terça-feira, 15 de julho de 2008

O joelho de Rosana


Primeiro foi o susto, depois uma sensação de conforto. Quando o marido pôs a mão em seu joelho, descoberto pela saia preta, Rosana quase pulou. Estava olhando pela janela, distraída com os letreiros da Nossa Senhora de Copacabana. Aquela ação tirou-a do lugar. O que é que João Paulo queria? Com certeza não havia de ser algo em troca, afinal, em um ônibus lotado, nem um beijo fica bem. Em seguida, Rosana relaxou. Passando os dedos calmamente pelo joelho, num movimento de idas e voltas, João Paulo proporcionou à mulher um segundo de total desprendimento, quase um orgasmo espiritual. Rosana sentiu algo inexplicável. Mas é só um carinho, pensava contente. Depois, pálida, voltou a pensar: é só um carinho.

Por mais prazeroso e reconfortante que fosse o gesto, uma coisa tinha de ser levada em conta. Rosana não tinha idéia de quando fora a última vez que o marido lhe fizera um carinho. Correção: qual fora a última vez que ele lhe fizera um agrado altruísta. Geralmente os elogios vinham acompanhados de um predicado interesseiro. As "belas roupas" eram pretextos para tirá-las. Os "cabelos bem cortados" eram o melhor caminho para tocá-los, uma parada antes de um beijo. A "comida deliciosa", por mais de uma vez, foi um convite para jantar fora, no dia seguinte.

Com o joelho repousado na mão do marido, Rosana tentava imaginar o que estaria acontecendo. Naquele coletivo lotado, o conforto cedeu seu acento à preocupação, já que essa era muito mais velha. Um imenso tráfego de pensamentos congestionava o raciocínio da mulher.

Chegou a mover a mão, para tirar de seu joelho as intenções duvidosas do marido, mas desistiu. Afinal, já era tão raro um carinho. Os olhos seguiam as mãos e buscavam uma expressão mais forte daquele ato. Entre a Siqueira Campos e a Hilário de Golveia, disfarçando que estava olhando para um relógio, destes grandes que ficam nas calçadas, Rosana encarou o marido. Qual foi a surpresa, quando descobriu-se que ele nem sequer estava prestando atenção no que fazia. Simplesmente fazia, como se fosse normal fazê-lo.

Disto, Rosana tinha certeza. Um carinho era a coisa mais normal do mundo. Não era porque o marido não estava acostumado a fazê-lo que havia de ser algo suspeito. Voltou os olhos para o joelho e viu, timidamente, a mão de João Paulo se distanciar e voltar para o colo. O que acontecia? Porque ele tinha parado? Depois do susto, do agrado e da suspeita, pairava sobre aquele joelho direito o vazio, uma imensa lacuna deixada pelos dedos fortes e ao mesmo tempo delicados do marido distraído. Olhando para os carros, imaginando qualquer coisa, João Paulo se perdia em esquinas e pessoas, enquanto aquele joelho chamava de volta a manopla que lhe afagara.

Rosana chegou a perna mais para o lado e deixou aparecer um pedaço da coxa, mas o joelho ainda se encontrava em lugar de destaque. O marido nem sequer percebia. Rosana buscou a mão de João Paulo, fez um carinho e a colocou sobre seu joelho. Lá ela ficou, estática, depositada, sem ação. Em algum tempo, de pouquinho e pouquinho, voltou para o colo, onde descansou. O vazio deu lugar à preocupação, que estava de volta, mas com uma roupa diferente. Vestida de incompreensão, a dúvida de Rosana chamava a mão de João Paulo para o joelho solitário. A mulher chegou mais para o lado e se aconchegou no ombro do marido. Deu um beijo em seu rosto e procurou retribuição. Mas aquela mão já não queria saber mais de joelho. Achou no chaveiro uma boa distração para a larga avenida engarrafada.

Foi então que, numa colisão elástica, algo se aproximou do joelho de Rosana. Num esbarrão desastrado o empurrou um pouco para o lado e sentiu o impacto quando voltou. Era o joelho de João Paulo, que perdera o apoio da cadeira da frente quando uma gorda senhora se levantou. Ficaram lá, os dois joelhos, direito dela, esquerdo dele, lado a lado, encostados, como que namorando. João Paulo, impaciente com a demora do trânsito, começou a balançar as pernas, o que fez com que seu joelho roçasse no da mulher, num vaivém estranho, mas que de certa forma lembrava um afago. Rosana sorriu, por um breve momento, e deixou-se levar por aquela carícia involuntária. Não era a mão carinhosa, mas, vá lá, era melhor que um solitário joelho descoberto.

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