sexta-feira, 4 de julho de 2008

Corre, moleque


Depois do barulho, ele começou a correr, mas corria tanto que ninguém acreditava que pudesse pará-lo e, mesmo se pudessem, não o parariam, ele nunca pararia, pois o medo era forte demais e só o jogava para frente, dava mais impulso, impedia que diminuísse o ritmo, a velocidade, a largura das passadas, que cada vez mais o impulsionava rumo ao desconhecido, afastando-o de tudo o que ele compreendia e confiava, e não havia de ser diferente, afinal ele amava os pais e a última cena havia chocado mais do que qualquer tipo de violência o chocara antes, mas enquanto ele corria, evitava pensar nisso, só pensava em correr mais e mais e nunca parar, pois quando parasse suas forças iriam embora e todo aquele esforço teria sido em vão, o pai caído no chão, a mãe se jogando na frente da bala, o irmão mais velho gritando corre, moleque, corre, porque senão eles vão te pegar e é isso o que ele está fazendo, está correndo o máximo que pode e não olha para trás e só faz curva quando é impossível seguir em frente, atravessa casa, ultrapassa a pelada no campinho do alto do morro e finge que não ouve o barulho dos tiros e finge que não houve o barulho dos tiros e reza para que o barulho não seja por causa dele, que eles já o tenham esquecido, que já tenha esquecido deles, mas ele sabe que vai ser difícil esquecer e é difícil correr de sandálias, o pé queimado, a pele entre os dedos em brasas, o medo lhe corroendo o passado e as balas lhe tirando o que havia de mais valioso, passa uma banca de frutas, passa o botequim onde o pai trabalhava, passa a boca e a boca seca pede para que ele pare, pede um copo d’água, mas ele não pode, prometeu para o irmão com os olhos arregalados, espantado com tanto sangue, com tanto barulho e com tanto medo, mais medo que daquela vez em que a mãe o encontrou no quintal, com as mãos cortadas, mexendo em caco de vidro para fazer cerol para soltar pipa, os olhos da mãe ardiam e ela corria contra o garoto, o medo só aumentava, mas quando ela chegou lhe deu um abraço e o levou para dentro, lavando suas mãos, aflita pelo bem do menor, que sentia mais medo que naquela vez em que o pai se meteu a brigar com o homem com um berro na mão e o pai ficou uma semana longe de casa e quando voltou já não tinha emprego, já não tinha família, já não tinha respeito e foi aquele homem com um berro na mão e mais três, todos de berro na mão, que fizeram o pai cair, a mãe berrar e o irmão, no último suspiro gritar corre, moleque, corre e não pára de correr até que esteja tudo bem, mas nada está bem e o moleque só sabe correr, já caiu duas vezes, o joelho ralado deixa escorrer as lágrimas da mãe que temendo pelo menor ficou entre a morte e o garoto, que só corre, pula muro, desvia do povo e queria saber voar para pedir ajuda para os pais, que com tanto sacrifício lhe deram aquela bicicleta vermelha, com cestinha para guardar o peão, as bolinhas de gude e o maço de figurinhas, que com tanto esforço ele conquistou num bafo com o vizinho, moleque dedo duro que foi contar pro homem com o berro o que o meu pai disse dele e foi por isso que ele foi lá em casa com a camisa enrolada na cabeça, mas ele sabia quem o cara era, conhecia os olhos vermelhos, a aura enfumaçada e o berro prateado, o irmão gritando corre foi o primeiro a cair, com um tiro na perna, ainda tomou mais dois na barriga e, sem o menor assistir, dormiu com um na testa, o pai queria fugir, mas não podia sair de casa e deixar a família para trás, o irmão gritava corre, moleque enquanto o pai tocava o chão e, quando a vez do moleque, a mãe, que estava na cozinha fazendo café, se atirou na frente e se foi olhando para longe, rezando para que o menino corresse e o irmão já pálido pelo medo gritava corre, moleque, corre e pede ajuda pra mamãe, mas ela não precisava mais de ajuda, ninguém precisava, só ele, correndo de sandálias, a camisa grudada no peito, ensopada de suor e da chuva fina que começava a cair, e as coisas não estão bem para o garoto, mas estariam piores se ele não estivesse correndo, todo o barulho que ele ouve, ecoando pelos becos do morro, estaria tilintando dentro do corpo dele, ricocheteando em seus sonhos, transpassando seu futuro, mas o menor corre, tomba e volta a correr, só de cuecas, mas isto não é hora para vergonha, é hora para medo, medo de não conseguir chegar, medo de não saber chegar, medo de que cheguem antes dele e aí sim ele não vai saber o que fazer, ele só corre, moleque, corre, na direção do vento, pelos caminhos que o destino leva, sem saber o que o levou àquele lugar, o que o pai falava com o homem do berro, o que a mãe pensou quando o viu com o sangue nas mãos, o que ele pensou quando viu a mãe com o sangue nos olhos, o que o homem de olhos vermelhos pensou quando ele saiu correndo e todo mundo correu atrás, ele acha, porque senão por que ele estaria correndo, mas não há tempo para isso, se ele for pego vai ter sido a toa que correu e o irmão teria gastado seu último fôlego para nada e seria como se eles nunca tivesses existido, mas precisavam existir, porque existiram, por mais que alguns não os vejam, baixem os olhos, agarrem as bolsas, debochem daquela corrida canhota, com os pés incandescentes escorregando na borracha dos chinelos, o barulho se aproxima, mas ninguém está por perto, só o pai, a mãe e o irmão, que vivem dentro dele e se ele não correr não vão ter mais onde viver, a não ser nos dedos dos homens com berro, que já perderam as contas de quantos se foram, vítimas do acaso, filhos do acaso, que chegaram ao morro por acaso, em busca de lar e trabalho, e em busca de segurança iam embora, mas aquele moleque vizinho foi contar para os homens e agora o pai não vai a lugar nenhum, a mãe já se foi e ele não sabe para onde ir, ele só corre, moleque, corre, que os homens estão muito perto e já dá para ouvir o barulho dos berros e o berro do garoto faz com que seus passos silenciem, o chão some, a dor nas costas é muito forte e está queimando a pele, a carne e o ar e por mais que ele corra não pode sair do lugar e vai tudo ficando preto até que acaba.

2 comentários:

Lúcia Cúrio disse...

O texto é impecável. O ritmo impolgante.

Chu-chan disse...

amei xD