quarta-feira, 16 de julho de 2008

Sangue e vinho tinto


A cabeça pesava mais que todo o resto do corpo. No banheiro do escritório, com o rosto enfiado na latrina, Hugo se arrependia de ter bebido na última noite. Enquanto segurava a gravata para não sujar ou molhar, o advogado se lembrava de que não lembrava de nada. A última recordação era o garçom enchendo seu copo com uma dose de Johnny Walker Red Label, a terceira da noite. Foi cowboy, mesmo, para que fizesse efeito mais rápido.

Fazer festas no escritório era comum na última sexta-feira do mês, quando o chefe saía para viajar. As secretárias traziam petiscos, os estagiários ficavam responsáveis pelas músicas e os advogados acabavam trazendo uma cervejinha. Mas esta festa foi especial. Para comemorar a vitória em um grande caso - um político inocentado das acusações de desvio de verba pública - ele e seus colegas contrataram o buffet de um hotel da orla e compraram todos os tipos de bebida possíveis. De cachaça a licor, de cerveja a scotch, se o teor alcoólico não fosse neutro, eles estavam aceitando.

Para a esposa, Hugo alegou que teria que terminar a papelada do caso e por isso deixou de assistir a uma peça, em que os filhos interpretariam tartarugas, no colégio. Vendo o vômito vermelho, que ele supõe ter sido causado por vinho, Hugo lembra que ainda não falou com a esposa hoje. A barba por fazer pode ser facilmente notada, mas ficará imperceptível quando comparada à dos colegas.
Hugo amanheceu deitado na mesa de sua secretária. Ela, calçando os sapatos, alertava-lhe para as marcas de batom no colarinho.

- Batom no colarinho não tem explicação, ela dizia; foi assim que o meu primeiro casamento acabou.

Dona Catarina, a secretária, havia sido indicada para o posto pela própria mulher de Hugo. Era sobrinha de uma velha amiga, e precisava de um trabalho para começar a vida. Já estava há mais de treze anos no escritório. Foi um caso fácil de esconder desde o começo. Dormir com a secretária é tão óbvio, que chega a não deixar pistas. Além disso, os cabelos curtos de Catarina, castanhos como os do patrão, não deixavam margem para desconfiança.

Quando um respingo de água atingiu a lente esquerda dos óculos de Hugo, ele se deu conta das conseqüências da última noitada. Fora terminantemente proibido de beber pelo médico, após o surgimento de uma suspeita de câncer no fígado e no pâncreas. A dor que ele sentia tinha explicação. Beberrão desde a mais tenra idade, nunca dispensou um trago no bar da esquina ou um aperitivo com os amigos. Hugo não fazia o tipo violento, nunca fez escândalo, nunca fez a família passar vergonha. Mesmo assim, o álcool lhe corroia as entranhas.

No jato seguinte de vômito, sangue e vinho tinto se misturavam, num amálgama de incredulidade e sofrimento. No bolso do paletó, pendurado na fechadura da porta, o pager vibrava. Era uma mensagem da esposa, preocupada com o que teria acontecido. Hugo não tinha condições de ligar para ela. A fala arrastada denunciaria a noite de extravagâncias. Bebedeira na sala de reuniões, orgia no escritório e uma notícia amarga como anis – Catarina estava grávida. Não era para menos. Tantos anos de sexo irresponsável, sem camisinha, sem pílula, sem preocupação com o dia em que a esposa descobrisse. Dona Janete, filha de um barão das telecomunicações, nunca preocupou-se com os plantões na firma, com as viagens marcadas em cima da hora, com os presentes que Hugo recebia. Afinal, para que esquentar a cabeça; ele era um bom profissional e merecia o trabalho e as recompensas.

Com as mãos e punhos sujos de bile, Hugo tentava se livrar do que o prendia. Arrancou o cordão, de onde pendia um crucifixo, presente da avó, tirou o relógio e colocou na beira da privada, mesmo local onde depositou a aliança dourada e o anel de formatura. Afrouxou a gravata e desabotoou o colarinho enquanto se controlava para não vomitar novamente. Num impulso incontido, deixou que mais sangue descesse pela garganta. Não havia sinal de comida, o que justificava a intensidade da ressaca. O som da própria respiração ecoando no banheiro lhe perturbava.

Dona Catarina batia na porta, chamando-o para uma reunião imaginária; Dona Janete ligava para sua sala, para seu celular, para seu pager e não obtinha respostas. Mas que tipo de respostas ele daria? Não podia comentar os acontecimentos da última noite, da madrugada daquela sexta-feira, que virava um sábado, seu dia de folga. Agarrando-se à beirada da pia, Hugo ergueu seu corpo, encarando o espelho embaçado pelo vapor que subia. A torneira estava aberta, desperdiçando água quente. Com uma toalha molhada, o advogado limpava o rosto, as mãos e os braços. A camisa de botões, imunda pela bebida e pelo vômito, foi jogada num canto qualquer. De calças e camiseta, Hugo tentava, sem apetite, digerir a última noite.

Eram quase onze horas e havia um almoço no clube, para comemorar os quarenta anos de Dona Janete. Disso Hugo se lembrava bem. A esposa só falava da tal festa nos últimos dias. Lá estariam seus familiares, amigos e até uns jornalistas de coluna social. Se ele não desse sinal de vida, Janete e as crianças apareceriam, e aí seria muito pior. Do lado de fora, Catarina esperava, com roupas limpas nas mãos. Do lado de dentro, Hugo voava para a latrina, vomitando novamente. Havia algo ali que ele não sabia identificar. Um pedaço dele, talvez. O simples pensamento lhe trouxe a ânsia novamente e, antes que percebesse, voltou a vomitar e chorar.

Não havia mais nada para pôr para fora. Encheu a boca de água, bochechou, penteou os cabelos e abriu a porta. Dona Catarina lhe passou as mudas de roupa e disse que tão logo ele saísse, ela mesma limparia o banheiro. Em alguns minutos, Hugo vestiu o terno verde, presente da secretária, calçou os sapatos e fez o nó windsor, que o pai lhe ensinara, na gravata de seda. Apertou o botão da descarga, catou o cordão, o relógio e os anéis. Enquanto o banheiro rodava diante de seus olhos, o advogado tentava fixar um ponto para começar a procura. A aliança não estava mais ali. O símbolo da união com a esposa estafa perdido, bem como a união propriamente dita. Na certa, descera pelo cano, com a água, o vômito, o vinho e as aparências. Não fazia diferença. Havia coisas demais para explicar, afinal de contas.

Um comentário:

Lúcia Cúrio disse...

Mais um belo texto. Sua narrativa nos faz visualizar todo o ambiente e os acontecimentos. Parabens!