
O barulho da água caindo nas minhas costas não me deixa ouvir o telefone tocar. Na verdade, é lógico que deixa, senão eu não estaria aqui afirmando isto, mas esta é a desculpa que eu vou dar. Já é a quarta vez que ela liga e eu continuo metido no chuveiro para não atender. Se minha mãe ainda fosse viva, estaria parada, na porta do banheiro, o telefone na mão, pedindo para que eu falasse com Madalena. Mas a minha mãe se foi e eu nem estou escutando o telefone.
Não sou uma pessoa normal, como você pôde perceber. Fui eleito por Deus para nascer no pior dia possível, 29 de fevereiro. Este é o maldito dia que só acontece uma vez a cada quatro anos. Isto significa que, mesmo eu tenho nascido em 1964, hoje, em 2003, conto os dias para comemorar o meu décimo aniversário. É claro que você já deve estar pensando. “dia 29 de fevereiro... o mesmo dia do aniversário do...” Sim! Sim! Todo mundo conhece alguém que nasceu neste fatídico dia. Nós somos uma legião de desgraçados, aleijados de bolos e festas. Se comemoro uma dia antes: “Ah! Ainda não é seu aniversário, você ainda não nasceu.” Se eu ainda não nasci, está falando comigo, por que? É maluco, por acaso? Quando descido comemorar no dia seguinte: “Não, não. Agora já é março. Seu aniversário foi em fevereiro.” Desgraça!
A esta altura do relato, você não deve estar entendendo mais nada. Estou no chuveiro, fingindo que não ouço o telefone, nasci no dia 29 do segundo mês de um maldito ano bissexto e o título disso é “Guarda-chuva”. Calma. Eu chego lá.
Fui garoto numa época complicada, não dava para falar tudo. Meu pai, um paranaense comunista, vermelho, imenso, que metia medo até nos militares, mandava a gente nunca comentar o que era dito dentro de casa, quais livros ele lia e botava a gente para ler e de que ilha caribenha era aquela bandeira que ficava pendurada atrás da porta do quarto do casal. Era opressão em casa e na rua. Naquela época, a maior loucura que eu fiz foi me trancar no banheiro com um livro de Weber. O homem ficou louco, derrubou a porta e me bateu de cinto. Mas só de lembrar que foi o vô Ademar, pai dele, quem me deu o exemplar,o sorriso me volta aos lábios.
Como o clima não era bom no lar, doce lar, eu gastava boa parte do meu tempo na rua. Nunca fui comunista. O mais próximo que eu cheguei do socialismo foi me declarar anarquista, quando minha mãe pediu para eu tomar conta da Gabriela, minha irmã caçula. “Cada um defende o que é seu. Quando for para o bem de todas as colônias, a gente se reúne”, e saí correndo para fora. Bom, estou me estendendo. Blábláblá, o pai era grosso, blábláblá, vivia na rua. Ponto.
Por estas e outras, acabava tomando chuva, porque as marquises não me protegiam e naquele tempo não tinha shopping para ficar perambulando. Não era raro pegar uma gripe, mas confesso que a chuva estava entre as coisas que eu mais gostava. Guarda-chuva era incômodo, chato de carregar e, de vez em quando, fazia a gente passar a maior vergonha. Eu só saía de guarda-chuva por três motivos: minha mãe, meus livros, minhas meninas – as coisas com as quais eu me importava. Desde então, guarda-chuva passou a ser sinônimo de amor. Ele é incômodo, chato e, de vez em quando, faz a gente passar a maior vergonha, mas nos protege. Agora que você já entendeu que eu sou maluco, cheio de manias e porque este é o título, volto para o meu banho.
Conheci a Madalena em Londres. Estava lá eu, a trabalho, tentando comprar alguma coisa para comer num restaurante. Como inglês é uma língua capitalista, lá em casa a gente só aprendeu russo e espanhol. Tentei falar, gesticular e até me ofereci para ir à cozinha fazer o meu próprio prato, mas o cara não saía do excusme. Comecei a ficar irritado e catei minhas coisas para ir embora. Neste momento, ela tocou o meu ombro, sorriu e falou qualquer coisa com o garçom. Depois sentou e disse que já estava tudo em ordem e que a comida viria em alguns minutos:
- Da próxima vez que for a um país que fale uma língua diferente da sua tente comprar alguma coisa no supermercado. É só encher o carrinho e mostrar o dinheiro.
- Muito engraçado.
- Nunca pensei em encontrar em Londres alguém que não falasse inglês. Podem acabar achando que você veio da França.
- E eu nunca pensei que precisaria de uma mulher para conseguir algo para comer.
- Maria Madalena.
- Prazer. Karl.
- Karl?
- É... Meu pai era comunista.
Madalena morava na Inglaterra, mas, como a família toda ainda vivia no Brasil, volta e meia dava um pulo no Rio. Numa destas vindas ela me visitou e acabou ficando por aqui mesmo. Abandonou o emprego, apartamento e noivo para dividir uma quitinete em Copacabana comigo.
Passávamos as noites em claro, um olhando para o outro, e não conseguíamos fazer uma única refeição sem que ela cortasse o meu bife ou eu passasse manteiga na torrada dela. Durante estes quatro meses, vivemos para nós dois. Não havia um horário de almoço em que eu não fugisse do escritório e passasse em casa, para dar um beijo nela. Na grande maioria das vezes, comíamos lá mesmo, ela tentando virar dona de casa e eu tentando voltar na hora certa para o trabalho. Em algumas outras, saíamos para almoçar fora, ela agradecendo por não cozinhar, eu levando uma baita bronca pelo atraso. Na volta para casa, lá pelas oito, ela me esperava semi-acordada, esparramada no sofá, vendo novela, mas abandonava até o plantão da Globo para ficar quietinha comigo.
Tudo ia ás mil maravilhas em nossa vida, quando um dia, ao sair para almoçar, notamos que estava chovendo muito. Madalena catou pela mão um guarda-chuva imenso, destes que dá para uma família inteira se proteger. Descemos as escadas, empurrando e cutucando, como não poderia deixar de ser, e paramos no hall. A chuva parecia apertar a cada segundo, empoçando a calçada, parando o tráfego. Ficamos ali, namorando, esperando o clima dar uma trégua. Já passava das duas e não tardaria para acabar minha hora de almoço.
- É melhor irmos.
- Está bem.
Cruzamos o portão e, ainda sobre a marquise, pude ver o pé direito de Madalena tocar o chão molhado. Tudo parou. Ela estava linda, um pouco suada, um pouco molhada, a maquiagem escorrendo, mas uma beleza. Os cabelos enrolados e enfiados para dentro da camiseta, os braços cruzados em volta do peito, protegendo-se do frio, o guarda-chuva ainda na mão.
- Não vai abrir?
- Não.
- Por que não?
- O restaurante é logo ali e está chovendo muito. Não vai fazer a menor diferença.
Ela atravessou a rua desviando dos carros. Eu fui atrás. Entramos na churrascaria – fomos a uma churrascaria naquele dia –, eu tirei o casaco, e nos sentamos. Ela pediu um couvert e, por mais que ainda não tivesse comido nada desde o café da manhã, a fome não vinha. No lugar, apenas o estômago embrulhado, como se eu tivesse comido um salmão que dormiu fora da geladeira. Meti a mão no bolso, procurei meu celular e o achei, mas continuei procurando mesmo assim.
- O meu telefone está com você?
- Não, não está.
- Acho que deixei em casa.
- Esquece.
- Não posso. E se alguém do trabalho me ligar?
- A gente come rapidinho e vai embora.
- Acho melhor eu passar em casa para buscar.
Me levantei, vesti o casaco e voltei para o meu edifício. Calmo, nem me preocupei com a água que descia pelos meus cabelos e embaçava as minha lentes. Subi cada degrau buscando do fundo da minha alma o máximo de força possível. Abri a porta, joguei o celular sobre o sofá e entrei no banho. Já é a quinta vez que ela liga, mas, mesmo assim, eu não ouço. Quando sair daqui, vou para o quarto fazer a mala. Entro no primeiro táxi e sumo deste lugar.
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