas corre à boca pequena que ele sai com outras esposas de outros messes. Pastor Paulo. Ainda outro dia Zé cruzou com ele na rua, mas a longa barba não deixou que o Pastor fosse reconhecido. Isso não vem ao caso.

O caso é que numa bela tarde chuvosa de um mês qualquer do último ano do século vinte (sim, uma bela tarde), uma jovem entrou na portaria de Zé Maria. A portaria não era dele. Era do prédio. Prédio este em que ele só trabalhava duas vezes por semana. Nas terças à tarde e nas quintas de madrugada, quando apenas dormia, com os braços apoiados sobre a escrivaninha. Mesmo assim, Zé dizia “minha portaria” e enchia a boca, como se aquela portaria ocupada por ele doze horas por semana fosse tudo o que ele tivesse. Era quase isso. Além da portaria deste prédio e de mais dois, somando no total cinqüenta e quatro horas semanais de trabalho mal remunerado e sem carteira assinada, Zé possuía um Fiat 147, enguiçado e enferrujado, modelo “mil novecentos e guaraná de rolha”, como dizia para os amigos, sem entender bem o que a rolha tinha a ver com o guaraná, e um quartinho no fundo do barraco da prima, onde também morava o avô inválido, que para a surpresa de todos, ainda estava vivo, beirando o centenário. Sendo assim, era cabível que Zé Maria tomasse aquela portaria emprestada para ele duas vezes por semana, nas tardes de terça e nas madrugadas de quinta.

Retomando a narrativa: a jovem sorria para ele e perguntava por um morador que ele não conhecia, sendo assim, não sabia se estava ou não em casa. A jovem era realmente bonita. Zé não se lembrava de ter falado com muita gente bonita. Conheceu algumas de vista, mas não falou com nenhuma, exceto pelo seu trabalho nas portarias. Ele se lembrava de uma menina, ainda em seu colégio. Pensou em pedi-la em namoro, mas ela era mais uma a engrossar o coro que debochava de seu nome meio masculino, meio feminino. Lembrava, também, da mulher do messe, que agora era mulher do Pastor, se é que ainda era. A mulher do messe era bonita e não era de se admirar que o Padre Saulo caísse de amores por ela. Ou era, tendo em vista que ele dizia nos sermões dominicais que era padre por vocação e por opção. Zé achava a prima bonita, embora evitasse pensar nisso e pedia a Deus para afastar qualquer pensamento libidinoso de sua mente, principalmente algum que sua mãe, agora finada, desaprovasse. A mãe, como já dito, finada, também tinha sua beleza, mas Zé acreditava que ela era bonita apenas por ser sua mãe. Mãe é sempre bonita. Aliás, a mãe de seu vizinho Ronaldo, dona Esperança, também era bonita. Fora estas, as moradoras dos prédios também eram bonitas, mas tinham uma beleza de Zona Sul, onde todas as meninas são bonitas, mas todas as meninas são iguais.

A bela jovem, ainda sorrindo, pois antes ela estava sorrindo, o que a deixava mais bela, insistiu. O nome dele é Luís Maurício, e repetia e dizia “o senhor deve conhecê-lo, tem um carro vermelho e um corte de cabelo moderno”. Mas Zé não prestava atenção nas palavras. Apenas no movimento dos lábios. Admirava a poesia daquele movimento, embora não achasse poesia alguma naquilo ou tivesse lido algum poema na vida. Sabia os primeiros versos do hino do Botafogo e sabia que batatinha quando nasce esparrama pelo chão, mas nunca visualizou a cena da batatinha nascendo e se esparramando pelo chão. Mas isso não importava. O que importava era a jovem tentando manter o sorriso, a simpatia e a educação. Pela cabeça de Zé, não passava moço com carro moderno ou cabelo vermelho. E ela repetia “talvez você não o conheça pelo nome” e Zé só ouvia “o nome” e estufou o peito e pensou nas mulheres bonitas e nos sermões de Padre Saulo e nos meninos do colégio e disse “José Maria”.

Era uma bela tarde chuvosa de um mês qualquer do último ano do século vinte. A jovem sorria e Zé nem mais se lembrava do resto todo e poderia repetir pelo resto da tarde ou até a bela jovem ir embora: “José Maria. Meu nome é José Maria”.

segunda-feira, 21 de julho de 2008

Ainda um menino


Ainda ontem achei debaixo da cama algo que tinha perdido há muito tempo. Já nem me lembrava direito que era meu; poderia ser de qualquer um. Estava empoeirado, meio amassado e até cheirava mal. Era o meu medo de escuro. Decidi usá-lo outra vez, afinal no passado ele teve certa utilidade. Me lembro que minha mãe ficava do meu lado, sentada na beirada da cama, cantando e lendo enquanto eu não adormecia.

Quando minha mulher viu, pôs-se a rir. “O que um homem deste tamanho vai fazer com medo de escuro? Você vai ser a piada da repartição.” A verdade é que quando a noite veio e eu precisei de um abraço apertado para me acalmar e dormir, ela não achou tão ruim assim.

No dia seguinte, vasculhei armários, gavetas velhas, malas de viagem, qualquer canto em busca de um fragmento perdido de minha inocência. Entre algumas roupas antigas, achei a capacidade de fantasiar que havia perdido na adolescência. Meus filhos riram de mim, com o lençol amarrado no pescoço e a cueca por cima da calça, gritando que era um super-herói e podia voar. Mas logo, lá estavam eles, rolando na grama do jardim comigo, num duelo mortal entre piratas e alienígenas.

Numa prateleira da sala, achei minha curiosidade. Estava achatada, apertada dentro de um livro antigo, mas ainda dava para usar. Vesti e fui correndo para a casa da minha mãe. Perguntei como ela tem passado, o que tem feito de bom, como andam suas amigas, a quantas anda sua saúde. Mesmo surpresa, ela não perdeu tempo; passou toda uma tarde me contando cada detalhe de seus dias mais recentes.

Foi então que eu me lembrei de uma caixa. Uma velha caixa que eu guardava no alto do armário. Ela estava vazia há muitos anos. Foi dentro dela, ainda um menino, que encontrei a maturidade. Foi dentro dela que consegui a coragem para procurar emprego, que achei a responsabilidade para me casar, de onde tirei a força para criar dois filhos. Olhando para a caixa, tirei meu medo de escuro, minha capacidade de fantasiar, minha curiosidade infantil. Tampei e guardei de volta em cima do armário. Minha família nunca notou a diferença e nunca vai notar. Se algum dia eu precisar, minhas relíquias estarão me esperando muito bem guardadas, mas por enquanto eu tenho tudo o que preciso.

domingo, 20 de julho de 2008

A vida é uma campanha publicitária de cerveja


Sentado no bar, com os amigos de sempre, Adalberto pensava. De um segundo para o outro, tinha perdido completamente a atenção na conversa. Mergulhava novamente em seu pensamento mais freqüente: uma frase de impacto. Desde sempre ele ouvia as frases que seus amigos diziam e era incapaz de dizer umazinha sequer. Deu-se conta, pela primeira vez, em um jantar em sua casa. A ocasião era o seu aniversário. Estavam lá os mesmos de sempre: Marcos, que era seu amigo desde a infância, Gomes, reclamando feito um velho, e o gordo que sempre usava camisas listradas na vertical – uma tentativa desesperada de parecer mais magro.

Adalberto passara toda a tarde preparando a comida e a sobremesa. Aos amigos, coube unicamente trazer a bebida. Isso eles bem sabiam fazer. No caminho, passaram em um supermercado e encheram o carrinho de latas de cerveja, umas garrafas de cachaça e um galão de vinho, que era para acompanhar a comida. Era bebida suficiente para um churrasco de trinta pessoas, mas pouco para os três amigos de Adalberto.

Se seus amigos tinham o costume de citar frases, ele nunca tinha notado. A primeira que ouviu, saiu da boca de Gomes. A frase foi antecedida por um “é como dizia Manuel Bandeira”, e pronto. Adalberto não se lembra da frase. Nunca lembrou. Talvez nem a tenha ouvido no dia. Nem sabe o que foi dito em seguida. Ele começou a escavar sua mente e chegou à conclusão de que nunca soube dizer uma frase.

Geralmente, as citações eram famosas. O gordo era o que mais clamava os imortais. E de todos os gêneros e correntes. Era um tal de “de acordo com Sartre”, “já dizia Fernando Pessoa”, “citando Drummond”, “parafraseando Santo Agostinho” e tantos outros que nem podem ser lembrados por Adalberto. O maldito gordo sempre tinha uma frase na manga. Mas o gordo tornou-se previsível.

Um belo dia, Adalberto notou uma frase de Clarice Linspector em meio às comemorações do aniversário de casamento de Marcos. Adalberto, que era o maior fã das frases, percebeu que, pelo terceiro ano consecutivo, a frase era dita no aniversário de casamento de Marcos. Depois disso, o perspicaz Adalberto reparou que as frases se repetiam nos mesmos dias, no decorrer dos anos. A culpa era de uma agenda, que o gordo de camisa listrada sempre carregava debaixo do braço, tal uma bíblia.

Aliás, a Bíblia Sagrada não era poupada pelos amigos. Nesse quesito, Marcos era o campeão. Sabia salmo, provérbio, palavras do Senhor no Antigo Testamento, palavras de Jesus no Novo Testamento e - as preferidas dos colegas – citações sem pé nem cabeça do Apocalipse. Quem ficava sempre desconfortável com estes episódios era Gomes, agnóstico desde que se entende por gente.

Logo naquele primeiro dia, Adalberto decidiu que também citaria uma frase, vez ou outra, só para provar sua falsa erudição. Correu para seus livros, em busca de uma fragmento que pudesse ser cuspido durante uma conversa informal. Buscou poetas, afinal, as poesias já vêm mais ou menos divididas, sendo mais fácil roubar um pedacinho. Não achou nada. Cavou os grandes autores. Em Machado de Assis, Monteiro Lobato, Friederich Nietzsche e Cecília Meirelles não encontrou seu tesouro. Quando achava uma frase fantástica, logo descobria que, assim que retirada do contexto, perdia completamente o sentido.

A vontade de se igualar aos amigos fez com que Adalberto tomasse uma medida desesperada: ligar para a ex-mulher. Ele lembrou-se que ela, professora de língua portuguesa, era grande fã de dicionários. Na certa, teria um dicionário de citações para emprestar. Quando Liliana atendeu o telefone, se surpreendeu em falar com o ex-marido, que não dava sinal de vida desde que o divórcio havia sido concluído. A surpresa foi maior ainda quando ele esclareceu o motivo. Sempre solícita, a mulher deixou à disposição de Adalberto o tão precioso dicionário.

Assim que pegou o livro, Adalberto passou horas lendo. Leu no táxi, depois leu no elevador e seguiu lendo em um dos sofás da sala, o mais próximo da porta. Foi incapaz de separar algo realmente fabuloso. Foi incapaz de decorar qualquer frase.

Desistindo da investida, Adalberto reencontrou a realidade e lamentou. Era hora de arrumar a casa, cheia de copos e latas de cerveja espalhados. Pegou um imenso saco de lixo e pôs-se a catar aquela infinidade de alumínio dispersa em todos os cômodos. Da sala ao quarto, no banheiro e na cozinha: tudo tinha cheiro de cerveja velha. Findo o recolhimento do lixo, Adalberto deixou-se despencar no sofá vermelho em frente à televisão. O controle remoto não estava ali, mas ele também não queria assistir nada. Ficou só sentado, pensando nas malditas frases de Marcos, Gomes e do gordo. Não se conformava em não saber uma única citação para impressionar os amigos.

No canto da sala, uma lata abandonada observava o homem abatido. Talvez ela fosse a solução, Adalberto pensou. Talvez aquela lata, um pouco amassada, sobre o carpete úmido, fosse a resposta para as preces de um homem à beira do precipício criativo. Ele levantou-se e caminhou pausadamente até a lata. Já com o cilindro em suas mãos, foi até a janela, de onde observava ora a paisagem, ora a lata de cerveja. Em crise, Adalberto pensou: “E se eu criasse uma frase em vez de apenas cita-la?”. Era preciso ser algo tão fantástico que deixasse os amigos com inveja de suas idéias.

Adalberto começou a pensar na cerveja. Pensou no gosto, na cor, na temperatura. Nada. Então, começou a buscar outra solução para a sua frase. Seria algo relacionado a cerveja, mas não seria a própria cerveja. Ele pensou na lata, na embalagem com doze latas, nos diferentes tamanhos de lata. Desistiu. Catou o controle de lado e ligou a televisão. A lata foi rudemente atirada à rua, como que relegada ao limbo. Sentado no sofá, o desesperado homem tentava não pensar na frase, ou na falta de frase. Foi então, que, tal um anjo visitando Paulo na cadeia, como tantas vezes Marcos invocou, surgiu algo inesperado na tela. Uma loura muito sensual, vestindo apenas um biquíni laranja, caminhava em uma praia paradisíaca. Ela esnobava os terríveis banhistas que a observavam de longe, todos acima do peso, em trajes deprimentes, e ia até um quiosque. Lá, pedia uma cerveja, e se refrescava. De um instante para o outro, os outrora repelentes banhistas se transformavam em modelos de corpos bem trabalhados, exalando masculinidades em seus olhares.

Estupefato, Adalberto arregalou os olhos. Pensou, em voz alta, “a vida é uma campanha publicitária de cerveja”. E sorriu. Estava feliz com a frase. Pensou horas em como era brilhante, em como tinha criado algo tão espetacular. Isso, até que se deu conta de que a frase estava incompleta. Por que a vida era uma campanha publicitária de cerveja? Pensou em centenas de finais possíveis. Reflexões profundas sobre a realidade, tiradas jocosas sobre a beleza, constatações óbvias sobre o mercado. Nada que fizesse a frase se tornar completa e realmente boa. Desistiu, mas jamais esqueceu daquela introdução de citação.

Passaram alguns anos. Uns sete, mais ou menos. Sete anos em que Marcos, Gomes e o gordo atiravam frases atrás de frases e Adalberto limitava-se a ouvi-las e admirá-las. Volta e meia, perdia-se em um mar de Camões, em uma floresta de José de Alencar, em uma quinta de Eça de Queiróz, em uma vinícola de Esopo. Em nenhum desses lugares achou uma frase para somar às dos amigos. Eles chegavam a competir. Quando os livros acabavam, mencionavam novelas, programas de televisão, filmes. As únicas frases de filmes que Adalberto conhecia eram “Bond, James Bond” – que jamais teria espaço para uma citação – e “Nós sempre teremos Paris”, de Casablanca – que não pegava bem ser dita em uma mesa cheia de homens. A ele, só cabia o papel de sorrir. Um sorriso tão amarelo quanto a mesa de bar, que trazia a logomarca de uma famosa marca de cerveja.

Cansado de buscar uma citação, Adalberto fugiu para seu próprio mundo, onde ninguém recita frases ao vento, em troca de nada. Ficava remoendo que a vida é uma campanha publicitária de cerveja, sabe-se lá porquê. Pensava nos milhões de comerciais das diversas marcas da bebida alcoólica mais apreciada no país. Chegou a esquecer que estava à mesa com seus amigos mais fiéis. Só voltou a conversar quando o gordo começou a contar uma história.

- Vocês não sabem – disse ele –, a minha vida está uma droga. Acho que a minha mulher quer o divórcio... Tem dito que eu estou muito ausente, que só penso em trabalhar. Eu só trabalho tanto porque quero comprar coisas bonitas para ela, levá-la para viajar, dar o mundo para ela. Eu realmente não sei o que eu faço.
- Sei que o meu casamento é bem diferente do seu – continuou Gomes –, mas lá em casa as coisas nem sempre vão bem. Eu e a Maristela temos brigado muito ultimamente. Sempre que eu posso, tento compensar as minhas ausências. Eu só estou aqui, hoje, com vocês, porque ela foi jantar na casa da minha sogra.
- Nem me fale – acrescentou Marcos. Estou tão cheio de brigar em casa, que às vezes saio só para evitar o atrito. Seria tão bom se as coisas acontecessem do jeito que a gente sempre sonhou, não é?

Divorciado há nove anos, não caberia a Adalberto dar uma lição de moral nos amigos. Na verdade, ele era o mais fracassado quando o assunto era casamento. Já havia passado por dois, todos sem sucesso. E a sua vida de solteiro também não era grande coisa. Mas ele sabia que o clima só iria ficar mais pesado. Seria preciso quebrar o gelo, dizer algo inteligente para fazer os amigos pensarem e mudar o rumo do bate-papo. Algo inteligente como uma frase. Mas Adalberto não sabia frase alguma. Olhando para as garrafas vazias e os copos que em segundos seriam esvaziados, Adalberto deixou escapar:
- Sabe, gente... A vida é uma campanha publicitária de cerveja.

Todos fizeram silêncio. Todos olharam para ele. O gordo, de olhos arregalados, mal podia acreditar no que Adalberto disse. Gomes olhava para os lados, pensava no que acabara de ser dito. Adalberto se arrependeu do que acabara de falar. Queria voltar no tempo e retirar a colocação. Os olhos dos amigos esperavam a continuação, procuravam sentido no que havia sido deixado sobre a mesa do bar. O coitado Adalberto, arremessado à ribalta, preferia as coxias onde sempre esteve.
Quando Adalberto estava se preparando para pedir que os amigos esquecessem seu comentário, Marcos, quem melhor o conhecia, foi obrigado a dizer:
- Adalberto, meu camarada, isso é a mais pura verdade.
- A mais pura verdade – repetiu o gordo.
- A vida é exatamente isso – concordou Gomes.

sexta-feira, 18 de julho de 2008

Guarda-chuva


O barulho da água caindo nas minhas costas não me deixa ouvir o telefone tocar. Na verdade, é lógico que deixa, senão eu não estaria aqui afirmando isto, mas esta é a desculpa que eu vou dar. Já é a quarta vez que ela liga e eu continuo metido no chuveiro para não atender. Se minha mãe ainda fosse viva, estaria parada, na porta do banheiro, o telefone na mão, pedindo para que eu falasse com Madalena. Mas a minha mãe se foi e eu nem estou escutando o telefone.

Não sou uma pessoa normal, como você pôde perceber. Fui eleito por Deus para nascer no pior dia possível, 29 de fevereiro. Este é o maldito dia que só acontece uma vez a cada quatro anos. Isto significa que, mesmo eu tenho nascido em 1964, hoje, em 2003, conto os dias para comemorar o meu décimo aniversário. É claro que você já deve estar pensando. “dia 29 de fevereiro... o mesmo dia do aniversário do...” Sim! Sim! Todo mundo conhece alguém que nasceu neste fatídico dia. Nós somos uma legião de desgraçados, aleijados de bolos e festas. Se comemoro uma dia antes: “Ah! Ainda não é seu aniversário, você ainda não nasceu.” Se eu ainda não nasci, está falando comigo, por que? É maluco, por acaso? Quando descido comemorar no dia seguinte: “Não, não. Agora já é março. Seu aniversário foi em fevereiro.” Desgraça!

A esta altura do relato, você não deve estar entendendo mais nada. Estou no chuveiro, fingindo que não ouço o telefone, nasci no dia 29 do segundo mês de um maldito ano bissexto e o título disso é “Guarda-chuva”. Calma. Eu chego lá.

Fui garoto numa época complicada, não dava para falar tudo. Meu pai, um paranaense comunista, vermelho, imenso, que metia medo até nos militares, mandava a gente nunca comentar o que era dito dentro de casa, quais livros ele lia e botava a gente para ler e de que ilha caribenha era aquela bandeira que ficava pendurada atrás da porta do quarto do casal. Era opressão em casa e na rua. Naquela época, a maior loucura que eu fiz foi me trancar no banheiro com um livro de Weber. O homem ficou louco, derrubou a porta e me bateu de cinto. Mas só de lembrar que foi o vô Ademar, pai dele, quem me deu o exemplar,o sorriso me volta aos lábios.

Como o clima não era bom no lar, doce lar, eu gastava boa parte do meu tempo na rua. Nunca fui comunista. O mais próximo que eu cheguei do socialismo foi me declarar anarquista, quando minha mãe pediu para eu tomar conta da Gabriela, minha irmã caçula. “Cada um defende o que é seu. Quando for para o bem de todas as colônias, a gente se reúne”, e saí correndo para fora. Bom, estou me estendendo. Blábláblá, o pai era grosso, blábláblá, vivia na rua. Ponto.

Por estas e outras, acabava tomando chuva, porque as marquises não me protegiam e naquele tempo não tinha shopping para ficar perambulando. Não era raro pegar uma gripe, mas confesso que a chuva estava entre as coisas que eu mais gostava. Guarda-chuva era incômodo, chato de carregar e, de vez em quando, fazia a gente passar a maior vergonha. Eu só saía de guarda-chuva por três motivos: minha mãe, meus livros, minhas meninas – as coisas com as quais eu me importava. Desde então, guarda-chuva passou a ser sinônimo de amor. Ele é incômodo, chato e, de vez em quando, faz a gente passar a maior vergonha, mas nos protege. Agora que você já entendeu que eu sou maluco, cheio de manias e porque este é o título, volto para o meu banho.

Conheci a Madalena em Londres. Estava lá eu, a trabalho, tentando comprar alguma coisa para comer num restaurante. Como inglês é uma língua capitalista, lá em casa a gente só aprendeu russo e espanhol. Tentei falar, gesticular e até me ofereci para ir à cozinha fazer o meu próprio prato, mas o cara não saía do excusme. Comecei a ficar irritado e catei minhas coisas para ir embora. Neste momento, ela tocou o meu ombro, sorriu e falou qualquer coisa com o garçom. Depois sentou e disse que já estava tudo em ordem e que a comida viria em alguns minutos:

- Da próxima vez que for a um país que fale uma língua diferente da sua tente comprar alguma coisa no supermercado. É só encher o carrinho e mostrar o dinheiro.
- Muito engraçado.
- Nunca pensei em encontrar em Londres alguém que não falasse inglês. Podem acabar achando que você veio da França.
- E eu nunca pensei que precisaria de uma mulher para conseguir algo para comer.
- Maria Madalena.
- Prazer. Karl.
- Karl?
- É... Meu pai era comunista.

Madalena morava na Inglaterra, mas, como a família toda ainda vivia no Brasil, volta e meia dava um pulo no Rio. Numa destas vindas ela me visitou e acabou ficando por aqui mesmo. Abandonou o emprego, apartamento e noivo para dividir uma quitinete em Copacabana comigo.

Passávamos as noites em claro, um olhando para o outro, e não conseguíamos fazer uma única refeição sem que ela cortasse o meu bife ou eu passasse manteiga na torrada dela. Durante estes quatro meses, vivemos para nós dois. Não havia um horário de almoço em que eu não fugisse do escritório e passasse em casa, para dar um beijo nela. Na grande maioria das vezes, comíamos lá mesmo, ela tentando virar dona de casa e eu tentando voltar na hora certa para o trabalho. Em algumas outras, saíamos para almoçar fora, ela agradecendo por não cozinhar, eu levando uma baita bronca pelo atraso. Na volta para casa, lá pelas oito, ela me esperava semi-acordada, esparramada no sofá, vendo novela, mas abandonava até o plantão da Globo para ficar quietinha comigo.

Tudo ia ás mil maravilhas em nossa vida, quando um dia, ao sair para almoçar, notamos que estava chovendo muito. Madalena catou pela mão um guarda-chuva imenso, destes que dá para uma família inteira se proteger. Descemos as escadas, empurrando e cutucando, como não poderia deixar de ser, e paramos no hall. A chuva parecia apertar a cada segundo, empoçando a calçada, parando o tráfego. Ficamos ali, namorando, esperando o clima dar uma trégua. Já passava das duas e não tardaria para acabar minha hora de almoço.

- É melhor irmos.
- Está bem.

Cruzamos o portão e, ainda sobre a marquise, pude ver o pé direito de Madalena tocar o chão molhado. Tudo parou. Ela estava linda, um pouco suada, um pouco molhada, a maquiagem escorrendo, mas uma beleza. Os cabelos enrolados e enfiados para dentro da camiseta, os braços cruzados em volta do peito, protegendo-se do frio, o guarda-chuva ainda na mão.

- Não vai abrir?
- Não.
- Por que não?
- O restaurante é logo ali e está chovendo muito. Não vai fazer a menor diferença.

Ela atravessou a rua desviando dos carros. Eu fui atrás. Entramos na churrascaria – fomos a uma churrascaria naquele dia –, eu tirei o casaco, e nos sentamos. Ela pediu um couvert e, por mais que ainda não tivesse comido nada desde o café da manhã, a fome não vinha. No lugar, apenas o estômago embrulhado, como se eu tivesse comido um salmão que dormiu fora da geladeira. Meti a mão no bolso, procurei meu celular e o achei, mas continuei procurando mesmo assim.

- O meu telefone está com você?
- Não, não está.
- Acho que deixei em casa.
- Esquece.
- Não posso. E se alguém do trabalho me ligar?
- A gente come rapidinho e vai embora.
- Acho melhor eu passar em casa para buscar.

Me levantei, vesti o casaco e voltei para o meu edifício. Calmo, nem me preocupei com a água que descia pelos meus cabelos e embaçava as minha lentes. Subi cada degrau buscando do fundo da minha alma o máximo de força possível. Abri a porta, joguei o celular sobre o sofá e entrei no banho. Já é a quinta vez que ela liga, mas, mesmo assim, eu não ouço. Quando sair daqui, vou para o quarto fazer a mala. Entro no primeiro táxi e sumo deste lugar.

quinta-feira, 17 de julho de 2008

Angústia não compartilhada

O telefona tocava e ninguém atendia. Já era a quinta vez que ela ligava esta noite. A vigésima sétima, contando as ligações feitas durante o decorrer do dia. A resposta era sempre a mesma: depois de duas dezenas de toques, uma mensagem da operadora telefônica anunciava que a chamada estava sendo interrompida. As lágrimas corriam. Novamente, ela passava por aquela situação. Já deveria ter se acostumado, mas a algumas coisas nós nunca nos habituamos. Na sala vazia, as chamas de algumas velas desenhavam as paredes. O cheiro de incenso preenchia o ambiente. Pelas cortinas cerradas, era possível enxergar a claridade da rua, ouvir o barulho dos carros, as conversas dos casais. Sozinha, tomada pela sofreguidão, ela chorava, sem ninguém para consolá-la.

Mais uma vez, a mulher tentou usar o telefone. A resposta era a mesma. A mesma que ouvia nos últimos cinco dias, desde que ele pediu um tempo para pensar, para pôr a cabeça no lugar. Os homens são assim. Tão corajosos, tão fortes, tão incapazes de dizer adeus. Naquela esquina escura, prometendo um novo encontro, ele se foi, desaparecendo nas brumas do passado. Ela ainda ficou ali, chorando um pouco, se recompondo antes de ir para casa. Dele, ela nunca mais teve notícias, nunca mais soube. Só sabe da dor em seu peito, da tristeza que não será acalmada, da angústia não correspondida. Ela deixa-se levar pela escuridão da sala, deita-se no sofá e tenta outra vez o telefone. Ainda vai tentar outras duas vezes antes de desistir. Amanhã vai tentar mais uma e outra e ainda outra. O ritual será o mesmo, até que ela o veja na rua e ele não faça contato algum. Só então ela terá entendido o que aconteceu. Só então ela poderá compreender que ele se foi, que ele teve medo de dizer que não seria possível continuar.

Sozinha, depois de todo o tempo compartilhado, ela chora e fica triste por estar chorando por alguém que não vale a pena chorar. Ela cruza os braços, pensando em tudo o que foi doado, em quanto ela se entregou por alguém que nem teve postura para pedir perdão. Escondendo a face com as mãos, ela soluça, gagueja, e tenta mais uma vez. Sem respostas. Outra vez. Nada. Desolada, ela se entrega à própria sorte, debruçada sobre um amanhã incerto. Não há mais a sensação de segurança que sempre a envolvera. Ela está só, envergonhada de continuar tentando ligar para alguém que não mais se importa com ela. Chorando ela se deita no sofá e deixa o destino guiar sua vida e permite que os sonhos a enganem.

Sentado em sua cama, ele vê o celular tocar mais uma vez. Já é a quinta ligação desde o jantar. A vigésima sétima desde o dia raiar. Ele observa trêmulo a luz acender e o nome dela estampar o display. Fica ali, encurralado, sem saber se deve atender. Ele nem sabe o que sente. Abraçado a um travesseiro, ele se lembra do outro dia, quando, incapaz de qualquer ato digno, partiu, deixando a amada sozinha, chorando. Sozinho no escuro, ele se pergunta quanto tempo teria demorado até que ela voltasse para casa. O quarto repleto de móveis não deixa espaço para o sofrimento. Uma seqüência de sentimentos contraditórios o tomava, enquanto ele via a entrada de outra chamada. Ela ainda ligaria uma última vez, antes de ser derrotada pela amargura. Nos dias seguintes, continuaria ligando, até que ele a visse sorridente na rua. A aparente alegria da mulher transpassaria seu coração como uma faca, marcaria sua pele como brasa. Ele se abandonaria, infeliz, ao peso do futuro incerto.

Repensando a separação, ele nem sabe mais se os motivos que teve realmente são relevantes agora. Ele partilhou tudo o que tinha com ela, até mesmo aquilo que antes lhe parecia banal e hoje é sinônimo de confiança. Sentado em sua cama, ele acha que quer chorar, mas não chora, porque senão seria um perdedor, de chorar por uma mulher que ele abandonou e que ainda o procura. Ele lamenta a perda de alguém que ainda não está perdido. Desnorteado em um lugar familiar, ele acha que a separação foi culpa dela, mas sabe bem que foi por causa dele. Olhando o chão escuro, ele sente os olhos se umedecerem.

O telefone toca pela última vez. Ele espera que ela desista, que siga em frente e seja feliz sem ele, mas ao mesmo tempo, prefere não pensar no que vai acontecer. Sua garganta incha, os pulmões esvaziam e tudo o que ele sente é uma angústia não correspondida. Ele não sabe o que ela está pensando, não sabe se está sendo odiado ou amado, se ainda é querido ou se apenas vai ouvir o encerramento de uma vida. Ele acha que o melhor é deixar assim, terminando sem acabar, porque ele não é homem de dizer que é o fim, porque se ela pedir mais uma chance, ele vai dar. Ele se deita na cama, olhando para o teto, e espera que ela ligue mais uma vez. Só mais uma e tem que ser agora, porque amanhã, ele já vai ter pensado em outra coisa e toda a sua determinação terá minguado e ele será o mesmo tolo que a deixou, o mesmo tolo que agora adormece, sonhando com o que já não pode ter.

quarta-feira, 16 de julho de 2008

Sangue e vinho tinto


A cabeça pesava mais que todo o resto do corpo. No banheiro do escritório, com o rosto enfiado na latrina, Hugo se arrependia de ter bebido na última noite. Enquanto segurava a gravata para não sujar ou molhar, o advogado se lembrava de que não lembrava de nada. A última recordação era o garçom enchendo seu copo com uma dose de Johnny Walker Red Label, a terceira da noite. Foi cowboy, mesmo, para que fizesse efeito mais rápido.

Fazer festas no escritório era comum na última sexta-feira do mês, quando o chefe saía para viajar. As secretárias traziam petiscos, os estagiários ficavam responsáveis pelas músicas e os advogados acabavam trazendo uma cervejinha. Mas esta festa foi especial. Para comemorar a vitória em um grande caso - um político inocentado das acusações de desvio de verba pública - ele e seus colegas contrataram o buffet de um hotel da orla e compraram todos os tipos de bebida possíveis. De cachaça a licor, de cerveja a scotch, se o teor alcoólico não fosse neutro, eles estavam aceitando.

Para a esposa, Hugo alegou que teria que terminar a papelada do caso e por isso deixou de assistir a uma peça, em que os filhos interpretariam tartarugas, no colégio. Vendo o vômito vermelho, que ele supõe ter sido causado por vinho, Hugo lembra que ainda não falou com a esposa hoje. A barba por fazer pode ser facilmente notada, mas ficará imperceptível quando comparada à dos colegas.
Hugo amanheceu deitado na mesa de sua secretária. Ela, calçando os sapatos, alertava-lhe para as marcas de batom no colarinho.

- Batom no colarinho não tem explicação, ela dizia; foi assim que o meu primeiro casamento acabou.

Dona Catarina, a secretária, havia sido indicada para o posto pela própria mulher de Hugo. Era sobrinha de uma velha amiga, e precisava de um trabalho para começar a vida. Já estava há mais de treze anos no escritório. Foi um caso fácil de esconder desde o começo. Dormir com a secretária é tão óbvio, que chega a não deixar pistas. Além disso, os cabelos curtos de Catarina, castanhos como os do patrão, não deixavam margem para desconfiança.

Quando um respingo de água atingiu a lente esquerda dos óculos de Hugo, ele se deu conta das conseqüências da última noitada. Fora terminantemente proibido de beber pelo médico, após o surgimento de uma suspeita de câncer no fígado e no pâncreas. A dor que ele sentia tinha explicação. Beberrão desde a mais tenra idade, nunca dispensou um trago no bar da esquina ou um aperitivo com os amigos. Hugo não fazia o tipo violento, nunca fez escândalo, nunca fez a família passar vergonha. Mesmo assim, o álcool lhe corroia as entranhas.

No jato seguinte de vômito, sangue e vinho tinto se misturavam, num amálgama de incredulidade e sofrimento. No bolso do paletó, pendurado na fechadura da porta, o pager vibrava. Era uma mensagem da esposa, preocupada com o que teria acontecido. Hugo não tinha condições de ligar para ela. A fala arrastada denunciaria a noite de extravagâncias. Bebedeira na sala de reuniões, orgia no escritório e uma notícia amarga como anis – Catarina estava grávida. Não era para menos. Tantos anos de sexo irresponsável, sem camisinha, sem pílula, sem preocupação com o dia em que a esposa descobrisse. Dona Janete, filha de um barão das telecomunicações, nunca preocupou-se com os plantões na firma, com as viagens marcadas em cima da hora, com os presentes que Hugo recebia. Afinal, para que esquentar a cabeça; ele era um bom profissional e merecia o trabalho e as recompensas.

Com as mãos e punhos sujos de bile, Hugo tentava se livrar do que o prendia. Arrancou o cordão, de onde pendia um crucifixo, presente da avó, tirou o relógio e colocou na beira da privada, mesmo local onde depositou a aliança dourada e o anel de formatura. Afrouxou a gravata e desabotoou o colarinho enquanto se controlava para não vomitar novamente. Num impulso incontido, deixou que mais sangue descesse pela garganta. Não havia sinal de comida, o que justificava a intensidade da ressaca. O som da própria respiração ecoando no banheiro lhe perturbava.

Dona Catarina batia na porta, chamando-o para uma reunião imaginária; Dona Janete ligava para sua sala, para seu celular, para seu pager e não obtinha respostas. Mas que tipo de respostas ele daria? Não podia comentar os acontecimentos da última noite, da madrugada daquela sexta-feira, que virava um sábado, seu dia de folga. Agarrando-se à beirada da pia, Hugo ergueu seu corpo, encarando o espelho embaçado pelo vapor que subia. A torneira estava aberta, desperdiçando água quente. Com uma toalha molhada, o advogado limpava o rosto, as mãos e os braços. A camisa de botões, imunda pela bebida e pelo vômito, foi jogada num canto qualquer. De calças e camiseta, Hugo tentava, sem apetite, digerir a última noite.

Eram quase onze horas e havia um almoço no clube, para comemorar os quarenta anos de Dona Janete. Disso Hugo se lembrava bem. A esposa só falava da tal festa nos últimos dias. Lá estariam seus familiares, amigos e até uns jornalistas de coluna social. Se ele não desse sinal de vida, Janete e as crianças apareceriam, e aí seria muito pior. Do lado de fora, Catarina esperava, com roupas limpas nas mãos. Do lado de dentro, Hugo voava para a latrina, vomitando novamente. Havia algo ali que ele não sabia identificar. Um pedaço dele, talvez. O simples pensamento lhe trouxe a ânsia novamente e, antes que percebesse, voltou a vomitar e chorar.

Não havia mais nada para pôr para fora. Encheu a boca de água, bochechou, penteou os cabelos e abriu a porta. Dona Catarina lhe passou as mudas de roupa e disse que tão logo ele saísse, ela mesma limparia o banheiro. Em alguns minutos, Hugo vestiu o terno verde, presente da secretária, calçou os sapatos e fez o nó windsor, que o pai lhe ensinara, na gravata de seda. Apertou o botão da descarga, catou o cordão, o relógio e os anéis. Enquanto o banheiro rodava diante de seus olhos, o advogado tentava fixar um ponto para começar a procura. A aliança não estava mais ali. O símbolo da união com a esposa estafa perdido, bem como a união propriamente dita. Na certa, descera pelo cano, com a água, o vômito, o vinho e as aparências. Não fazia diferença. Havia coisas demais para explicar, afinal de contas.

terça-feira, 15 de julho de 2008

O joelho de Rosana


Primeiro foi o susto, depois uma sensação de conforto. Quando o marido pôs a mão em seu joelho, descoberto pela saia preta, Rosana quase pulou. Estava olhando pela janela, distraída com os letreiros da Nossa Senhora de Copacabana. Aquela ação tirou-a do lugar. O que é que João Paulo queria? Com certeza não havia de ser algo em troca, afinal, em um ônibus lotado, nem um beijo fica bem. Em seguida, Rosana relaxou. Passando os dedos calmamente pelo joelho, num movimento de idas e voltas, João Paulo proporcionou à mulher um segundo de total desprendimento, quase um orgasmo espiritual. Rosana sentiu algo inexplicável. Mas é só um carinho, pensava contente. Depois, pálida, voltou a pensar: é só um carinho.

Por mais prazeroso e reconfortante que fosse o gesto, uma coisa tinha de ser levada em conta. Rosana não tinha idéia de quando fora a última vez que o marido lhe fizera um carinho. Correção: qual fora a última vez que ele lhe fizera um agrado altruísta. Geralmente os elogios vinham acompanhados de um predicado interesseiro. As "belas roupas" eram pretextos para tirá-las. Os "cabelos bem cortados" eram o melhor caminho para tocá-los, uma parada antes de um beijo. A "comida deliciosa", por mais de uma vez, foi um convite para jantar fora, no dia seguinte.

Com o joelho repousado na mão do marido, Rosana tentava imaginar o que estaria acontecendo. Naquele coletivo lotado, o conforto cedeu seu acento à preocupação, já que essa era muito mais velha. Um imenso tráfego de pensamentos congestionava o raciocínio da mulher.

Chegou a mover a mão, para tirar de seu joelho as intenções duvidosas do marido, mas desistiu. Afinal, já era tão raro um carinho. Os olhos seguiam as mãos e buscavam uma expressão mais forte daquele ato. Entre a Siqueira Campos e a Hilário de Golveia, disfarçando que estava olhando para um relógio, destes grandes que ficam nas calçadas, Rosana encarou o marido. Qual foi a surpresa, quando descobriu-se que ele nem sequer estava prestando atenção no que fazia. Simplesmente fazia, como se fosse normal fazê-lo.

Disto, Rosana tinha certeza. Um carinho era a coisa mais normal do mundo. Não era porque o marido não estava acostumado a fazê-lo que havia de ser algo suspeito. Voltou os olhos para o joelho e viu, timidamente, a mão de João Paulo se distanciar e voltar para o colo. O que acontecia? Porque ele tinha parado? Depois do susto, do agrado e da suspeita, pairava sobre aquele joelho direito o vazio, uma imensa lacuna deixada pelos dedos fortes e ao mesmo tempo delicados do marido distraído. Olhando para os carros, imaginando qualquer coisa, João Paulo se perdia em esquinas e pessoas, enquanto aquele joelho chamava de volta a manopla que lhe afagara.

Rosana chegou a perna mais para o lado e deixou aparecer um pedaço da coxa, mas o joelho ainda se encontrava em lugar de destaque. O marido nem sequer percebia. Rosana buscou a mão de João Paulo, fez um carinho e a colocou sobre seu joelho. Lá ela ficou, estática, depositada, sem ação. Em algum tempo, de pouquinho e pouquinho, voltou para o colo, onde descansou. O vazio deu lugar à preocupação, que estava de volta, mas com uma roupa diferente. Vestida de incompreensão, a dúvida de Rosana chamava a mão de João Paulo para o joelho solitário. A mulher chegou mais para o lado e se aconchegou no ombro do marido. Deu um beijo em seu rosto e procurou retribuição. Mas aquela mão já não queria saber mais de joelho. Achou no chaveiro uma boa distração para a larga avenida engarrafada.

Foi então que, numa colisão elástica, algo se aproximou do joelho de Rosana. Num esbarrão desastrado o empurrou um pouco para o lado e sentiu o impacto quando voltou. Era o joelho de João Paulo, que perdera o apoio da cadeira da frente quando uma gorda senhora se levantou. Ficaram lá, os dois joelhos, direito dela, esquerdo dele, lado a lado, encostados, como que namorando. João Paulo, impaciente com a demora do trânsito, começou a balançar as pernas, o que fez com que seu joelho roçasse no da mulher, num vaivém estranho, mas que de certa forma lembrava um afago. Rosana sorriu, por um breve momento, e deixou-se levar por aquela carícia involuntária. Não era a mão carinhosa, mas, vá lá, era melhor que um solitário joelho descoberto.

segunda-feira, 14 de julho de 2008

O velho


O garoto caminhava na praça satisfeito. Voltava do colégio em um dia especial. A menina mais bonita da turma havia topado ir ao cinema com ele no final de semana. Já fazia planos para o futuro, quando tentaria o primeiro beijo, quando investiria em algo mais sério. Tinha apenas quinze anos, mas quem já teve esta idade sabe que ela nunca é limite para imaginar-se adulto.

Passou por alguns vizinhos no caminho, que o convidaram para uma partida de futebol na rua do meio. Recusou. Precisava ensaiar cada detalhe do encontro. Que filme veriam? Em que cinema? Onde comeriam depois? Que horas a buscaria? E que horas a levaria em casa? De ônibus ou de taxi? Era melhor pedir carona ao pai? O que falaria se o pai dela a levasse à porta?

Ainda na praça, pensativo, sentou num banco qualquer. Olhou para longe e qual foi sua surpresa quando viu um velho sentado dois bancos à sua direita. Os cabelos muito brancos já rareavam na cabeça. A barba cobria a face e ressaltavam as rugas ao redor dos olhos. A roupa já era muito antiga, com os punhos puídos, quase rasgando. Nos pés as unhas eram grossas e escuras e nas mãos as veias desenhavam acidentes geográficos diversos. Apoiado numa bengala, o velho sustentava seu corpo, já marcado por uma pequena corcunda. Ao olhar, o garoto não teve dúvidas: era ele mais velho.

Sabia que não poderia contar aquilo para ninguém. Parente ou amigo nenhum acreditaria que ele acabara de esbarrar consigo mesmo em idade avançada na pracinha perto de casa. O próprio menino duvidava. Tentava entender como que passado e futuro se uniram naquela vizinhança em que nada fugia ao ordinário.
Quando desistiu de achar o como, tentou descobrir o por quê. Seria um aviso, uma premonição, um sonho acordado? Qual seria o sentido da visão de seu eu idoso? O velho, em seu banco, coçava a cabeça e apreciava o sol da tarde.

O menino ficou triste. O velho sozinho, a péssima aparência, as roupas se desfazendo. Aquele era irremediavelmente o seu futuro e nada do que ele fizesse poderia mudar. De nada adiantaria o encontro do fim de semana, estudar para ir a uma boa faculdade, arranjar um emprego que pagasse bem, se no final da vida ele terminaria roto em uma praça. Enfurecido, levantou e foi para casa, jurando que mudaria seu destino.

De seu banco, o velho viu o menino passar. Os longos cabelos castanhos, o uniforme do colégio, os sapatos sujos de lama, as canelas finas. Mesmo muitos anos depois, ele sabia: aquele era ele mais novo. Lembrou da infância, do amor da família, dos amigos da rua, do encontro com a menina da turma. Na certa, não poderia contar o episódio a ninguém. Jamais acreditariam em um velho que diz ter se visto garoto na praça. Teria ficado horas pensando no passado, mas foi tirado de suas lembranças. Pouco minutos depois do menino passar correndo, sua filha e seus netos chegaram.

quinta-feira, 10 de julho de 2008

Recomeço

Em frente ao espelho, Fernanda dava os últimos retoques na maquiagem. Rímel, blush, batom, sombra e um pouco mais. Estava alguns minutos atrasada, mas Rodrigo certamente entenderia. Escolheu um vestido em meio a mais de uma dúzia, se arrumou, respirou fundo e saiu.

O que a levou a Fortaleza foi uma paixão antiga, nascida nos corredores do edifício. Rodrigo era o vizinho do lado direito, com quem ela sempre conversava quando se esbarravam. Era bonito, educado e não gostava de barulho. Já ela, não tão bonita e muito educada, acompanhava cada ruído dele. Numa dessas vezes, ouviu o rapaz comentar com o porteiro que iria passar férias no Ceará.

“Vai mesmo?”, perguntou ela. “Que coincidência, eu também vou”, mentiu. Como ele partiria sozinho, combinaram de fazer companhia um ao outro. Compraram as passagens juntos, reservaram o hotel e acertaram alguns passeios. Se, numa noite qualquer, ela pudesse repousar a cabeça no ombro dele, já teria valido a pena pedir folga no trabalho.

Fernanda tinha um longo histórico de decepções amorosas. Tinha doutorado em se apaixonar e não ser retribuída. O pior era quando os homens se aproximavam, se declaravam e por completa covardia ela declinava qualquer proposta. Seu último beijo estava para completara aniversário e só aquele vizinho em férias poderia salvá-la do desespero.

Pegou o elevador e desceu. Tinham marcado no lobby, às nove em ponto. Sairiam para jantar e depois decidiriam o que mais aquela noite prometia. Já passavam das nove e quinze, mas Rodrigo não repararia. Mulheres eram assim mesmo, como uma refeição: a demora abre ainda mais o apetite.

A menina encontrou Rodrigo no bar próximo à entrada do hotel. Ele estava bem vestido, com a pele bronzeada pela exposição excessiva ao sol durante a tarde, mais bonito que o de costume. Mas para a surpresa dela não estava sozinho. “Fernanda, essa aqui é a Vanessa. Estava te esperando e a gente começou a conversar. Ela é de São Paulo. Espero que não se importe, mas a convidei para jantar com a gente.”

“Não me importo”, ela respondeu. “Demorei porque não estou me sentindo nada bem. Podem ir. A gente se fala amanhã.” Os dois partiram. Ela viu todo o investimento na viagem indo embora e se chamou de burra por diversas vezes; algumas em voz alta. Sentou ao balcão do bar e pediu um drinque.

Um homem ao lado dela, muito alto e charmoso, com seus óculos de aros arredondados, encantador como ator de novelas se aproximou. “Não pude deixar de ouvir que está se sentindo mal. Não encare como cantada, mas eu sou médico. Por que não me conta o que está sentindo?”

“Coração partido”, Fernanda deixou escapar. O homem sorriu e lhe ofereceu outra bebida. Diante daquela promessa de recomeço, ela decidiu arriscar. Uma atitude inesperada até para ela. Deu dois beijinhos, se despediu e voltou para o quarto.

quarta-feira, 9 de julho de 2008

A cópia do fato


Em dez de maio de 1970, dia ensolarado, mais ou menos três da tarde, surge à luz Aquenaton Dubois, menino forte, dez dedos nas mãos e dez nos pés. Quinze minutos depois, é parido natimorto o que seria seu irmão gêmeo Ramsés Dubois. De Aquenaton, jamais esconderam a morte do irmão idêntico. Fantasiava a possibilidade de trocar de lugar com Ramsés e quiçá nem os próprios gêmeos saberiam distinguir-se. Na adolescência, a ausência do irmão que nunca existiu se tornou patológica para o jovem. Decidiu que odiava tudo aquilo o que era original, único, singular. Para ele, o mundo perfeito seria repleto de cópias, clones de uma mesma matriz.

Aos vinte anos, Aquenaton foge de casa, um belo apartamento com vista para o Sena. Deixou também para trás este nome incomum que o pai – egiptólogo frustrado – lhe dera. Preferiu chamar-se Étienne, nome unissex corriqueiro entre os parisienses. Agora, ele não era mais Aquenaton Dubois; era qualquer um.

Passou a trabalhar meio período numa fotocopiadora. À noite, estudava medicina. Queria ser cirurgião plástico para deixar todos os seus clientes iguais: mulheres de seios fartos e narizes bem desenhados, homens de abdomens definidos e queixos quadrados. Seria sua utopia tornando-se real.

Quando terminou a faculdade, descobriu ser um médico medíocre e, assim sendo, não poderia pôr em prática seus planos maquiavélicos. Achou prudente se tornar terrorista, ofício tão comum nos dias de hoje. Seu primeiro ato foi bem planejado. Na calada da noite, invadiu uma oficina de tatuagens e destruiu todos os equipamentos. Repudiava os tatuadores; preferia os homens que marcavam gado com brasa incandescente. Quem estes tatuadores pensavam que eram, dando características tão individuais a seus clientes?

Finda esta etapa, Étienne percebeu que era necessário ousar. Queria um atentado que desse um recado inesquecível aos amantes da autenticidade. Estava disposto a atacar uma casa de leilões do Boulevard Saint-German. Por volta de uma da manhã, colocou uma tripa de tecido em uma garrafa de vodka, acendeu e arremessou o coquetel molotov mais ordinário da história pela janela da casa. Em minutos, todas as obras de arte estavam em chamas. Ele implicava com leiloeiros; apreciava mais os falsários. Por que valorizar tanto um exemplar se todos poderiam ter cópias em casa?

Para coroar sua trajetória terrorista, Étienne pretendia estremecer a sociedade francesa de uma vez por todas. Ao explodir o Louvre, a França deixaria de ser o maior pólo artístico mundial e passaria a ser apenas mais uma nação com museus de segunda categoria. Mas, para isso, o auto-sacrifício era necessário. Para ele, não fazia diferença. Entrou no museu com o casaco recheado de dinamite e antes da detonação, caminhou pelos corredores do Louvre. Olhou a Mona Lisa, os Escravos e a Vênus de Milo. Uma lágrima escorreu de seu olho esquerdo e, pela primeira vez, ele teve orgulho de si mesmo. Seu plano era perfeito, era único. Tão único, tão único... que ele desistiu.

* Conto terceiro colocado no concurso Encaixe a Frase da Revista Piauí de julho de 2007

terça-feira, 8 de julho de 2008

Cobertura de guerra


O front sempre foi o sonho dele. Estar no meio da guerra, rodeado de tiros e explosões. O que para qualquer pessoa seria um pesadelo, para um jornalista é a realização de uma carreira. E mais que isso, a promessa de que tudo pode melhorar.

O repórter estava um dia a toa na redação, quando o editor lhe perguntou: você é casado? Não, senhor. Tem filhos? Também não. Quer fazer esta cobertura? Claro! Os olhos brilharam e o coração bateu mais forte. Voltou para casa, beijou o pai e a mãe e partiu para a guerra.

Alguns dias foram difíceis. Entrar nas regiões que o governo não controlava era sempre arriscado. Ainda mais nos dias de hoje, em que microfone e câmera fotográfica são alvos. Lá ia ele, atrás dos soldados, mais excitado que amedrontado.

Em alguns meses de cobertura da guerra, houve glórias e lamentos. Muitos companheiros se foram. Nas contas dele, cinco morreram durante a execução das matérias e mais dois foram vítimas do acaso em seus horários de descanso. Em compensação, havia a promessa de que assim que a guerra acabasse ele receberia um aumento e seria promovido a editor.

O pior momento, foi quando ele se tornou a notícia. Junto com uma tropa, ele e o fotógrafo invadiram uma área que havia sido abandonada alguns dias antes pelos rebeldes. Era duro ver os olhos das crianças arregalados. As mulheres que tentavam proteger a prole não sabiam ao certo se agradeciam a chegada dos soldados ou se se escondiam. Mas a guerra é assim mesmo, a gente nunca sabe quem é o inimigo.

Encostado em um muro, o repórter pediu que o fotógrafo fizesse algumas tomadas da zona agora ocupada pelas tropas. Ainda ali, escorando o muro, ele acendeu um cigarro e relaxou. Menos de três segundos após o primeiro trago — ele ainda soltava a fumaça retida nos pulmões — um disparo de artilharia pesada o atingiu. Um breve momento de silêncio profundo, a sensação de ardência, o gosto áspero do chão.

Acordou no dia seguinte, num lugar que provavelmente era um hospital de campanha. Estava sem a perna, amputada meio palmo acima do joelho. Também quebrara o braço com a queda e o rosto estava repleto de escoriações. Recebeu ordens expressas do editor para abandonar a cobertura, mas bateu o pé restante e ficou.

Por mais algumas semanas, o repórter fez o impossível para manter seus leitores informados. Ainda desajeitado com as muletas, ele corria atrás das notícias, mas raramente as alcançava. Depois de uma série de fracassos pessoais, deixou de lado o dia-a-dia do front.

Conforme prometido, veio o aumento e a promoção. Ele agora é editor de cultura. As muletas foram trocadas por uma bengala, que com o auxílio de uma prótese garante o equilíbrio e a locomoção dele. Os pais estão extremamente felizes que no fim o filho ficou bem. Ele está saindo com uma repórter de outro jornal e se tudo der certo, no próximo encontro ele a pede em namoro.

Mas, durante a noite, ele ainda sonha com a guerra. Vê os amigos morrendo, a população assustada e sua perna explodindo numa nuvem de sangue. O mais duro é saber que mesmo depois que acordar a guerra vai continuar ao redor dele, porque em algumas cidades é assim, a gente vive rodeado pela guerra.

segunda-feira, 7 de julho de 2008

Comunhão de bens


Minutos antes da audiência, Renata e Rafael conversavam. Decidiam o que era de quem, o que cada um levaria com aquilo. Começaram por onde deveriam começar: as crianças. Por mais que Rafael achasse que poderia dar um bom lar para os filhos, sabia que o lugar deles era com a mãe e nenhum juiz do mundo diria o contrário. Como compensação, quis até ficar com o cachorro, mas também o cedeu a Renata, já que as crianças gostavam tanto do animal. Para arrematar, os filhos passariam os finais de semana com ele, que também teria direito a fazer visitas quando bem quisesse.

O próximo passo foi em relação aos imóveis. A princípio, parecia ser uma escolha fácil. Só havia dois imóveis: o apartamento do Leblon e a casa em Angra dos Reis. Renata disse que queria o apartamento e ele ficaria com a casa, que era bem mais cara. Rafael perguntou como ele faria para ir trabalhar todos os dias saindo de Angra. Depois, Renata rebateu, questionando que tipo de educação daria para os filhos numa cidadezinha. Bateram o martelo em uma troca justa. Venderiam os dois imóveis e comprariam dois apartamentos na Zona Sul.

Foi então que vieram os carros. Eram três: o esportivo que Rafael usava durante a semana, a minivan que Renata usava para levar os filhos no colégio e a pick-up que era utilizada em Angra. Renata achou que também seria uma boa idéia vender os três e comprar dois novos, com o dinheiro dividido. Rafael quase enlouqueceu. Não abriria mão do seu esportivo, nem para ficar com as crianças. Bateram boca por alguns minutos até que Rafael teve uma boa idéia. Como o carro dele valia quase a mesma coisa que os outros dois juntos, Renata poderia levá-los. O garoto mais velho já tinha dezessete anos e em alguns meses teria idade para dirigir. Ela poderia dar a pick-up para ele. Renata não gostou muito da idéia, mas aceitou.

Quando foram discutir o valor em conta, a coisa complicou. O dinheiro do casal estava dividido em alguns lugares: ações da empresa do pai de Rafael, as aplicações em uma conta corrente conjunta, a conta em que ele depositava o dinheiro para a educação dos filhos e um cofre deixado pelo avô de Renata em um banco na Suíça. Foi uma briga. Renata queria que tudo fosse dividido igualmente, meio a meio. Rafael afirmou que não abriria mão das ações, afinal, quando seu pai morresse, ele teria o suficiente para ser o sócio majoritário. Caso contrário, quem assumiria a cabeça dos negócios seria seu irmão irresponsável, sem aptidão para liderança. Rafael ficaria com as ações e Renata ficaria com o cofre. A mulher chiou. Nem sabia o que tinha naquele cofre, que nunca fora aberto. Poderia ter um velho diário ou barras de ouro; uma coleção de selos ou um saco cheio de diamantes. Rafael retrucou que, de qualquer forma, aquilo dizia respeito unicamente a ela e que não poderia ser dividido. A conta relativa aos estudos das crianças permaneceria intocada, já que os valores não pertenciam ao casal. No fim, só dividiram a conta conjunta, que já era dividida, mesmo.

Partiram para os bens materiais. Novamente, manteriam o que era das crianças fora da negociação. Descobriram que a grande maioria das coisas que tinham, tinham em dobro. Para cada televisão no quarto, havia uma na sala. Para cada aparelho de som ao lado da cama, havia outro perto da porta de entrada. Para cada vídeo cassete e aparelho de DVD, havia outro, quase igual. Em relação aos eletrodomésticos, Rafael nem brigou. Além de nem ter idéia de para que eles serviam, não iria utilizá-los mesmo. Deixou que Renata os levasse, em troca dos aparelhos de ginástica.

O próximo tópico que discutiram foi os amigos. Como dividiriam os amigos? Alguns, eram bastante óbvios. Os rapazes que jogavam golfe com Rafael ficariam com ele. As meninas do salão de manicura que Renata freqüentava, com ela. Os amigos de infância também não seriam problema, muito menos os que eram amigos das famílias e as amizades que surgiram nos ambientes de trabalho. Só tiveram mesmo que dividir os casais com quem costumavam sair.
Foram escolhendo tudo direitinho até que surgiu um problema: Miriam e Juvenal. Eles haviam sido os padrinhos de casamento. Renata alegou que deveria ficar com eles, já que as crianças era muito amigas dos filhos do casal. Rafael contra-argüiu, dizendo que seus pais gostavam tanto de Miriam e Juvenal que era como se eles fossem amigos de sua família. Renata disse que Miriam era sua melhor amiga. Rafael afirmou que Juvenal sempre fora seu confidente. Resolveram da seguinte forma: Rafael ficava com Juvenal e Renata com Miriam. Jamais poderia encontrar com o outro membro do casal.

Já que as coisas mais importantes já haviam sido debatidas, começaram a divisão das miscelâneas. As coisas mais femininas ficariam com Renata: bibelôs, abajures, colchas, porta-retratos. Rafael preferia os objetos mais práticos, úteis: chave de fenda, flanela, macaco do carro, furadeira. Quando os itens começaram a ficar mais pessoais, eles tiveram que escolher bem. Renata poderia ficar com todas as fotos, mas Rafael queria as fitas de vídeo. Os quadros seriam divididos de acordo com a preferência deles. Camas, mesas, cadeiras e sofás seriam vendidos e o dinheiro repartido. Foi então que Renata perguntou com quem ficariam os discos. Rafael, bastante pensativo, respondeu que ela, mais romântica, poderia ficar com os do Fagner e do Fábio Júnior. Para ele, apreciador das letras, restariam Caetano Veloso e Tom Zé. Os problemas surgiram com a pergunta seguinte: e os discos do Chico Buarque? Rafael cerrou os olhos, Renata mordeu os lábios. Duelaram com as palavras, sem que o outro cedesse, sequer, um milímetro. Por mais argumentos que fossem apresentados, a resposta era sempre a mesma: eu quero os discos do Chico para mim. Renata abriu mão das casas. Rafael ofereceu as ações da empresa do pai. Renata liberou alguns amigos. Rafael colocou em jogo seu carro esportivo. Renata, em um ato de desespero, abdicou da guarda dos filhos. Nenhum fez proposta que se equiparasse aos discos. Renata dizia que as músicas falavam muito mais para ela. Rafael alegou que gostava muito mais do compositor. Renata lembrou que Rafael não gostava de algumas canções. Ele abriu fogo, dizendo que ela reclamava da voz de Chico.

Em meio a tanta discussão, foram arrastados pelos advogados para a sala onde aconteceria a audiência. Cada um de um lado da mesa, se olhavam, esperando que o outro desistisse. Quando o juiz perguntou se eles já tinham chegado a alguma conclusão quanto à separação dos bens, Rafael e Renata levantaram-se e responderam, uníssono: não, ainda não estamos preparados para o divórcio.

sexta-feira, 4 de julho de 2008

Corre, moleque


Depois do barulho, ele começou a correr, mas corria tanto que ninguém acreditava que pudesse pará-lo e, mesmo se pudessem, não o parariam, ele nunca pararia, pois o medo era forte demais e só o jogava para frente, dava mais impulso, impedia que diminuísse o ritmo, a velocidade, a largura das passadas, que cada vez mais o impulsionava rumo ao desconhecido, afastando-o de tudo o que ele compreendia e confiava, e não havia de ser diferente, afinal ele amava os pais e a última cena havia chocado mais do que qualquer tipo de violência o chocara antes, mas enquanto ele corria, evitava pensar nisso, só pensava em correr mais e mais e nunca parar, pois quando parasse suas forças iriam embora e todo aquele esforço teria sido em vão, o pai caído no chão, a mãe se jogando na frente da bala, o irmão mais velho gritando corre, moleque, corre, porque senão eles vão te pegar e é isso o que ele está fazendo, está correndo o máximo que pode e não olha para trás e só faz curva quando é impossível seguir em frente, atravessa casa, ultrapassa a pelada no campinho do alto do morro e finge que não ouve o barulho dos tiros e finge que não houve o barulho dos tiros e reza para que o barulho não seja por causa dele, que eles já o tenham esquecido, que já tenha esquecido deles, mas ele sabe que vai ser difícil esquecer e é difícil correr de sandálias, o pé queimado, a pele entre os dedos em brasas, o medo lhe corroendo o passado e as balas lhe tirando o que havia de mais valioso, passa uma banca de frutas, passa o botequim onde o pai trabalhava, passa a boca e a boca seca pede para que ele pare, pede um copo d’água, mas ele não pode, prometeu para o irmão com os olhos arregalados, espantado com tanto sangue, com tanto barulho e com tanto medo, mais medo que daquela vez em que a mãe o encontrou no quintal, com as mãos cortadas, mexendo em caco de vidro para fazer cerol para soltar pipa, os olhos da mãe ardiam e ela corria contra o garoto, o medo só aumentava, mas quando ela chegou lhe deu um abraço e o levou para dentro, lavando suas mãos, aflita pelo bem do menor, que sentia mais medo que naquela vez em que o pai se meteu a brigar com o homem com um berro na mão e o pai ficou uma semana longe de casa e quando voltou já não tinha emprego, já não tinha família, já não tinha respeito e foi aquele homem com um berro na mão e mais três, todos de berro na mão, que fizeram o pai cair, a mãe berrar e o irmão, no último suspiro gritar corre, moleque, corre e não pára de correr até que esteja tudo bem, mas nada está bem e o moleque só sabe correr, já caiu duas vezes, o joelho ralado deixa escorrer as lágrimas da mãe que temendo pelo menor ficou entre a morte e o garoto, que só corre, pula muro, desvia do povo e queria saber voar para pedir ajuda para os pais, que com tanto sacrifício lhe deram aquela bicicleta vermelha, com cestinha para guardar o peão, as bolinhas de gude e o maço de figurinhas, que com tanto esforço ele conquistou num bafo com o vizinho, moleque dedo duro que foi contar pro homem com o berro o que o meu pai disse dele e foi por isso que ele foi lá em casa com a camisa enrolada na cabeça, mas ele sabia quem o cara era, conhecia os olhos vermelhos, a aura enfumaçada e o berro prateado, o irmão gritando corre foi o primeiro a cair, com um tiro na perna, ainda tomou mais dois na barriga e, sem o menor assistir, dormiu com um na testa, o pai queria fugir, mas não podia sair de casa e deixar a família para trás, o irmão gritava corre, moleque enquanto o pai tocava o chão e, quando a vez do moleque, a mãe, que estava na cozinha fazendo café, se atirou na frente e se foi olhando para longe, rezando para que o menino corresse e o irmão já pálido pelo medo gritava corre, moleque, corre e pede ajuda pra mamãe, mas ela não precisava mais de ajuda, ninguém precisava, só ele, correndo de sandálias, a camisa grudada no peito, ensopada de suor e da chuva fina que começava a cair, e as coisas não estão bem para o garoto, mas estariam piores se ele não estivesse correndo, todo o barulho que ele ouve, ecoando pelos becos do morro, estaria tilintando dentro do corpo dele, ricocheteando em seus sonhos, transpassando seu futuro, mas o menor corre, tomba e volta a correr, só de cuecas, mas isto não é hora para vergonha, é hora para medo, medo de não conseguir chegar, medo de não saber chegar, medo de que cheguem antes dele e aí sim ele não vai saber o que fazer, ele só corre, moleque, corre, na direção do vento, pelos caminhos que o destino leva, sem saber o que o levou àquele lugar, o que o pai falava com o homem do berro, o que a mãe pensou quando o viu com o sangue nas mãos, o que ele pensou quando viu a mãe com o sangue nos olhos, o que o homem de olhos vermelhos pensou quando ele saiu correndo e todo mundo correu atrás, ele acha, porque senão por que ele estaria correndo, mas não há tempo para isso, se ele for pego vai ter sido a toa que correu e o irmão teria gastado seu último fôlego para nada e seria como se eles nunca tivesses existido, mas precisavam existir, porque existiram, por mais que alguns não os vejam, baixem os olhos, agarrem as bolsas, debochem daquela corrida canhota, com os pés incandescentes escorregando na borracha dos chinelos, o barulho se aproxima, mas ninguém está por perto, só o pai, a mãe e o irmão, que vivem dentro dele e se ele não correr não vão ter mais onde viver, a não ser nos dedos dos homens com berro, que já perderam as contas de quantos se foram, vítimas do acaso, filhos do acaso, que chegaram ao morro por acaso, em busca de lar e trabalho, e em busca de segurança iam embora, mas aquele moleque vizinho foi contar para os homens e agora o pai não vai a lugar nenhum, a mãe já se foi e ele não sabe para onde ir, ele só corre, moleque, corre, que os homens estão muito perto e já dá para ouvir o barulho dos berros e o berro do garoto faz com que seus passos silenciem, o chão some, a dor nas costas é muito forte e está queimando a pele, a carne e o ar e por mais que ele corra não pode sair do lugar e vai tudo ficando preto até que acaba.

quinta-feira, 3 de julho de 2008

O gostar e o amar

Pode parecer exagero, mas, para algumas pessoas, gostar e amar são sentimentos opostos. Não acredita? Também Joaquim José não acreditava, mas ouviu tais palavras da boca de sua noiva.

- Acho que você não gosta mais de mim...
- Mas eu gosto!
- Gosta, mas não ama!
E foi assim que ele se deu conta.

Todos os antecedentes da crise não vêm ao caso. A questão é que juntos por tanto tempo, poucas coisas os abalavam. Mas, também, quando acontecia, o clima ficava pesado e os corações em ruínas.

Esta briga não era diferente das outras e terminaria bem, como todas as outras. A única coisa que tornava a situação ímpar era a constatação de que Joaquim não amava, mas gostava de Magali. Tal afirmação foi feita inocentemente, ao telefone. Tão rápido que Magali nem se deu conta disso. Depois de briga, com mais calma, conversaram e ela mal se lembrava das palavras. Tudo o que queria era ouvir era um “eu te amo”, meio dito da boca para fora, fazendo-a ficar mais calma e ter certeza de que nada iria mudar entre os dois apaixonados.

Vamos ao caso. Joaquim tinha combinado de encontrar Magali na casa dos pais da moça. Esquecera-se. Não estava fazendo nada demais, mas esquecera-se por completo de encontrá-la. Então lembrou-se de algo que seu padrinho costumava falar para ele por ocasião de seu primeiro namoro:

- Quinzé, Quinzé, se um dia esqueceres de tua menina, desista dela. O esquecimento é um joguete do destino para te avisar que não queres nada com a situação – e falou assim mesmo, com a segunda pessoa bem conjugada, como bom gaúcho que era.

As palavras tomaram a memória de Joaquim de assalto e fizeram com que ele decidisse conversar seriamente com Magali. O tema era o fim do noivado. Chegou ao lugar da conversa decidido, falando sozinho, convencendo-se de que era o melhor a ser feito. Falou baixo, mas firme. O problema é que, ao final, não queria de jeito nenhum ir embora. Estava dando mais atenção a Magali do que aos ensinamentos de seu padrinho. Aliás, lembrou-se de outro:

- Quinzé, Quinzé, se um dia acordares tarde para ir trabalhar, ligue e diga que estás doente (e dizia doente com tanta ênfase que fazia Joaquim sentir-se gripado). Mais vale uma boa manhã de sono do que sair correndo para o trabalho e chegar roto e de barba por fazer – e falou com o mesmo acento porto-alegrense das outras citações. Verdade seja dita, um dia Joaquim acordou mais tarde e decidiu-se por aproveitar mais um pouco a cama e as cobertas. Na manhã seguinte, ao chegar ao trabalho, foi encaminhado ao departamento pessoal. Em menos de uma hora estava na rua, com seu bilhete azul na mão.

A lembrança do episódio fez com que Joaquim abraçasse forte sua noiva e decidisse que era melhor tentar mais uma vez. Beijaram-se e se despediram, combinando outro encontro no dia seguinte. O rapaz voltou para casa, muito despreocupado. Tirou os sapatos, as meias, jogou-se no sofá e se deparou com um filme de James Bond na televisão. Uma pérola que raramente passa nos canais abertos. Era dublado, mas vá lá. Nada pode ser perfeito. No ponto alto do filme, seu telefone toca. Mas o que vai acontecer com 007? A ação não poderia ser interrompida desta forma. Joaquim tentou ignorar, mas o telefone não parou de tocar.

Joaquim tomou fôlego e correu em direção ao aparelho. Deve ser só um engano, pensou, me livro disso num minuto. Mas ao falar alô, ouviu:
- Acho que você não gosta mais de mim...

Era uma bomba. Um tiro à queima roupa em quem só queria saber se James Bond, vivido então por Sean Connery, se safaria de um ataque sórdido do satânico Dr. No. Era uma conversa que não acabaria em um minuto. Pelo contrário, demoraria horas, até. Sem solução, Joaquim deu adeus à trama de Ian Flemming, bem na hora em que o agente da Rainha dava de cara com Ursula Andress, a primeira e mais famosa Bond Girl, e se preparou para uma vigília de discussões ao pé do ouvido. Engoliu seco e pensou “se vou ter que prestar atenção nisso, eu vou prestar atenção”.

- Acho que você não gosta mais de mim...
- Mas eu gosto!
- Gosta, mas não ama!

Aquilo bateu no peito de Joaquim com um impacto sem proporções. Como ela podia fazer aquilo? Gostar, mas não amar? E ele que sempre achou que o amor era uma gradação crescente do gosto. Eu gosto, eu gosto muito, eu amo. Foi assim que aprendeu.

Magali expôs diferente: o gostar é o não amar. Gostar é trair, maltratar, mentir, enganar e, se não fosse suficiente, dizer “eu gosto de você”, com uma fisgada sarcástica no canto da boca, esboçando um sorriso.

- Acho que você não gosta mais de mim...
- Mas eu gosto!
- Gosta, mas não ama!
Aquele prefácio de conversa ecoava nos tímpanos de Joaquim e traziam de volta a sordidez do pensamento.
- Você não está me entendendo... O que eu quis dizer é que eu te amo.
- Era o que você queria dizer, mas não foi o que disse. Eu pude ouvir muito bem. Você tem outra não tem? E estava com ela! Foi por isso que não foi me ver... Qual é o nome dela?
- Mas não há ninguém?
- E o que te fez se atrasar?
- Não foi nada, escute...
- Nada?! Na minha época, isto se chamava sem-vergonhice!
- A sua época é agora!
- Não grite comigo!
- Eu não estou gritando.
- Aposto que você não grita com ela.
- Ela quem?, e Joaquim ainda ouviu um suspiro antes de Magali bater o fone.

Passou o tempo e os dois se reencontraram. Não estava chovendo (mas a chuva faria a cena digna de um bom filme norte-americano) quando Joaquim entrou numa loja de conveniências e deu de cara com Magali segurando uma garrafa de Merlot. Lembrou-se do padrinho:

- Quinzé, Quinzé, mulher que compra garrafa de vinho é porque está solteira. Mulher casada ganha vinho de presente.

Talvez fosse hora de voltar a dar atenção ao padrinho. Sorriu e convidou sua amada para tomar um café.
- Ainda está com aquelazinha?
Ele até poderia explicar que nunca houve ninguém, mas foi mais simples dizer:
- Não, estou sozinho...

O café descafeinado com adoçante e um pouco de leite rendeu boas horas de conversa, um casamento civil e religioso (como manda a tradição) e uma ninhada de três filhos: duas meninas e um menino.

O mundo girou, o muro caiu, a moeda mudou, o presidente caiu, a moeda mudou de novo e Joaquim andava pelas ruas do Leblon quando seu carro bateu. O novo presidente pedia calma, controle dos gastos. Reparar um carro a esta altura do campeonato era um crime contra o bem estar nacional. Joaquim desceu furioso e deu de cara com uma mulher alta, em cima de um salto alto, falando baixinho para ninguém ouvir:

- Desculpe, foi culpa minha. Me ligue que eu pago os reparos.
A mulher, quase menina, deu um cartão onde as letras do nome Maria Clara saltavam para fora, em um dourado digno de qualquer cobrança de quinto. Joaquim ligou, mas quem disse que queria saber de conserto? Queria só olhar de novo para aqueles, que na memória dele, lembravam os olhos de cigana oblíqua de Capitu.

- Alô?
- Por favor, a Maria Clara está?
- Só um momento.
Mas não foi só um momento. Foi uma eternidade cujo silêncio foi quebrado pela voz doce que dizia um seco “pois não”.
- Meu nome é Joaquim, o da batida...
- Claro, claro. Me dê o número da sua conta que eu deposito o dinheiro do reparo.
- Sabe o que é...? Os bancos não andam muito confiáveis. Será que nós poderíamos nos encontrar?

Estava marcado. Era um encontro. Mas ele era casado e pai de três filhos. Não! Não era um encontro. Joaquim apenas pegaria o dinheiro do conserto do carro. Se arrumou todo, botou o melhor perfume e foi a um restaurante da moda. Maria Clara estava divina, como não poderia deixar de estar. Era altíssima, de seios fartos e pernas que deixariam uma modelo de queixo caído. Talvez fosse modelo. Ela não queria se demorar, mas ficou mais de três horas olhando para Joaquim, que mal se lembrava como era flertar. Saíram dali no carro dela, um importado conversível, rumo ao motel mais próximo. Não é necessário mencionar o que aconteceu nos momentos seguintes.

O tempo passou e Joaquim se encontrava com Maria Clara com uma freqüência crescente. Mal olhava para Magali e desperdiçava horas observando o nada, quase vendo a fronte de sua amante. Cria plenamente que amor era alguma pantomima, e que ele jamais sentira algo tão forte por uma mulher. A única coisa que corria por suas veias era um desejo carnal por um belo pedaço de mau caminho

Segue o desfecho da trama: estavam os dois – Joaquim e Maria Clara – juntos, em um quarto barato de motel, quando o relógio de nosso protagonista apitou. Eram dez da noite e Joaquim tinha combinado de encontrar Magali na casa dos pais dela. Sem dar explicações, despediu-se de Maria Clara, prometendo novo encontro e se meteu pela rua. Tomou um táxi e ordenou pressa. Para sua sorte, o motorista não respeito sinal vermelho, pedestre ou ciclista. Já eram dez e vinte quando o telefone celular, um luxo dos novos tempos, tocou. Joaquim estava saindo do carro, em frente ao prédio onde estava sua esposa.

- Alô?
- Onde você está?
- Dê uma olhadinha pela janela.

Magali espiou por detrás da cortina da segunda janela da esquerda para a direita, do oitavo andar. Uma das poucas janelas acesas. O prédio azul de pastilhas era bonito, mas os moradores migravam para regiões mais pacíficas da cidade. O táxi arrancou. Joaquim, acenando, se preparou para entrar no edifício.

- Meus pais estão esperando... Sobe logo, está bem?
- Pode deixar. Já estou subindo.
Mas antes que pudesse encerrar a chamada, Joaquim chamou sua atenção.
- Magali?
- O que foi?
- Eu te amo.

quarta-feira, 2 de julho de 2008

Alguém igual a ela


Não sei bem que horas são, mas o sol já está batendo no meu rosto há mais de duas horas. O braço direito, sobre o qual deixei cair o peso de todo o meu corpo depois da última noite, está dormente demais, não do jeito que fica apenas formigando. Com todo o esforço, levando o meu tórax e puxo a mão em direção ao peito. Por mais que eu esteja vendo meus dedos desmaiados sobre o externo, o tato não me indica o que está acontecendo. Aos poucos, sinto o sangue voltando a correr em minhas veias. É uma das sensações mais desagradáveis que eu já senti, e olha que eu sou perito em náusea e mal estar. Lâminas finas, agulhas quentes e todos os outros instrumentos de tortura parecem invadir a minha pele, de dentro para fora, de fora para dentro, em movimento circular e latejante. Tento gritar, mas não quero que ninguém saiba da minha dor. Nem sequer o meu espelho.

Sou cínico. Por mais que as minhas bochechas e o meu queixo estejam escondidos sob a relva da minha barba, que os olhos vermelhos não escondam a minha falta de sono, toda vez que enfrento o meu reflexo, ajeito o colarinho e dou um sorriso murcho. Um dia, vou acabar me convencendo de minha aparente felicidade. Mas eu nem sempre fui assim. Tudo começou por causa dela.
Ela podia ser uma pessoa comum, mas não era. Era como um raio de sol. Não este que me impede de cochilar e esquecer meus pensamentos. Um raio de sol que ilumina o jardim, faz o girassol se mover e o 7-desidrocolesterol de nosso organismo virar vitamina D. Ela era algo mais.

Não vou citar seu nome, assim como não vou citar o meu. Não quero dar motivos para que o ego dela cresça ao ver a minha dor. Vou chamá-la de Afrodite pelo simples motivo de saber que todo leitor gosta de se sentir íntimo dos personagens. Afrodite era a deusa do amor, a personificação da paixão intensa, ou foi por um tempo. Ela tinha a pele clara como o Ártico. Tão clara que talvez nem o mais perspicaz dos esquimós pudesse diferenciá-la do gelo, fonte de vida e morte. Seus cabelos eram escuros, pintados no salão da esquina, deixando escapar uns fios brancos que a tinta não notou. Era como se ao mesmo tempo ela fosse a artificialidade da tentativa de esconder os anos e a coragem de deixar resplandecer o grisé da maturidade. Seus seios eram pequenos, quase inexistentes, do tipo que se escondem na palma da mão, do tipo que ficam iguais para todo o sempre, que não se deixam abater e zombam da lei da gravidade. A cintura era fina, como se todo tempo ela usasse um espartilho, mantendo a elegância mesmo quando nua. Os quadris largos não deixavam mentir a brasilidade e alimentavam as fantasias de quem resolvia perder alguns segundos admirando aquelas curvas. O pescoço fino e a altura que dispensava os sapatos altos a transformavam num caule que enverga com o vento, mas resiste à tempestade. As maçãs do rosto eram tão vermelhas, belas e reluzentes que, se o fruto da árvore da ciência do bem e do mal realmente fosse uma maçã, seria inegável e compreensível o impulso de Eva em lha dar uma mordia. Difícil de compreender seriam os motivos que a levaram a dividir tal fruto com Adão. Passos fortes e fora da cadência, mas não de forma desengonçada. Eram um atrativo, uma eterna expectativa pelo próximo passo, que jamais seria como o anterior. Inspirador como uma sonata de Mozart para ouvidos adolescentes, que, apesar de não compreendê-la, acham de uma beleza fundamental. As olheiras, que surgiram na época da faculdade e escureceram com o passar dos anos, só faziam brilhar aqueles olhos azuis que refletiam meus sorrisos e pesares. O nariz fino, fazendo pender um piercing prateado, ensaiava um retorno à rebeldia de outrora, quando a revolta era ato político. Uma boca bonita como se tivesse sido pintado à mão por Boticcelli, mas única como a arte de Miró e Picasso. A voz doce, um pouco rouca quando caía a noite, quase um sussurro durante a madrugada, tinha o poder de me fazer dormir ou me despertar da exaustão, dependendo de suas intenções. E uma pequena marca de nascença, uma tímida pinta, quase tão clara como a pele, a três dedos do umbigo, numa linha reta em direção ao ombro esquerdo. Falar sobre ela é mais difícil do que divagar sobre um cão de lata ao rabo.

Nada disso importa. A única coisa que me vem à mente é o fato de ela ter ido embora. E não vai voltar. E é melhor que não volte, ou seria como um fantasma, que mais assusta do que encanta.
A conheci há muito tempo, no colégio, antes mesmo da libido surgir, antes mesmo de um garoto conhecer a possibilidade de passar o resto da vida ao lado de uma menina. Nos esbarramos uma centena de vezes entre os quatro e os dezenove anos, até que nos encaixamos de forma tal, como ninguém em nosso círculo social acreditava que fosse acontecer. Vou omitir os detalhes, novamente, para resguardar a minha angústia e sofreguidão. Quando ela foi embora, não me lembro bem o motivo, a porta ficou aberta e eu ainda não tive força para ir fechar.

Muita gente entrou e saiu desde então. Alguns só tomaram uma bebida, outros chegaram a se sentar e jogar conversa fora, e houve quem assistisse a tudo, pelo canto do olho, fingindo que não via, que não sabia da verdade. Algumas poucas mulheres ficaram, apenas para me provar como estou velho e arruinado.

A primeira foi alguém igual a ela, como todas as outras eram. Encontrei por aí, achando que fosse ela, rezando para não ser, e não era. Mas durante umas duas semanas foi. Entrou na minha vida, brincou de casinha, achou bonito amparar o coroa deprimido e depois se encheu dos meus pés de galinha, das minhas lesões por esforço repetitivo de voltar a amar. Foi embora levando um belo par de pernas, quadris espetaculares e uma lasca da minha auto-estima.

Procurei por pele clara, cintura fina, seios pequenos, cabelos pintados e um pouco de carinho, mas só achei o caminho irreversível rumo ao desespero. Desisti de procurá-la. Não queria mais ninguém igual a ela. Queria alguém igual a mim. Alguém machucado por dentro, precisando de um ombro para apoiar sua cabeça, enquanto o próprio ombro acolhia a fronte alheia. Não gostei. Cai no meio de uma selva de mulheres de meia idade, complexadas com seus corpos, com seus empregos, com filhos intoxicados, ex-maridos cruéis e armas na gaveta da mesa da cabeceira. Umas duas chegaram a usá-las. Eu não queria mais alguém igual a mim.

Decidi que o melhor era ficar sozinho. Foi fácil por uma semana. Depois, aquele cara que me julga lá do outro lado do vidro começou a me jogar na cara como eu era fraco e como Afrodite devia estar feliz, com uma nova vida e com o meu sofrimento. Foi este cara quem me ajudou a escrever isto aqui, como o possível último registro da minha sanidade ou da minha vontade de fazer alguma coisa. Também foi ele quem me disse para esquecer o nome dela e chamá-la como realmente merecia ser chamada. Caso contrário, Afrodite receberia estas páginas e gargalharia junto com suas amigas devoradoras de homens. Ela nunca vai perceber que isto é uma carta de amor, entregue a ela, anos mais tarde, pelas mãos de terceiros. Afrodite vai acreditar que isso é uma bandeira branca, um sinal de que não sou mais capaz de lutar. Mas eu posso. Foi por isso que saí ontem à noite e trouxe esta menina para cá. Ela é exatamente igual a ela. Eu pedi para chamá-la pelo nome da mulher que me arrasou e para que ela me chamasse pelo apelido que ganhei na quarta série e que foi embora junto com os amigos e com Afrodite. Pedi para que ela vestisse as suas roupas e que eu a despisse, e pudesse admirar o que minhas mãos já não alcançavam. Pedi para que ela ficasse até o dia clarear e fosse embora do mesmo jeito que a minha esperança no amanhã; cruzando a sala, com uma mala marrom na mão, ajeitando a minha camisa na cadeira antes de sair. Ela achava que eu não estava acordado, mas eu estava. Tentava entender o que poderia estar acontecendo. Que brincadeira seria aquela depois de uma noite tão bonita. Não entendi.

Fiquei deitado esperando que ela voltasse. Gritei seu nome, fiz as pazes com Deus, numa oração, voltei a brigar com Ele, numa blasfêmia. Não me cobri quando fez frio, nem sequer me levantei para ir ao banheiro. As minhas necessidades fisiológicas, minhas patologias, não tinham importância se ela não estivesse aqui para reclamar dos punhos amarrotados, dos respingos na tabua, da remela no canto do olho num domingo à tarde.

Esta mulher aqui ao lado, que dentro de poucos instantes vai se levantar e se aproveitar do fato de eu fingir que estou dormindo, também é alguém igual a ela. Do mesmo jeito, vai embora como ela. Quem sabe, à noite, eu divida esta cama com outra mulher. Não importa. Quando o sol levantar, alvo como a sua pele, quente como as noites do passado, eu vou estar sozinho, mesmo.