terça-feira, 25 de novembro de 2008

Destino

“Nasceu Bianca Duarte, que será grande atriz da televisão e do cinema brasileiro. Seus papéis de destaque serão na novela O Caminho da Felicidade e no filme Nosso Amor. Ela tentará também carreira como cantora, mas seus discos não serão bem recebidos pela crítica. Ela se casará com Rodolfo Mello, com quem fará par romântico na novela A Mulher dos Meus Sonhos, que a lançará para o estrelato. Juntos, terão duas filhas, Rosa e Patrícia, e ambas seguirão a carreira dos pais. O casamento de Bianca e Rodolfo será marcado por brigas, motivadas pela dependência dele em álcool. A futura atriz morrerá aos 87 anos, de falência múltipla nos órgãos. Ela deixará grande fortuna, que será utilizada na criação da Fundação Bianca, que dará oportunidade de estudar teatro a diversas crianças, muitas das quais serão reconhecidas como sucessoras de Bianca Duarte.”

Azevedo assinou a coluna de nascimentos, enviou para seu editor, puxou o paletó da cadeira e se despediu do jornal. Nada no mundo o frustrava tanto quanto seu emprego. A coluna de nascimentos era importante e atraía muitos anunciantes. As famílias dos recém-nascidos enviavam diversos presentes a Azevedo, na esperança de que ele contasse um futuro melhor para seus filhos. Na verdade, independia dele o conteúdo da coluna. Azevedo só escrevia a verdade.

A sociedade em que o jornalista vivia, diferente desta nossa, era totalmente baseada no destino. E eles levavam o destino muito a sério. Havia diversos especialistas em ler o futuro e, não importa o que acontecesse, eles sempre acertavam. Apesar da fama que a coluna lhe rendia, Azevedo vivia frustrado, considerando-se um burocrata do destino.

No dia em que o próprio Azevedo nasceu, seu parto rendeu uma notinha. “Nasceu na tarde de ontem Emanuel Azevedo, que em 25 anos se tornará o autor desta coluna. Azevedo, como será chamado, trabalhará em diversos jornais em sua carreira, mas será sempre conhecido como o ‘Homem do Destino’, graças a seus relatos sobre os nascimentos. Ele se casará com Fátima Lopes, mas não terá filhos por ser estéril, o que causará inúmeros problemas conjugais. Emanuel morrerá aos 62 anos, em um acidente de carro. Após sua morte, uma rua será batizada em sua homenagem.”

Seu destino o incomodava. Quem o lesse, perceberia toda uma vida de não realizações, baseada exclusivamente no trabalho que ele tanto odiava. Mas não era isso o que o aborrecia. Caso sua nota de nascimento dissesse que ele se tornaria extremamente rico e se elegeria presidente, Azevedo ficaria igualmente inconformado.

O que mais chateava o jornalista era a total impossibilidade de tomar qualquer decisão. Porque independentemente do que ele fizesse, tudo acabaria como os estudiosos escreveram no dia em que ele nasceu. Fátima, a esposa, gostava do sistema. Mesmo sabendo que nunca teriam filhos, lhe restava a alegria de constatar como o namoro dos dois tinha acontecido do jeito que estava previsto.

Naquela noite, quando voltou para casa, Azevedo estava claramente abatido. Fátima logo percebeu que havia algo errado. Ela tanto insistiu, que o marido contou o que o afligia. “Sabe essa droga de destino? Eu odeio o destino!”

Fátima achou graça na reclamação do marido. Como alguém podia reclamar do destino, se este já estava escrito e não havia como fugir? Ela deu uma gargalhada e saiu da sala. Azevedo, mais irritado do que nunca, decidiu: “Vou escrever meu próprio destino!”

Emanuel correu na gaveta da sala e pegou sua certidão de nascimento, que narrava com riqueza de detalhes os principais episódios de sua vida. Lá, dois lhe chamaram em especial a atenção. O primeiro, uma grande festa de aniversário para comemorar seus trinta anos, data que se aproximava em poucos dias. O outro, um livro que escreveria. Na opinião dele, estas eram coisas fáceis de se evitar e provar que o destino não existia.

No dia de seu aniversário de trinta nos, que mais parecia a celebração de que só faltavam mais trinta e dois para que todo o destino se cumprisse, Azevedo fez de tudo para fugir. Havia uma festa marcada num restaurante próximo ao jornal e todos os seus amigos, parentes e colegas já tinham garantido presença. A primeira idéia que teve foi ligar para o estabelecimento, acusando uma ameaça de bomba. O dono do lugar pediu que ele esperasse um pouquinho. Quando voltou, riu da brincadeira. “Isto é um trote, meu amigo. Só pode ser. Aqui no registro do meu imóvel não fala nada de bomba. Vou ter um incidente com ratos até o final do mês e um bujão vai explodir a minha cozinha em dois anos, mas bomba não tem não”, disse o homem. Impaciente, Azevedo desligou.

Sem poder cancelar a festa, só lhe sobrou fugir dela. Saiu da redação meia hora antes do horário, chamou um táxi e correu para casa. Entrou de fininho, pé ante pé, e quando chegou na sala, um grito de “surpresa” quase o derrubou. Metade de todo mundo que ele conhecia estava parado em sua sala de jantar, com bolas, bolo e salgadinhos.

Durante mais de um ano, o pensamento de Azevedo permaneceu focado no destino. Destino este que garantia que ele escreveria um livro. Essa, só dependia dele. Se Emanuel não escrevesse nada, o destino estaria errado e ele ganharia. A cada dia que se aproximava da data de lançamento da obra, mais nervoso ele ficava. Até porque diversas vezes Azevedo se descobriu escrevendo algumas linhas no intervalo do trabalho ou durante a noite.

Quando o fatídico dia chegou, o jornalista era só alegria. Seria impossível concluir e publicar uma obra em menos de vinte e quatro horas. Mas quando chegou à sua mesa e encontrou uma caixa, seu coração quase parou. No interior, encadernados com suas colunas trazia sua assinatura imensa na capa. “Gostou?”, perguntou o editor. “É um apanhado com as pessoas que serão mais famosas que você já escreveu. Vai vender que nem água. Um milhão, oitocentos e quarenta e dois, duzentos e três exemplares, para ser mais exato.”

Furioso, Azevedo voltou correndo para casa. Aproveitou que sua mulher estava fora para colocar a última etapa de seu plano em ação. Se o destino dizia que ele morreria aos sessenta e dois, um suicídio aos trinta e um seria o golpe perfeito contra o sistema. Puxou uma cadeira, amarrou uma corda no lustre e fez um laço em volta do pescoço. Com a frieza de quem estava à beira do desespero, o jornalista chutou a cadeira em que estava trepado e contente deixou o corpo pender na forca.

Enquanto gozava sorridente de seus últimos segundos e sentia com alegria o pulmão reclamar e os olhos forçarem-se para fora das órbitas, Azevedo ouviu o telefone tocar pela última vez. Após a terceira campainha, a secretária eletrônica atendeu. “Emanuel? Sou eu, Fátima. Só para te avisar que ligaram hoje do departamento de registro. Parece que houve um erro no dia em que você nasceu. A sua certidão diz que você vai morrer aos sessenta e dois, em um acidente, mas parece que você morre hoje, enforcado. To ligando só para dizer que te amo. Espero que eu ainda te pegue vivo quando chegar do trabalho. Beijo.”

Azevedo ouviu o recado em desespero. Sacudiu-se todo na tentativa de escapar da morte. Em vão. No dia seguinte, seu suicídio estava no obituário do jornal. Ninguém leu.