quinta-feira, 3 de julho de 2008

O gostar e o amar

Pode parecer exagero, mas, para algumas pessoas, gostar e amar são sentimentos opostos. Não acredita? Também Joaquim José não acreditava, mas ouviu tais palavras da boca de sua noiva.

- Acho que você não gosta mais de mim...
- Mas eu gosto!
- Gosta, mas não ama!
E foi assim que ele se deu conta.

Todos os antecedentes da crise não vêm ao caso. A questão é que juntos por tanto tempo, poucas coisas os abalavam. Mas, também, quando acontecia, o clima ficava pesado e os corações em ruínas.

Esta briga não era diferente das outras e terminaria bem, como todas as outras. A única coisa que tornava a situação ímpar era a constatação de que Joaquim não amava, mas gostava de Magali. Tal afirmação foi feita inocentemente, ao telefone. Tão rápido que Magali nem se deu conta disso. Depois de briga, com mais calma, conversaram e ela mal se lembrava das palavras. Tudo o que queria era ouvir era um “eu te amo”, meio dito da boca para fora, fazendo-a ficar mais calma e ter certeza de que nada iria mudar entre os dois apaixonados.

Vamos ao caso. Joaquim tinha combinado de encontrar Magali na casa dos pais da moça. Esquecera-se. Não estava fazendo nada demais, mas esquecera-se por completo de encontrá-la. Então lembrou-se de algo que seu padrinho costumava falar para ele por ocasião de seu primeiro namoro:

- Quinzé, Quinzé, se um dia esqueceres de tua menina, desista dela. O esquecimento é um joguete do destino para te avisar que não queres nada com a situação – e falou assim mesmo, com a segunda pessoa bem conjugada, como bom gaúcho que era.

As palavras tomaram a memória de Joaquim de assalto e fizeram com que ele decidisse conversar seriamente com Magali. O tema era o fim do noivado. Chegou ao lugar da conversa decidido, falando sozinho, convencendo-se de que era o melhor a ser feito. Falou baixo, mas firme. O problema é que, ao final, não queria de jeito nenhum ir embora. Estava dando mais atenção a Magali do que aos ensinamentos de seu padrinho. Aliás, lembrou-se de outro:

- Quinzé, Quinzé, se um dia acordares tarde para ir trabalhar, ligue e diga que estás doente (e dizia doente com tanta ênfase que fazia Joaquim sentir-se gripado). Mais vale uma boa manhã de sono do que sair correndo para o trabalho e chegar roto e de barba por fazer – e falou com o mesmo acento porto-alegrense das outras citações. Verdade seja dita, um dia Joaquim acordou mais tarde e decidiu-se por aproveitar mais um pouco a cama e as cobertas. Na manhã seguinte, ao chegar ao trabalho, foi encaminhado ao departamento pessoal. Em menos de uma hora estava na rua, com seu bilhete azul na mão.

A lembrança do episódio fez com que Joaquim abraçasse forte sua noiva e decidisse que era melhor tentar mais uma vez. Beijaram-se e se despediram, combinando outro encontro no dia seguinte. O rapaz voltou para casa, muito despreocupado. Tirou os sapatos, as meias, jogou-se no sofá e se deparou com um filme de James Bond na televisão. Uma pérola que raramente passa nos canais abertos. Era dublado, mas vá lá. Nada pode ser perfeito. No ponto alto do filme, seu telefone toca. Mas o que vai acontecer com 007? A ação não poderia ser interrompida desta forma. Joaquim tentou ignorar, mas o telefone não parou de tocar.

Joaquim tomou fôlego e correu em direção ao aparelho. Deve ser só um engano, pensou, me livro disso num minuto. Mas ao falar alô, ouviu:
- Acho que você não gosta mais de mim...

Era uma bomba. Um tiro à queima roupa em quem só queria saber se James Bond, vivido então por Sean Connery, se safaria de um ataque sórdido do satânico Dr. No. Era uma conversa que não acabaria em um minuto. Pelo contrário, demoraria horas, até. Sem solução, Joaquim deu adeus à trama de Ian Flemming, bem na hora em que o agente da Rainha dava de cara com Ursula Andress, a primeira e mais famosa Bond Girl, e se preparou para uma vigília de discussões ao pé do ouvido. Engoliu seco e pensou “se vou ter que prestar atenção nisso, eu vou prestar atenção”.

- Acho que você não gosta mais de mim...
- Mas eu gosto!
- Gosta, mas não ama!

Aquilo bateu no peito de Joaquim com um impacto sem proporções. Como ela podia fazer aquilo? Gostar, mas não amar? E ele que sempre achou que o amor era uma gradação crescente do gosto. Eu gosto, eu gosto muito, eu amo. Foi assim que aprendeu.

Magali expôs diferente: o gostar é o não amar. Gostar é trair, maltratar, mentir, enganar e, se não fosse suficiente, dizer “eu gosto de você”, com uma fisgada sarcástica no canto da boca, esboçando um sorriso.

- Acho que você não gosta mais de mim...
- Mas eu gosto!
- Gosta, mas não ama!
Aquele prefácio de conversa ecoava nos tímpanos de Joaquim e traziam de volta a sordidez do pensamento.
- Você não está me entendendo... O que eu quis dizer é que eu te amo.
- Era o que você queria dizer, mas não foi o que disse. Eu pude ouvir muito bem. Você tem outra não tem? E estava com ela! Foi por isso que não foi me ver... Qual é o nome dela?
- Mas não há ninguém?
- E o que te fez se atrasar?
- Não foi nada, escute...
- Nada?! Na minha época, isto se chamava sem-vergonhice!
- A sua época é agora!
- Não grite comigo!
- Eu não estou gritando.
- Aposto que você não grita com ela.
- Ela quem?, e Joaquim ainda ouviu um suspiro antes de Magali bater o fone.

Passou o tempo e os dois se reencontraram. Não estava chovendo (mas a chuva faria a cena digna de um bom filme norte-americano) quando Joaquim entrou numa loja de conveniências e deu de cara com Magali segurando uma garrafa de Merlot. Lembrou-se do padrinho:

- Quinzé, Quinzé, mulher que compra garrafa de vinho é porque está solteira. Mulher casada ganha vinho de presente.

Talvez fosse hora de voltar a dar atenção ao padrinho. Sorriu e convidou sua amada para tomar um café.
- Ainda está com aquelazinha?
Ele até poderia explicar que nunca houve ninguém, mas foi mais simples dizer:
- Não, estou sozinho...

O café descafeinado com adoçante e um pouco de leite rendeu boas horas de conversa, um casamento civil e religioso (como manda a tradição) e uma ninhada de três filhos: duas meninas e um menino.

O mundo girou, o muro caiu, a moeda mudou, o presidente caiu, a moeda mudou de novo e Joaquim andava pelas ruas do Leblon quando seu carro bateu. O novo presidente pedia calma, controle dos gastos. Reparar um carro a esta altura do campeonato era um crime contra o bem estar nacional. Joaquim desceu furioso e deu de cara com uma mulher alta, em cima de um salto alto, falando baixinho para ninguém ouvir:

- Desculpe, foi culpa minha. Me ligue que eu pago os reparos.
A mulher, quase menina, deu um cartão onde as letras do nome Maria Clara saltavam para fora, em um dourado digno de qualquer cobrança de quinto. Joaquim ligou, mas quem disse que queria saber de conserto? Queria só olhar de novo para aqueles, que na memória dele, lembravam os olhos de cigana oblíqua de Capitu.

- Alô?
- Por favor, a Maria Clara está?
- Só um momento.
Mas não foi só um momento. Foi uma eternidade cujo silêncio foi quebrado pela voz doce que dizia um seco “pois não”.
- Meu nome é Joaquim, o da batida...
- Claro, claro. Me dê o número da sua conta que eu deposito o dinheiro do reparo.
- Sabe o que é...? Os bancos não andam muito confiáveis. Será que nós poderíamos nos encontrar?

Estava marcado. Era um encontro. Mas ele era casado e pai de três filhos. Não! Não era um encontro. Joaquim apenas pegaria o dinheiro do conserto do carro. Se arrumou todo, botou o melhor perfume e foi a um restaurante da moda. Maria Clara estava divina, como não poderia deixar de estar. Era altíssima, de seios fartos e pernas que deixariam uma modelo de queixo caído. Talvez fosse modelo. Ela não queria se demorar, mas ficou mais de três horas olhando para Joaquim, que mal se lembrava como era flertar. Saíram dali no carro dela, um importado conversível, rumo ao motel mais próximo. Não é necessário mencionar o que aconteceu nos momentos seguintes.

O tempo passou e Joaquim se encontrava com Maria Clara com uma freqüência crescente. Mal olhava para Magali e desperdiçava horas observando o nada, quase vendo a fronte de sua amante. Cria plenamente que amor era alguma pantomima, e que ele jamais sentira algo tão forte por uma mulher. A única coisa que corria por suas veias era um desejo carnal por um belo pedaço de mau caminho

Segue o desfecho da trama: estavam os dois – Joaquim e Maria Clara – juntos, em um quarto barato de motel, quando o relógio de nosso protagonista apitou. Eram dez da noite e Joaquim tinha combinado de encontrar Magali na casa dos pais dela. Sem dar explicações, despediu-se de Maria Clara, prometendo novo encontro e se meteu pela rua. Tomou um táxi e ordenou pressa. Para sua sorte, o motorista não respeito sinal vermelho, pedestre ou ciclista. Já eram dez e vinte quando o telefone celular, um luxo dos novos tempos, tocou. Joaquim estava saindo do carro, em frente ao prédio onde estava sua esposa.

- Alô?
- Onde você está?
- Dê uma olhadinha pela janela.

Magali espiou por detrás da cortina da segunda janela da esquerda para a direita, do oitavo andar. Uma das poucas janelas acesas. O prédio azul de pastilhas era bonito, mas os moradores migravam para regiões mais pacíficas da cidade. O táxi arrancou. Joaquim, acenando, se preparou para entrar no edifício.

- Meus pais estão esperando... Sobe logo, está bem?
- Pode deixar. Já estou subindo.
Mas antes que pudesse encerrar a chamada, Joaquim chamou sua atenção.
- Magali?
- O que foi?
- Eu te amo.

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