quarta-feira, 2 de julho de 2008

Alguém igual a ela


Não sei bem que horas são, mas o sol já está batendo no meu rosto há mais de duas horas. O braço direito, sobre o qual deixei cair o peso de todo o meu corpo depois da última noite, está dormente demais, não do jeito que fica apenas formigando. Com todo o esforço, levando o meu tórax e puxo a mão em direção ao peito. Por mais que eu esteja vendo meus dedos desmaiados sobre o externo, o tato não me indica o que está acontecendo. Aos poucos, sinto o sangue voltando a correr em minhas veias. É uma das sensações mais desagradáveis que eu já senti, e olha que eu sou perito em náusea e mal estar. Lâminas finas, agulhas quentes e todos os outros instrumentos de tortura parecem invadir a minha pele, de dentro para fora, de fora para dentro, em movimento circular e latejante. Tento gritar, mas não quero que ninguém saiba da minha dor. Nem sequer o meu espelho.

Sou cínico. Por mais que as minhas bochechas e o meu queixo estejam escondidos sob a relva da minha barba, que os olhos vermelhos não escondam a minha falta de sono, toda vez que enfrento o meu reflexo, ajeito o colarinho e dou um sorriso murcho. Um dia, vou acabar me convencendo de minha aparente felicidade. Mas eu nem sempre fui assim. Tudo começou por causa dela.
Ela podia ser uma pessoa comum, mas não era. Era como um raio de sol. Não este que me impede de cochilar e esquecer meus pensamentos. Um raio de sol que ilumina o jardim, faz o girassol se mover e o 7-desidrocolesterol de nosso organismo virar vitamina D. Ela era algo mais.

Não vou citar seu nome, assim como não vou citar o meu. Não quero dar motivos para que o ego dela cresça ao ver a minha dor. Vou chamá-la de Afrodite pelo simples motivo de saber que todo leitor gosta de se sentir íntimo dos personagens. Afrodite era a deusa do amor, a personificação da paixão intensa, ou foi por um tempo. Ela tinha a pele clara como o Ártico. Tão clara que talvez nem o mais perspicaz dos esquimós pudesse diferenciá-la do gelo, fonte de vida e morte. Seus cabelos eram escuros, pintados no salão da esquina, deixando escapar uns fios brancos que a tinta não notou. Era como se ao mesmo tempo ela fosse a artificialidade da tentativa de esconder os anos e a coragem de deixar resplandecer o grisé da maturidade. Seus seios eram pequenos, quase inexistentes, do tipo que se escondem na palma da mão, do tipo que ficam iguais para todo o sempre, que não se deixam abater e zombam da lei da gravidade. A cintura era fina, como se todo tempo ela usasse um espartilho, mantendo a elegância mesmo quando nua. Os quadris largos não deixavam mentir a brasilidade e alimentavam as fantasias de quem resolvia perder alguns segundos admirando aquelas curvas. O pescoço fino e a altura que dispensava os sapatos altos a transformavam num caule que enverga com o vento, mas resiste à tempestade. As maçãs do rosto eram tão vermelhas, belas e reluzentes que, se o fruto da árvore da ciência do bem e do mal realmente fosse uma maçã, seria inegável e compreensível o impulso de Eva em lha dar uma mordia. Difícil de compreender seriam os motivos que a levaram a dividir tal fruto com Adão. Passos fortes e fora da cadência, mas não de forma desengonçada. Eram um atrativo, uma eterna expectativa pelo próximo passo, que jamais seria como o anterior. Inspirador como uma sonata de Mozart para ouvidos adolescentes, que, apesar de não compreendê-la, acham de uma beleza fundamental. As olheiras, que surgiram na época da faculdade e escureceram com o passar dos anos, só faziam brilhar aqueles olhos azuis que refletiam meus sorrisos e pesares. O nariz fino, fazendo pender um piercing prateado, ensaiava um retorno à rebeldia de outrora, quando a revolta era ato político. Uma boca bonita como se tivesse sido pintado à mão por Boticcelli, mas única como a arte de Miró e Picasso. A voz doce, um pouco rouca quando caía a noite, quase um sussurro durante a madrugada, tinha o poder de me fazer dormir ou me despertar da exaustão, dependendo de suas intenções. E uma pequena marca de nascença, uma tímida pinta, quase tão clara como a pele, a três dedos do umbigo, numa linha reta em direção ao ombro esquerdo. Falar sobre ela é mais difícil do que divagar sobre um cão de lata ao rabo.

Nada disso importa. A única coisa que me vem à mente é o fato de ela ter ido embora. E não vai voltar. E é melhor que não volte, ou seria como um fantasma, que mais assusta do que encanta.
A conheci há muito tempo, no colégio, antes mesmo da libido surgir, antes mesmo de um garoto conhecer a possibilidade de passar o resto da vida ao lado de uma menina. Nos esbarramos uma centena de vezes entre os quatro e os dezenove anos, até que nos encaixamos de forma tal, como ninguém em nosso círculo social acreditava que fosse acontecer. Vou omitir os detalhes, novamente, para resguardar a minha angústia e sofreguidão. Quando ela foi embora, não me lembro bem o motivo, a porta ficou aberta e eu ainda não tive força para ir fechar.

Muita gente entrou e saiu desde então. Alguns só tomaram uma bebida, outros chegaram a se sentar e jogar conversa fora, e houve quem assistisse a tudo, pelo canto do olho, fingindo que não via, que não sabia da verdade. Algumas poucas mulheres ficaram, apenas para me provar como estou velho e arruinado.

A primeira foi alguém igual a ela, como todas as outras eram. Encontrei por aí, achando que fosse ela, rezando para não ser, e não era. Mas durante umas duas semanas foi. Entrou na minha vida, brincou de casinha, achou bonito amparar o coroa deprimido e depois se encheu dos meus pés de galinha, das minhas lesões por esforço repetitivo de voltar a amar. Foi embora levando um belo par de pernas, quadris espetaculares e uma lasca da minha auto-estima.

Procurei por pele clara, cintura fina, seios pequenos, cabelos pintados e um pouco de carinho, mas só achei o caminho irreversível rumo ao desespero. Desisti de procurá-la. Não queria mais ninguém igual a ela. Queria alguém igual a mim. Alguém machucado por dentro, precisando de um ombro para apoiar sua cabeça, enquanto o próprio ombro acolhia a fronte alheia. Não gostei. Cai no meio de uma selva de mulheres de meia idade, complexadas com seus corpos, com seus empregos, com filhos intoxicados, ex-maridos cruéis e armas na gaveta da mesa da cabeceira. Umas duas chegaram a usá-las. Eu não queria mais alguém igual a mim.

Decidi que o melhor era ficar sozinho. Foi fácil por uma semana. Depois, aquele cara que me julga lá do outro lado do vidro começou a me jogar na cara como eu era fraco e como Afrodite devia estar feliz, com uma nova vida e com o meu sofrimento. Foi este cara quem me ajudou a escrever isto aqui, como o possível último registro da minha sanidade ou da minha vontade de fazer alguma coisa. Também foi ele quem me disse para esquecer o nome dela e chamá-la como realmente merecia ser chamada. Caso contrário, Afrodite receberia estas páginas e gargalharia junto com suas amigas devoradoras de homens. Ela nunca vai perceber que isto é uma carta de amor, entregue a ela, anos mais tarde, pelas mãos de terceiros. Afrodite vai acreditar que isso é uma bandeira branca, um sinal de que não sou mais capaz de lutar. Mas eu posso. Foi por isso que saí ontem à noite e trouxe esta menina para cá. Ela é exatamente igual a ela. Eu pedi para chamá-la pelo nome da mulher que me arrasou e para que ela me chamasse pelo apelido que ganhei na quarta série e que foi embora junto com os amigos e com Afrodite. Pedi para que ela vestisse as suas roupas e que eu a despisse, e pudesse admirar o que minhas mãos já não alcançavam. Pedi para que ela ficasse até o dia clarear e fosse embora do mesmo jeito que a minha esperança no amanhã; cruzando a sala, com uma mala marrom na mão, ajeitando a minha camisa na cadeira antes de sair. Ela achava que eu não estava acordado, mas eu estava. Tentava entender o que poderia estar acontecendo. Que brincadeira seria aquela depois de uma noite tão bonita. Não entendi.

Fiquei deitado esperando que ela voltasse. Gritei seu nome, fiz as pazes com Deus, numa oração, voltei a brigar com Ele, numa blasfêmia. Não me cobri quando fez frio, nem sequer me levantei para ir ao banheiro. As minhas necessidades fisiológicas, minhas patologias, não tinham importância se ela não estivesse aqui para reclamar dos punhos amarrotados, dos respingos na tabua, da remela no canto do olho num domingo à tarde.

Esta mulher aqui ao lado, que dentro de poucos instantes vai se levantar e se aproveitar do fato de eu fingir que estou dormindo, também é alguém igual a ela. Do mesmo jeito, vai embora como ela. Quem sabe, à noite, eu divida esta cama com outra mulher. Não importa. Quando o sol levantar, alvo como a sua pele, quente como as noites do passado, eu vou estar sozinho, mesmo.

8 comentários:

Naila Soares disse...

Lembrou-me Rubens Fonseca. Isso é bom.

Lúcia Cúrio disse...

Gosto do seu geito de escrever.

Unknown disse...

mfhwciavSó me reta parabenizá-lo pelo lindo textoe que este seja o primeiro de muitos... Sucesso!!! Bjos,
Mariana

Claudio e Sandra Marusca disse...

Parabens Daniel. Tenho certeza que um dia poderei dizer para muitas pessoas que conheço o Daniel esse famoso escritor e jornalista, talento voce tem de sobra, é só continuar na luta.
Beijos.

Unknown disse...

Belo texto. Parabéns Daniel. Sucesso ao blog. Bjs
Kelly Toledano

Presmic disse...

Que isso, heim Feio! Literatura de primeira!
Saudades

bJokas

Chu-chan disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Chu-chan disse...

amei *-*
kissus ;*