
Sentado no bar, com os amigos de sempre, Adalberto pensava. De um segundo para o outro, tinha perdido completamente a atenção na conversa. Mergulhava novamente em seu pensamento mais freqüente: uma frase de impacto. Desde sempre ele ouvia as frases que seus amigos diziam e era incapaz de dizer umazinha sequer. Deu-se conta, pela primeira vez, em um jantar em sua casa. A ocasião era o seu aniversário. Estavam lá os mesmos de sempre: Marcos, que era seu amigo desde a infância, Gomes, reclamando feito um velho, e o gordo que sempre usava camisas listradas na vertical – uma tentativa desesperada de parecer mais magro.
Adalberto passara toda a tarde preparando a comida e a sobremesa. Aos amigos, coube unicamente trazer a bebida. Isso eles bem sabiam fazer. No caminho, passaram em um supermercado e encheram o carrinho de latas de cerveja, umas garrafas de cachaça e um galão de vinho, que era para acompanhar a comida. Era bebida suficiente para um churrasco de trinta pessoas, mas pouco para os três amigos de Adalberto.
Se seus amigos tinham o costume de citar frases, ele nunca tinha notado. A primeira que ouviu, saiu da boca de Gomes. A frase foi antecedida por um “é como dizia Manuel Bandeira”, e pronto. Adalberto não se lembra da frase. Nunca lembrou. Talvez nem a tenha ouvido no dia. Nem sabe o que foi dito em seguida. Ele começou a escavar sua mente e chegou à conclusão de que nunca soube dizer uma frase.
Geralmente, as citações eram famosas. O gordo era o que mais clamava os imortais. E de todos os gêneros e correntes. Era um tal de “de acordo com Sartre”, “já dizia Fernando Pessoa”, “citando Drummond”, “parafraseando Santo Agostinho” e tantos outros que nem podem ser lembrados por Adalberto. O maldito gordo sempre tinha uma frase na manga. Mas o gordo tornou-se previsível.
Um belo dia, Adalberto notou uma frase de Clarice Linspector em meio às comemorações do aniversário de casamento de Marcos. Adalberto, que era o maior fã das frases, percebeu que, pelo terceiro ano consecutivo, a frase era dita no aniversário de casamento de Marcos. Depois disso, o perspicaz Adalberto reparou que as frases se repetiam nos mesmos dias, no decorrer dos anos. A culpa era de uma agenda, que o gordo de camisa listrada sempre carregava debaixo do braço, tal uma bíblia.
Aliás, a Bíblia Sagrada não era poupada pelos amigos. Nesse quesito, Marcos era o campeão. Sabia salmo, provérbio, palavras do Senhor no Antigo Testamento, palavras de Jesus no Novo Testamento e - as preferidas dos colegas – citações sem pé nem cabeça do Apocalipse. Quem ficava sempre desconfortável com estes episódios era Gomes, agnóstico desde que se entende por gente.
Logo naquele primeiro dia, Adalberto decidiu que também citaria uma frase, vez ou outra, só para provar sua falsa erudição. Correu para seus livros, em busca de uma fragmento que pudesse ser cuspido durante uma conversa informal. Buscou poetas, afinal, as poesias já vêm mais ou menos divididas, sendo mais fácil roubar um pedacinho. Não achou nada. Cavou os grandes autores. Em Machado de Assis, Monteiro Lobato, Friederich Nietzsche e Cecília Meirelles não encontrou seu tesouro. Quando achava uma frase fantástica, logo descobria que, assim que retirada do contexto, perdia completamente o sentido.
A vontade de se igualar aos amigos fez com que Adalberto tomasse uma medida desesperada: ligar para a ex-mulher. Ele lembrou-se que ela, professora de língua portuguesa, era grande fã de dicionários. Na certa, teria um dicionário de citações para emprestar. Quando Liliana atendeu o telefone, se surpreendeu em falar com o ex-marido, que não dava sinal de vida desde que o divórcio havia sido concluído. A surpresa foi maior ainda quando ele esclareceu o motivo. Sempre solícita, a mulher deixou à disposição de Adalberto o tão precioso dicionário.
Assim que pegou o livro, Adalberto passou horas lendo. Leu no táxi, depois leu no elevador e seguiu lendo em um dos sofás da sala, o mais próximo da porta. Foi incapaz de separar algo realmente fabuloso. Foi incapaz de decorar qualquer frase.
Desistindo da investida, Adalberto reencontrou a realidade e lamentou. Era hora de arrumar a casa, cheia de copos e latas de cerveja espalhados. Pegou um imenso saco de lixo e pôs-se a catar aquela infinidade de alumínio dispersa em todos os cômodos. Da sala ao quarto, no banheiro e na cozinha: tudo tinha cheiro de cerveja velha. Findo o recolhimento do lixo, Adalberto deixou-se despencar no sofá vermelho em frente à televisão. O controle remoto não estava ali, mas ele também não queria assistir nada. Ficou só sentado, pensando nas malditas frases de Marcos, Gomes e do gordo. Não se conformava em não saber uma única citação para impressionar os amigos.
No canto da sala, uma lata abandonada observava o homem abatido. Talvez ela fosse a solução, Adalberto pensou. Talvez aquela lata, um pouco amassada, sobre o carpete úmido, fosse a resposta para as preces de um homem à beira do precipício criativo. Ele levantou-se e caminhou pausadamente até a lata. Já com o cilindro em suas mãos, foi até a janela, de onde observava ora a paisagem, ora a lata de cerveja. Em crise, Adalberto pensou: “E se eu criasse uma frase em vez de apenas cita-la?”. Era preciso ser algo tão fantástico que deixasse os amigos com inveja de suas idéias.
Adalberto começou a pensar na cerveja. Pensou no gosto, na cor, na temperatura. Nada. Então, começou a buscar outra solução para a sua frase. Seria algo relacionado a cerveja, mas não seria a própria cerveja. Ele pensou na lata, na embalagem com doze latas, nos diferentes tamanhos de lata. Desistiu. Catou o controle de lado e ligou a televisão. A lata foi rudemente atirada à rua, como que relegada ao limbo. Sentado no sofá, o desesperado homem tentava não pensar na frase, ou na falta de frase. Foi então, que, tal um anjo visitando Paulo na cadeia, como tantas vezes Marcos invocou, surgiu algo inesperado na tela. Uma loura muito sensual, vestindo apenas um biquíni laranja, caminhava em uma praia paradisíaca. Ela esnobava os terríveis banhistas que a observavam de longe, todos acima do peso, em trajes deprimentes, e ia até um quiosque. Lá, pedia uma cerveja, e se refrescava. De um instante para o outro, os outrora repelentes banhistas se transformavam em modelos de corpos bem trabalhados, exalando masculinidades em seus olhares.
Estupefato, Adalberto arregalou os olhos. Pensou, em voz alta, “a vida é uma campanha publicitária de cerveja”. E sorriu. Estava feliz com a frase. Pensou horas em como era brilhante, em como tinha criado algo tão espetacular. Isso, até que se deu conta de que a frase estava incompleta. Por que a vida era uma campanha publicitária de cerveja? Pensou em centenas de finais possíveis. Reflexões profundas sobre a realidade, tiradas jocosas sobre a beleza, constatações óbvias sobre o mercado. Nada que fizesse a frase se tornar completa e realmente boa. Desistiu, mas jamais esqueceu daquela introdução de citação.
Passaram alguns anos. Uns sete, mais ou menos. Sete anos em que Marcos, Gomes e o gordo atiravam frases atrás de frases e Adalberto limitava-se a ouvi-las e admirá-las. Volta e meia, perdia-se em um mar de Camões, em uma floresta de José de Alencar, em uma quinta de Eça de Queiróz, em uma vinícola de Esopo. Em nenhum desses lugares achou uma frase para somar às dos amigos. Eles chegavam a competir. Quando os livros acabavam, mencionavam novelas, programas de televisão, filmes. As únicas frases de filmes que Adalberto conhecia eram “Bond, James Bond” – que jamais teria espaço para uma citação – e “Nós sempre teremos Paris”, de Casablanca – que não pegava bem ser dita em uma mesa cheia de homens. A ele, só cabia o papel de sorrir. Um sorriso tão amarelo quanto a mesa de bar, que trazia a logomarca de uma famosa marca de cerveja.
Cansado de buscar uma citação, Adalberto fugiu para seu próprio mundo, onde ninguém recita frases ao vento, em troca de nada. Ficava remoendo que a vida é uma campanha publicitária de cerveja, sabe-se lá porquê. Pensava nos milhões de comerciais das diversas marcas da bebida alcoólica mais apreciada no país. Chegou a esquecer que estava à mesa com seus amigos mais fiéis. Só voltou a conversar quando o gordo começou a contar uma história.
- Vocês não sabem – disse ele –, a minha vida está uma droga. Acho que a minha mulher quer o divórcio... Tem dito que eu estou muito ausente, que só penso em trabalhar. Eu só trabalho tanto porque quero comprar coisas bonitas para ela, levá-la para viajar, dar o mundo para ela. Eu realmente não sei o que eu faço.
- Sei que o meu casamento é bem diferente do seu – continuou Gomes –, mas lá em casa as coisas nem sempre vão bem. Eu e a Maristela temos brigado muito ultimamente. Sempre que eu posso, tento compensar as minhas ausências. Eu só estou aqui, hoje, com vocês, porque ela foi jantar na casa da minha sogra.
- Nem me fale – acrescentou Marcos. Estou tão cheio de brigar em casa, que às vezes saio só para evitar o atrito. Seria tão bom se as coisas acontecessem do jeito que a gente sempre sonhou, não é?
Divorciado há nove anos, não caberia a Adalberto dar uma lição de moral nos amigos. Na verdade, ele era o mais fracassado quando o assunto era casamento. Já havia passado por dois, todos sem sucesso. E a sua vida de solteiro também não era grande coisa. Mas ele sabia que o clima só iria ficar mais pesado. Seria preciso quebrar o gelo, dizer algo inteligente para fazer os amigos pensarem e mudar o rumo do bate-papo. Algo inteligente como uma frase. Mas Adalberto não sabia frase alguma. Olhando para as garrafas vazias e os copos que em segundos seriam esvaziados, Adalberto deixou escapar:
- Sabe, gente... A vida é uma campanha publicitária de cerveja.
Todos fizeram silêncio. Todos olharam para ele. O gordo, de olhos arregalados, mal podia acreditar no que Adalberto disse. Gomes olhava para os lados, pensava no que acabara de ser dito. Adalberto se arrependeu do que acabara de falar. Queria voltar no tempo e retirar a colocação. Os olhos dos amigos esperavam a continuação, procuravam sentido no que havia sido deixado sobre a mesa do bar. O coitado Adalberto, arremessado à ribalta, preferia as coxias onde sempre esteve.
Quando Adalberto estava se preparando para pedir que os amigos esquecessem seu comentário, Marcos, quem melhor o conhecia, foi obrigado a dizer:
- Adalberto, meu camarada, isso é a mais pura verdade.
- A mais pura verdade – repetiu o gordo.
- A vida é exatamente isso – concordou Gomes.
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