Não era sempre que seu José Maria se apresentava com tanta empolgação. Aliás, nem sequer gostava de seu nome. Penou no colégio com tantas brincadeiras envolvendo seu nome do meio. Os meninos debochavam, dizendo “lá vem Maria” toda vez que ele cruzava o corredor. Talvez por isso, ou pela falta de capacidade intelectual, abandonou o colégio sem ter completado a sexta série do ensino fundamental. Depois do colégio, fez bico como entregador de pães para ajudar a mãe a sustentar a casa. Zé Maria tinha sete irmãos, sem falar de uma prima que morava com ele e do avô inválido, incapacitado de qualquer tarefa. Foi aos dezessete que decidiu ser porteiro. “Por vocação e opção”, dizia ele, sem saber ao certo o que era vocação e colocando um “i” entre o “p” e o “ç” de “opção”. Repetia a frase que ouvira de um padre durante um sermão. Padre Saulo. Rezava a maioria das missas na paróquia em que Zé Maria freqüentava com a mãe, o batalhão de irmãos, a prima e o avô inválido. Padre Saulo se envolveu com a esposa de um dos messes durante um retiro em Vargem Grande. Um escândalo. Na época, Zé não entendeu, mas pelo pouco que lembra, tenta refazer a história. Hoje em dia, Padre Saulo é pastor de igreja evangélica. Mudou seu nome para Paulo, simbolizando sua transformação. Vive com a esposa do messe, que não é mais esposa do messe, mas corre à boca pequena que ele sai com outras esposas de outros messes. Pastor Paulo. Ainda outro dia Zé cruzou com ele na rua, mas a longa barba não deixou que o Pastor fosse reconhecido. Isso não vem ao caso.
O caso é que numa bela tarde chuvosa de um mês qualquer do último ano do século vinte (sim, uma bela tarde), uma jovem entrou na portaria de Zé Maria. A portaria não era dele. Era do prédio. Prédio este em que ele só trabalhava duas vezes por semana. Nas terças à tarde e nas quintas de madrugada, quando apenas dormia, com os braços apoiados sobre a escrivaninha. Mesmo assim, Zé dizia “minha portaria” e enchia a boca, como se aquela portaria ocupada por ele doze horas por semana fosse tudo o que ele tivesse. Era quase isso. Além da portaria deste prédio e de mais dois, somando no total cinqüenta e quatro horas semanais de trabalho mal remunerado e sem carteira assinada, Zé possuía um Fiat 147, enguiçado e enferrujado, modelo “mil novecentos e guaraná de rolha”, como dizia para os amigos, sem entender bem o que a rolha tinha a ver com o guaraná, e um quartinho no fundo do barraco da prima, onde também morava o avô inválido, que para a surpresa de todos, ainda estava vivo, beirando o centenário. Sendo assim, era cabível que Zé Maria tomasse aquela portaria emprestada para ele duas vezes por semana, nas tardes de terça e nas madrugadas de quinta.
Retomando a narrativa: a jovem sorria para ele e perguntava por um morador que ele não conhecia, sendo assim, não sabia se estava ou não em casa. A jovem era realmente bonita. Zé não se lembrava de ter falado com muita gente bonita. Conheceu algumas de vista, mas não falou com nenhuma, exceto pelo seu trabalho nas portarias. Ele se lembrava de uma menina, ainda em seu colégio. Pensou em pedi-la em namoro, mas ela era mais uma a engrossar o coro que debochava de seu nome meio masculino, meio feminino. Lembrava, também, da mulher do messe, que agora era mulher do Pastor, se é que ainda era. A mulher do messe era bonita e não era de se admirar que o Padre Saulo caísse de amores por ela. Ou era, tendo em vista que ele dizia nos sermões dominicais que era padre por vocação e por opção. Zé achava a prima bonita, embora evitasse pensar nisso e pedia a Deus para afastar qualquer pensamento libidinoso de sua mente, principalmente algum que sua mãe, agora finada, desaprovasse. A mãe, como já dito, finada, também tinha sua beleza, mas Zé acreditava que ela era bonita apenas por ser sua mãe. Mãe é sempre bonita. Aliás, a mãe de seu vizinho Ronaldo, dona Esperança, também era bonita. Fora estas, as moradoras dos prédios também eram bonitas, mas tinham uma beleza de Zona Sul, onde todas as meninas são bonitas, mas todas as meninas são iguais.
A bela jovem, ainda sorrindo, pois antes ela estava sorrindo, o que a deixava mais bela, insistiu. O nome dele é Luís Maurício, e repetia e dizia “o senhor deve conhecê-lo, tem um carro vermelho e um corte de cabelo moderno”. Mas Zé não prestava atenção nas palavras. Apenas no movimento dos lábios. Admirava a poesia daquele movimento, embora não achasse poesia alguma naquilo ou tivesse lido algum poema na vida. Sabia os primeiros versos do hino do Botafogo e sabia que batatinha quando nasce esparrama pelo chão, mas nunca visualizou a cena da batatinha nascendo e se esparramando pelo chão. Mas isso não importava. O que importava era a jovem tentando manter o sorriso, a simpatia e a educação. Pela cabeça de Zé, não passava moço com carro moderno ou cabelo vermelho. E ela repetia “talvez você não o conheça pelo nome” e Zé só ouvia “o nome” e estufou o peito e pensou nas mulheres bonitas e nos sermões de Padre Saulo e nos meninos do colégio e disse “José Maria”.
Era uma bela tarde chuvosa de um mês qualquer do último ano do século vinte. A jovem sorria e Zé nem mais se lembrava do resto todo e poderia repetir pelo resto da tarde ou até a bela jovem ir embora: “José Maria. Meu nome é José Maria”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário