quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

O fim – Ainda não acabou (4 de 3?)


Não chegou a paz celestial que ele esperava, nem o tormento infernal que a filha tinha prometido. O destino de Alberto foi mais, digamos, úmido. Deitado na grama, arremessado ao chão pelo impacto da queda do meteoro, ele foi acordado pelas lambidas do vira-latas Hugo.

“Vivo”, pensou ele. “Eu estou vivo. Hugo está vivo. Estamos todos vivos. Será?” O primeiro impulso do velho foi puxar o rádio do bolso e tentar sintonizar alguma estação. Uma música. Roberto Carlos. Era o início do Show do Genésio. Nunca tinha sido tão bom ouvir uma canção do rei. Quando o comunicador voltou, as notícias eram boas.

“Minha amiga, meu amigo do Show do Genésio. Hoje, mais do que nunca, é dia de alegria. Nos últimos três dias nós falamos bastante sobre o meteoro que se aproximava da Terra. Tinha gente até apostando que era o fim do mundo”, um barulhinho no fundo mostrava o quanto aquilo era ridículo. “Pois bem, ontem, no final da noite, os cientistas da Nasa se retrataram e disseram que o meteoro não era tão grande quanto eles calcularam. O meteoro criou uma grande cratera no Parque Nacional de Itatiaia, mas até o momento não tivemos registros de mortos. É dia de alegria, minha gente! Vamos cantar!”

O velho deixou um sorriso largo estampar seu rosto. Estalando os dedos, ele chamou Hugo e correu de volta para a base. Queria, o quanto antes, falar com a filha e dizer que entendia a postura dela e que a perdoava.

Ao chegar à base, contudo, não encontrou os militares. Todos ainda estavam trancados no abrigo subterrâneo e a grande antena de rádio e televisão estava quebrada. Na certa, eles acreditavam que as pessoas haviam morrido com o impacto. Alberto tentou bater na escotilha, chamar pelo nome da filha, mas sabia que era tudo em vão. Carla e seus companheiros estavam incomunicáveis e permaneceriam assim por cinco anos, enquanto houvesse comida estocada.

Alberto voltou para o Rio de Janeiro, para seu apartamento na Tijuca. Em poucos dias, já estava mergulhado novamente em sua rotina. Acordava cedo, ouvia rádio, rezava, fazia exercícios. Tudo o que sempre fizera, como se a raça humana jamais tivesse batido às portas da extinção. Antes de dormir, lembrava da filha. Às vezes, puxava o telefone do gancho para ligar para ela, mas depois lembrava-se que Carla estava isolada em uma base militar. “Sempre me esqueço disso, Hugo”, dizia ele para o cachorro. Velho tem dessas coisas.

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

O fim – Contagem regressiva (3 de 3)


– Pelo menos ele foi um cara legal – disse o velho sobre o homem que tomou a casa de sua filha e jogou os dois na rua. – Ele não precisava ter nos dado o carro dele.

A filha não via como um homem com uma espingarda na mão ameaçando matá-la caso não abandonasse a casa onde cresceu e viveu por quarenta anos podia ser um cara legal. Ela culpava o pai pelo que tinha acontecido, apesar de saber que aquilo não era exatamente culpa do velho.

O carro era bem antigo e a gasolina estava quase na reserva. Os dois dirigiram até cair em uma rodovia estadual, que estava completamente engarrafada. A única solução era deixar o carro desligado e empurrá-lo toda vez que o carro da frente andasse, para economizar gasolina.

As pessoas não pareciam mais elas mesmas. Quando o fim do mundo foi anunciado, todos pareciam ligeiramente conformados. Procuravam suas famílias ou simplesmente tentavam fazer uma última loucura. Havia confusão nas ruas, mas não havia violência. Mas agora que havia alguma esperança, parecia que a sobrevivência dependia de passar por cima dos outros.

Algumas pessoas que passavam a pé pela rodovia, no sentido oposto dos carros, diziam que mais adiante um homem tinha matado a própria mulher dentro de uma caminhonete. Isso porque ela havia fugido com o amante. Além disso, de tempos em tempos, um grupo de nove homens passava revistando alguns carros em busca de suprimentos escondidos.

Quando a noite caiu, o velho pediu que a filha ficasse dentro do carro para dormir. Alberto se sentou sobre o capô do carro e ficou vigiando para se certificar de que nada de mau acontecesse com Carla. Hugo, o cachorro, ficou o tempo todo alerta ao seu lado.

O sol nasceu lembrando a todos que aquele era o dia que ninguém queria que chegasse. O dia em que o meteoro finalmente se chocaria contra a Terra. Os carros não se moviam na rodovia há horas e Alberto tinha certeza que aquele não era o caminho para a sobrevivência. Alberto puxou Carla pela mão e se enfiou na mata, em busca de um lugar alto e protegido para se esconderem.

Carla havia guardado em uma sacola algumas latas de comida. Salsichas, milho verde e sopa de ervilha. Um banquete para um dia como aquele. Ela e o pai se sentaram na sombra de algumas árvores e aproveitaram o que poderia ser a última refeição. Para aproveitar o tempo em que estavam parados, Alberto ligou um pequeno rádio.

“Notícia ruim para os moradores do Rio de Janeiro”, dizia o apresentador da única estação que o velho conseguiu sintonizar. “De acordo com um novo relatório da Nasa, o estado será atingido pelo meteoro que se aproxima da Terra. O local mais provável da queda é o sul do estado.”

O sul do estado do Rio de Janeiro. Justamente onde fica Itatiaia, a cidade em que Carla cresceu, a cidade em que eles estavam agora. A busca por um lugar segura nunca foi tão necessária e era a diretriz primária de Alberto. Ele pediu que a filha levantasse imediatamente.

– Não! – ela gritou. – Eu não vou continuar fugindo! Eu estava quieta na minha casa, esperando o destino chegar, quando você apareceu. Eu não queria me proteger, eu não queria fugir. Eu só queria morrer. Morrer quieta e em paz. Mas você tirou isso de mim. Se você acha que pode sair correndo e arrumar um lugar para se esconder, vá em frente! Mas não me leve com você!

Alberto ficou atônito. Não teve qualquer reação além de sentar-se novamente. A tarde avançava, quando Carla finalmente se levantou. Mas não parecia que ela estava indo procurar abrigo. Era mais como se ela estivesse simplesmente entediada por estar sentada ali. O pai limitou-se a segui-la.

Os dois caminharam por duas horas por dentro do mato. E continuariam andando, se não fosse por uma barreira no meio do caminho. Um muro. O muro de uma base militar escondida entre as árvores. Do alto do muro, um soldado gritou para dentro da base:

– Eles não estão armados – e imediatamente, o portão da base se abriu. Um homem alto, de uniforme verde oliva e cabelos raspados, os recebeu. No peito, o nome era Pinheiro. E pelas duas estrelas no ombro, Alberto podia supor que o homem era primeiro-tenente.

Aquela base, segundo o primeiro-tenente Pinheiro, era um posto escondido do exército. O lugar não era grande. Contava com um paiol de munições e armas, uma pequena área de treinamento, dormitórios para cerca de duzentos homens e, a joia da base, um abrigo subterrâneo.

– Temos nesse abrigo alimentos suficientes para ficarmos protegidos por mais de cinco anos – afirmou Pinheiro. – Acreditamos que cinco anos após a queda do meteoro boa parte da população mundial terá sido dizimada. Os humanos restantes estarão fracos, sem comida e sem água potável. Quando este período acabar e voltarmos para a superfície, estaremos em clara vantagem.

– E se nada acontecer? E se o meteoro for um alarme falso? – instigou Alberto.

– Impossível, senhor – respondeu outro militar. – Os especialistas do exército têm certeza que o impacto do meteoro sobre a Terra será muito grande. E nós não estamos dispostos a encarar a extinção. Além disso, temos uma grande antena de rádio e televisão – o homem apontou para a antena no canto do pátio. – Se as transmissões forem interrompidas, nós saberemos que a humanidade pereceu.

– Nós abrimos os portões porque queremos ajudar vocês – disse Pinheiro. – Já resgatamos alguns civis, que estão se acomodando no abrigo. O problema é que só temos lugar para mais uma pessoa. E o cachorro não será aceito. Decidam-se, pois não temos muito tempo mais.

Ao dizer isso, o primeiro-tenente apontou para o céu. Anoitecia, mas era possível ver o meteoro se aproximando, riscando o céu com fogo. “O apocalipse”, pensou Alberto. O velho não tinha dúvida. Se só havia uma vaga, o lugar era de Carla. Ele precisava proteger a filha, dar uma nova razão para a vida dele. Mas ao virar-se para ela, percebeu que Carla já estava entrando no abrigo, seguindo os militares.

– Filha...?

– Não há nem o que discutir – ela estava mais áspera do que de costume. – Se você veio para ficar bem comigo, fique tranquilo. Seu sacrifício vai fazer com que todo o meu rancor passe. E, afinal, será um confinamento de cinco anos. Você já é um velho, não duraria tanto tempo.

Sem se despedir, a filha entrou no abrigo, trancado imediatamente depois. Alberto ficou olhando para a escotilha no chão. Não acreditava que Carla pudesse ser tão fria ao abandonar o pai para a morte. Ao menos o cachorro ainda lhe fazia companhia.

Alberto e Hugo saíram da base e foram para um espaço descampado. O velho sentou-se no chão e ficou admirando a imensa rocha incandescente que descia dos céus. Era belo, mas ao mesmo tempo aterrador.

Às oito e vinte e sete da noite, o meteoro se chocou contra o solo. Caiu a alguns quilômetros de onde Alberto estava com o vira-latas. O chão tremeu imediatamente, como um grande terremoto. Depois, uma onda de ar e poeira varreu o solo. Árvores caíam e instalações elétricas pegavam fogo. O velho foi atingido de frente pelo impacto do ar. Seu corpo foi jogado ao chão. E enquanto o cachorro gania, a visão ficou turva e o mundo escureceu.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

O fim – As trombetas dos anjos (2 de 3)


A casa ficava em um ponto alto da cidade. Poucos vizinhos e muita vegetação. O velho hesitou antes de bater à porta da filha. Eles já não se viam há quinze anos. E não é como se antes disso a relação entre os dois fosse boa. Alberto abandonou a mulher pouco depois do casamento, quando Carla, a filha, ainda não tinha completado um ano. Arranjou outra mulher e caiu no mundo.

Durante a infância da menina, os dois se viam pelo menos uma vez por mês. Sem saber bem o que fazer com uma criança e sem qualquer intimidade com Carla, ele simplesmente a carregava para os lugares menos adequados. O favorito era o Jockey Club, onde ela ficava desenhando enquanto ele apostava nos cavalos.

Quando a garota já estava com cerca de vinte e cinco anos, ele recebeu uma ligação do antigo cunhado dizendo que a mãe de Carla havia morrido. Alberto correu para o cemitério e não saiu do lado da filha durante todo o dia. Foi o melhor pai possível, exatamente o que se esperava dele naquela situação. Quando se despediram, à noite, ele disse chorando que jamais deixaria a filha novamente, que sabia que era um pai ausente, mas que agora corrigiria isso. Foi a última vez que os dois se viram.

Quando Carla abriu a porta, depois da milésima vez que o pai bateu à porta, Alberto se espantou. Ela estava assustadoramente parecida com a mãe. A mulher estava de cara fechada, como se soubesse o tempo todo que era o pai quem batia e ainda assim estivesse evitando abrir a porta. Como se fosse um vendedor qualquer de tralhas, que se ignorado vai embora.

– O que você quer? – ela perguntou com a voz rouca. Não abriu a porta toda para deixar claro que Alberto não era bem-vindo. Mesmo assim, o velho se convidou para entrar. Carla fez que iria se opor, mas acabou cedendo.

A sala da casa era um pequeno resumo da vida de Carla. Os porta-retratos deixavam claro que ela não era casada e que não tinha filhos. Muitos bibelôs que pertenceram à mãe dela decoravam os muitos móveis que se espalhavam pelo cômodo. Na gaveta de cima da cômoda, longe dos olhos de Alberto, ela guardava todas as cartas que tinha recebido do pai, apenas pelo prazer de reler e aumentar o rancor que sentia pelo velho.

– O que você quer? – ela repetiu a pergunta, acreditando que enfim Alberto diria porque pegou um ônibus do Rio de Janeiro até Itatiaia com um cachorro como companhia.

– Você deve ter ouvido no rádio. O mundo está acabando. Temos menos de três dias até que tudo acabe. Já dá para ouvir as trombetas dos anjos. Achei que valia a pena passar este pouco tempo com você.

– Por que você achou que seria boa ideia arruinar as últimas horas da minha vida? Por que vir me atormentar? Eu sei que você se julga religioso. Se você acha que se reconciliar comigo será um passaporte para o paraíso pode tratar de fazer uma malinha com roupas de verão, porque você vai direto para o inferno.

A ausência do pai realmente foi um grande trauma para Carla. Abandonada nos primeiros meses de vida, ela sempre se sentiu rejeitada. Passou a vida com grandes dificuldades de se relacionar com outras pessoas. Um medo constante de ser abandonada novamente. Teve poucos namorados e se casou tarde, já com trinta e cinco anos, mas viu seu casamento desabar quando se recusou a ter filhos. Temia que o marido a abandonasse e que seus filhos passassem por tudo o que ela tinha sofrido. Além disso, a memória da mãe deprimida sempre alimentava seu ressentimento.

O velho queria jogar conversa fora, para de pouco em pouco se reaproximar da filha. Ele, contudo, não sabia a profissão dela, seus talentos ou informações de sua vida pessoal. Então ficou ali, pensando em uma boa maneira de pedir desculpa por tudo o que tinha feito. Ou não feito.

A filha, para evitar qualquer conversa, levantou-se sob o pretexto de fazer café e ligou o rádio. Quem sabe, com o pai distraído com alguma coisa, o tempo passasse mais rápido e o meteoro caísse logo na Terra. Como ela queria que o meteoro chegasse logo...

As estações de rádio e os canais de televisão praticamente tinham encerrado sua programação habitual. As equipes de jornalismos trabalhavam praticamente o tempo todo para levar alguma novidade. Conversavam com autoridades e especialistas, alguém que pudesse dar mais luz sobre a catástrofe que estava por vir. Um desses homens estava no ar no momento. Um professor qualquer de uma universidade qualquer.

“A verdade é que não podemos determinar se a chegada do meteoro realmente vai marcar o fim do mundo”, dizia o professor ao repórter. “Se considerarmos que é um meteoro semelhante ao que dizimou os dinossauros, ele não fará o planeta explodir. Ele apenas mudaria algumas condições atmosféricas, dificultando a perpetuação da vida de algumas espécies, mas não todas. Temos que ter esperança e acreditar que a raça humana vai seguir adiante. Minha recomendação é que as pessoas evitem regiões costeiras e se abriguem em áreas mais altas. Supondo que o meteoro caia no oceano, é provável que um grande tsunami seja formado. As demais consequências, só o tempo nos dirá, mas garanto que o mundo continuará inteiro daqui a três dias.”

Uma excitação tomou conta de Alberto. Ele saltou da poltrona para procurar a filha, com Hugo logo atrás dele. Carla tinha ouvido o professor falando no rádio, mas não deu muita atenção. O velho parecia um novo homem, tomado de profunda esperança.

– É isso, filha. Não vamos morrer. Estamos em uma das cidades mais altas do estado, distantes da costa. Se você tiver comida suficiente armazenada, podemos ficar aqui por um bom tempo. Teremos tempo de nos conhecer melhor e eu poderei ser o pai que você merece. Eu estou aqui para te proteger, Carla.

A filha confirmou que tinha um pequeno estoque de comida, algo que pudesse alimentar os dois por algumas semanas, mesmo se ficassem sem gás e sem energia elétrica. Talvez fosse o suficiente até que todos pudessem retomar suas rotinas.

No dia seguinte, eles realmente estavam mais próximos. Carla tinha aberto o coração em relação às frustrações que tinha e Alberto tinha tentado justificar parte de suas ações. Não estavam bem, mas estavam caminhando. Se o mundo realmente não acabasse, tudo indicava que eles poderiam ser uma família feliz.

O único que estava impaciente era Hugo. O cachorro gostava da casa, bem maior do que o apartamento do velho na Tijuca, mas parecia que Alberto simplesmente havia esquecido que o animal precisava passear para se aliviar. Para chamar a atenção do dono, Hugo pegou a coleira com a boca e levou para o colo de Alberto. O velho captou imediatamente a mensagem.

Com o cachorro saltitante, como sempre que vestia a coleira, Alberto abriu a porta para levar Hugo para um passeio em volta da casa. Do lado de fora, porém, cinco pessoas esperavam que alguém aparecesse.

– Senhor, eu só vou dizer uma vez – o homem tinha um tom ameaçador. A espingarda em sua mão ajudava a agravar este tom. Além dele, havia outro homem, um pouco mais novo, uma mulher e dois adolescentes. – Eu e minha família viemos de muito longe procurando um lugar para nos escondermos. Não queremos ficar nas ruas para morrer. Queremos uma casa bonita como essa em um lugar alto como esse. Por isso, o senhor vai voltar para dentro de casa e chamar qualquer pessoa que more com você – o homem apontou a espingarda para o rosto de Alberto. – Vocês vão embora daqui ou eu vou enterrá-los no quintal.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

O fim – O profeta do apocalipse (1 de 3)



Sábado era dia de feira na rua de Alberto. E, como em todos os dias da semana, ele já estava acordado quando o sol nasceu. Velho tem dessas coisas. Aos setenta e um anos, ele vivia em um apartamento de dois cômodos na Tijuca. A única companhia constante era Hugo, um vira-latas que adotara há alguns meses. Era fedorento e mal educado, mas pelo menos ouvia o que o velho tinha a dizer.

– Vá pegar sua coleira, Hugo. Quero passar na feira para comprar algumas frutas. Se você se comportar, podemos até dividir um pastel de queijo – o cão ignorou a ordem de Alberto.

O velho tinha uma rotina rígida. Velho tem dessas coisas, você sabe. Acordava antes das seis da manhã e fazia suas orações enquanto limpava a sujeira do cachorro. Às sete, escutava o Show do Genésio, seu programa de rádio favorito, que ia até as nove horas. Ele, então, começava a preparar o almoço, que era servido às onze da manhã. Depois da sobremesa, sempre uma laranja lima, ele tirava uma soneca. Acordava às três da tarde, quando lia um pouco a bíblia e fazia mais algumas orações. Em seguida, ia para uma pracinha próxima, onde fazia alguns exercícios e passeava com Hugo. Quando anoitecia, ele voltava para casa, comia um sanduíche e assistia às novelas e telejornais. Às dez da noite ia dormir, nunca sem antes tirar o telefone do gancho para ligar para a filha, perder a coragem e colocar o telefone de volta no gancho.

Quando o relógio da cozinha avisou que já eram sete horas, Alberto ainda procurava a coleira do cachorro. Hugo tinha mania de esconder a coleira nos lugares mais complicados. Como estava na hora de seu programa, o velho adiou a ida à feira e ligou o rádio.

“Bom dia, meu amigo, minha amiga. Aqui é o companheiro de todas as manhãs, Genésio Costa”, no fundo, uma musiquinha repetia o nome do comunicador. “Hoje é sábado, dia de jogo do Mengão, dia de lavar o carro, dia de levar a patroa para jantar fora. Hoje é dia de quê?”, outra música dizia que era dia de alegria. “É isso aí, minha gente. Sabadão é dia de alegria. Para começar esse dia com alto astral, vamos ouvir uma música dele, o rei Roberto Carlos.”

A música começou. O Show do Genésio sempre começava com uma música do Roberto Carlos. E Alberto sentia que se seu dia não começasse com o Show do Genésio e uma música de Roberto Carlos, não seria um dia de alegria. Velho tem dessas coisas. Naquele sábado, porém, a música foi interrompida antes do refrão. Quem falava não era mais Genésio Costa, mas um dos membros da equipe de jornalistas da rádio.
“Bom dia, ouvintes do Show do Genésio. Lamentamos por interromper a transmissão do programa, mas estamos acompanhando ao vivo um pronunciamento da Casa Branca, sede do governo dos Estados Unidos. Vamos para lá agora com o repórter Júlio César Araújo. Júlio?”

Alberto sentou para ouvir a notícia. Ele acompanhava o Show do Genésio há mais de quinze anos e ele jamais havia sido interrompido. Com certeza era alguma coisa importante. “O presidente dos Estados Unidos acabou de concluir seu pronunciamento”, dizia o repórter. “Segundo ele, a Nasa, a Agência Espacial Norte-Americana, detectou a proximidade de um meteoro. O corpo celeste está se aproximando a uma velocidade de quinze quilômetros por segundo e deve atingir a Terra em cerca de três dias. Os cientistas preferiram não especular, mas disseram que o meteoro é semelhante ao que matou os dinossauros, há milhões de anos. Especialistas ainda estão calculando o ponto de impacto, mas já se sabe que será em algum lugar do Hemisfério Sul, provavelmente perto do leste da América do Sul.”

A transmissão do pronunciamento acabou e a rádio reiniciou a música de Roberto Carlos que havia sido interrompida, como se nada tivesse acontecido. Alberto ficou ali, sentado, olhando para Hugo, que nesta hora mastigava a coleira a seus pés. O profeta do apocalipse acabara de avisar sobre o fim do mundo. Apesar de velho, Alberto ainda pretendia fazer muitas coisas. Queria terminar de ler alguns livros que se acumulavam em sua estante, queria ser o síndico do prédio e poder botar ordem em toda a bagunça dos vizinhos, queria chamar uma viúva que ele via todo dia na pracinha para ir ao cinema, queria ver o cachorro crescer. Mas, principalmente, queria reencontrar a filha.

Tão rápido quanto seu corpo permitia, o velho correu para o telefone. Discou o número da filha, mas a companhia telefônica tocou uma mensagem dizendo que aquele número havia mudado. Mas não deu o número novo.

Alberto colocou a coleira em Hugo, fechou a janela, colocou uma muda de roupa na mochila, pegou o dinheiro que tinha escondido embaixo da televisão, fez uma última oração em gente à imagem de Nossa Senhora Aparecida e partiu.

As ruas estavam cheias. Alguns pareciam assustados com a notícia, outros debochavam das previsões. O velho foi para a rodoviária e comprou uma passagem para Itatiaia, no interior do Rio de Janeiro, onde a filha morava. A passagem estava três vezes mais cara do que o preço de costume, mas em três dias o dinheiro não serviria para mais nada mesmo. Alberto pagou sem reclamar.

Em uma caixa velha, que estava jogada em um canto qualquer da rodoviária, o velho escondeu o cachorro, para que ninguém reclamasse da presença dele no ônibus. Bastava torcer para que Hugo não decidisse latir durante a viagem.

Agarrado a sua bíblia, Adalberto rezou durante todo o trajeto. Rezou para que a filha estivesse bem, para que a filha estivesse em casa, para que a filha o recebesse bem e para que o mundo não acabasse. E rezava para que a filha cuidasse do cachorro quando ele morresse. Ele pensava muito no bem estar do cachorro. Velho tem dessas coisas.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

A rua paralela – Tinteiro e páginas em branco (5 de 5)



O jornalista ficou petrificado com a cena. Um adolescente ensanguentado após devorar o coração de um homem no prédio em frente. E, em sua mão, um objeto que poderia torná-lo o ser mais poderoso da Rua do Meio – um simples bastão de giz. O assassino encarava o repórter como se dissesse que se ele não saísse do caminho seria a próxima vítima. Mário, porém, tinha uma dívida com o falecido livreiro e não podia desistir.

Ele teria ficado horas ali, olhando pela janela ao lado do leitor, mas um puxão da engenheira o trouxe de volta à realidade. Os dois correram para fora do prédio a fim de interceptar o abaporu antes que ele fugisse. Ou pior, antes que ele conseguisse tirar do papel da teoria dos caminhos alternativos.
Quando os dois chegaram ao saguão do prédio, o assassino, muito mais veloz, já estava entrando em um carro e seguindo em alta velocidade pela Rua Paralela. Sem pensar, a engenheira parou um veículo que passava em sua frente, rendeu o motorista e roubou o carro. Na direção, ela rasgou o asfalto atrás do abaporu.

Foram vinte minutos de perseguição, onde o adolescente abria vantagem a cada momento. Com o rua reta e interminável, era muito provável que o jornalista e sua parceira perdessem o assassino de vista. “Isso está ridículo. Já passamos três vezes por esse shopping center!”, gritou Mário, tentando ser ouvido sobre o barulho do motor.

Subitamente, a engenheira pisou fundo no pedal do freio, fazendo com que o jornalista batesse a cabeça no painel do carro. “Você ficou louca?”, disse ele. A mulher virou o veículo na direção oposta e acelerou. Como a Rua Paralela recomeçava sempre em seu final, em poucos segundos eles ficaram frente a frente com o carro do abaporu, claramente surpreso. “Coloca o cinto!”, ordenou a engenheira ao repórter, sendo atendida na hora. Os dois carros se chocaram e o assassino foi projetado através do para-brisa, caindo no asfalto.

Ainda tonto pelo choque contra o painel e pela batida posterior, Mário se viu obrigado a sair do carro pela janela para conter o assassino. Ele não tinha um plano, não sabia como lidar com a criatura, mas talvez se o adolescente estivesse desacordado fosse fácil dominá-lo.

Não foi. O assassino se levantou e saltou contra o repórter, mas ainda em sua forma humana. Não era tão forte ou tão ágil, o que permitiu que Mário escapasse, carregando a engenheira com ele. “Eu não sei se somos capazes de lidar com essa criatura, mas acho que podemos, pelo menos, impedir que o plano dele vá adiante. Volte para a Rua do Meio, fique no bar. Junto com o bartender e o bêbado, pense em um jeito de impedir a passagem dele”, pediu o jornalista. Deu um beijo na testa da mulher e se despediu.

Com um pedaço do cano de descarga que havia se desprendido de um dos carros, Mário golpeou o assassino, fazendo-o cair. O giz correu de um dos bolsos do adolescente até os pés do repórter, que sem pensar duas vezes pisou no bastão, fazendo uma grande marca branca no chão. O abaporu ficou descontrolado, já em sua forma de criatura. Estava pronto para matar o jornalista quando viu que um pequeno pedaço do giz ainda estava inteiro. Pegou o objeto e correu para dentro de um prédio em construção.

O jornalista seguiu o assassino. Encontrou a criatura desenhando uma porta em uma parede e dizendo algumas palavras que Mário não conseguiu ouvir. As linhas feitas com giz se iluminaram e foi possível ver uma outra rua por onde antes só se viam tijolos e cimento. O assassino atravessou o caminho alternativo, com o repórter logo atrás.

Saíram em uma outra rua. Uma via de barro cercada de pinheiros dos dois lados. Nada além de um rasgo em uma floresta densa. Mais uma rua dentro da Rua do Meio. A ausência de qualquer construção, onde pudesse haver uma porta dos fundos, indicava que talvez aquele lugar estivesse sendo pisado pela primeira vez. A criatura parecia especialmente satisfeita com sua conquista. Comemorou derrubando duas árvores, quase atingindo o repórter com o tronco de uma delas. Mário tentava se manter escondido, contando que o abaporu não sabia que havia sido seguido. A criatura explorou a área e teve até tempo de caçar um pequeno coelho – um presente para celebrar seu êxito. Mas não demorou até que ele farejasse o repórter a poucos metros. Andou calmamente na direção de Mário, esperando que sua presa fugisse. Mas ele não fugiu. Mantinha na mão o cano de descarga para acertar o ser monstruoso e deformado.

Enquanto caminhava, o abaporu derrubou mais uma árvore e levantou muita poeira com os pés. Estava babando o sangue o coelho e sua língua agitada mostrava que ainda estava com fome. Com um salto, agarrou-se a um pinheiro e mergulhou para destroçar o jornalista. Mário fechou os olhos, retraído de medo. Mas a criatura não chegou. No lugar de seu rosnado, ele só ouviu tiros. Tiros de armas voadoras. Doze pistolas apontadas na direção do abaporu. Os ignorados, a força policial do xerife, vingando o assassinato de seu líder.

O abaporu contorceu-se no chão. Aos poucos, voltou à forma do adolescente. Por impulso, Mário se aproximou, como se fosse possível, ou valesse a pena, salvar o jovem. “Ele está vindo”, sussurrou o assassino. “O primeiro está vindo e não há nada que você possa fazer”. Com a última palavra, escapou também o último fôlego. O adolescente estava morto.

Mário demorou ainda uma semana para voltar à Rua do Meio, à sua Rua do Meio, o cento de todas aquelas ruas paralelas. Neste período ele conseguiu reunir todos os livros que estavam em posse do xerife e do abaporu. Ficou hospedado na casa do leitor, que se tornou um grande amigo. O jornalista comprometeu-se ainda a encontrar um substituto para o xerife, alguém que pudesse tratar os ignorados como eles realmente mereciam.

Na Rua do Meio, parecia que o tempo tinha corrido mais rápido. O bar estava totalmente restaurado, algumas casas já estavam de pé e uma nova livraria esperava apenas o retorno do repórter – tudo fruto do bom trabalho e do esforço da engenheira.

Na livraria, Mário organizou todas as obras e colocou preço em tudo, cumprindo assim a promessa feita ao leitor de que finalmente toda a informação estaria ao livre acesso dos habitantes da Rua do Meio. Atrás do caixa, ele pendurou uma foto de seu velho amigo, como se ele estivesse sempre vigiando a livraria.

“Gostou do meu presente para você, jornalista?”, brincou a engenheira. Ele sorriu. “Não. Quer dizer sim”, complicou-se o repórter. Para relaxar, puxou um cigarro do maço de Yellows, comprado na recentemente reinaugurada banca de jornais. “Gostei muito, mas não sou mais o jornalista. Esse lugar não precisa de um jornal. Precisa de alguém que cuide de todas essas obras, de todo esse conhecimento. Se você era a enfermeira e virou a engenheira, acho que posso abandonar a identidade de jornalista para virar o livreiro. Ou simplesmente Mário, se você preferir.”

Na quartinho dos fundos, onde agora morava, o novo livreiro gastava boa parte do seu tempo debruçado sobre uma escrivaninha. Lá, com uma pena, tinteiro e páginas em branco, ele escrevia mais um capítulo da história da Rua do Meio. Tudo iluminado pela claridade que saía de um dos tantos caminhos alternativos que tinham sido abertos recentemente.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

A rua paralela – Aquele que devora (4 de 5)


Os ignorados limpavam o sangue do xerife do chão da delegacia. Era possível ver os panos de chão deslizando de um lado para o outro. A engenheira checava uma lista de livros anotada pelo xerife, tentando determinar qual obra havia sido levada pelo assassino. Já o jornalista, rabiscava em sua caderneta detalhes da criatura que havia decapitado o homem que até poucas horas atrás era o principal suspeito da morte do livreiro.

“A criatura possui corpo disforme, com braços e pernas muito longos e tronco estreito”, relatava o repórter. “Parece exageradamente forte e comprovadamente veloz, tendo arrancado a cabeça de um homem com os próprios dentes em questão de segundos. Dadas as características físicas e a natureza antropofágica do ser, batizo-o em referência a uma obra da pintora brasileira Tarsila do Amaral como abaporu, aquele que devora.” Mário concluiu a página com um esboço da criatura.

Algum tempo depois, tendo checado diversas vezes toda a lista de livros, a engenheira finalmente procurou o repórter para relatar sua descoberta. “Caminhos alternativos” era o nome da obra desaparecida. Talvez aquela informação ajudasse o xerife de alguma maneira, mas o nome não dizia nada ao jornalista. “Se há uma coisa que eu aprendi durante tantos anos na redação de um jornal é que o repórter não precisa saber de nada. Ele só precisa encontrar alguém que saiba”, disse para a engenheira e para os ignorados que estavam ao seu redor.

Com uma lista telefônica da Rua do Meio em mãos, ele folheou em busca de alguém que pudesse auxiliá-lo. Não havia um bibliotecário, já que não havia bibliotecas. Todos os livros sempre estiveram concentrados na livraria. O jornalista encontrou um professor, um mestre e um doutor, mas não queria perder tempo procurando cada um para checar suas áreas de especialidade. Quando já estava quase desistindo, a engenheira encontrou um nome que certamente poderia dar um norte àquela apuração: “o leitor”.

Depois de gastarem alguns minutos tentando desvendar o endereço – Rua Paralela, lado dos que acordam cedo, prédio ora verde, ora vermelho, ora azul, acima dos vizinhos – Mário e a engenheira partiram. O “lado dos que acordam cedo” se referia ao lado oposto da delegacia, onde o sol invadia as casas logo pela manhã. O “prédio ora verde, ora vermelho, ora azul” era um edifício espelhado em frente a um restaurante com um letreiro que piscava nestas cores. E “acima dos vizinhos” fazia menção ao apartamento da cobertura. De pé, na calçada, foi fácil determinar onde o leitor morava.

Quando os dois se identificaram como amigos do livreiro, o leitor prontamente autorizou a entrada. Ele vivia em um apartamento muito amplo, com muitas fichas repletas de anotações. Não devia ser muito fácil ser um leitor em um lugar onde os livros estavam concentrados na mão de um único homem. “Acredito que vocês não tenham vindo cobrar as obras que o livreiro me emprestou na minha última visita à Rua do Meio”, o homem tinha um ar esnobe.

Mário negou. E afirmou que eles sequer sabiam sobre a existência destes livros, embora estivessem satisfeitos que parte da coleção do livreiro estivesse em boas mãos. A engenheira explicou o que queriam. “Claro, a lista. O xerife já havia me procurado em busca de ajuda, mas não sei se eu poderia ajudar em algo”, o leitor procurava seus óculos em uma gaveta cheia de pares.

“Na verdade, senhor, houve um incidente”, Mário explicou. “O xerife está morto e um dos livros que estava com ele foi roubado. Não sabemos o conteúdo do livro e tínhamos esperança de que você já o tivesse lido.”
Ao ouvir que a obra era “Caminhos alternativos”, o leitor coçou o cavanhaque e se sentou em uma poltrona que parecia confortável e velha. “Eu já li de tudo. Me lembro de uma época em que tínhamos um grupo, chamado de Clube do Livro. Nome bobo, eu sei. Leitor, escritor e livreiro, um alimentando o trabalho do outro. Infelizmente o escritor morreu e o livreiro assumiu essa função. Não que eu não gostasse do trabalho dele, mas o livreiro sempre foi muito ciumento com seu trabalho e não deixava que os exemplares circulassem livremente pela Rua do Meio. Eu entendo que para ele aquilo tudo era importante, um compêndio da história, da lei e das ciências da Rua do Meio. Mas para mim eram só livros, só material para a minha necessidade de continuar lendo. Acabamos brigando, mas eu li todos os livros dele. Hoje, gasto meu tempo fazendo anotações para ler depois. Mas eu não sou escritor, não tenho esse talento. Estou frustrado.”

O leitor prometeu ajudar, com uma condição: quando todos os livros fossem recuperados o jornalista e a engenheira reergueriam a livraria ou construiriam uma biblioteca para que todo o conhecimento da Rua do Meio ficasse à disposição de sua população. Os dois concordaram. “Desta forma, direi tudo o que sei. Vocês obviamente já perceberam que tudo é muito estranho na Rua do Meio. E só é possível atravessar entre as ruas paralelas por meio das portas dos fundos. O livreiro nunca acreditou neste tipo de limitação. Junto com o curioso, que também já nos deixou, ele investigou as passagens de uma rua para a outra. E para o mundo-além-da-esquina também. Os tais caminhos alternativos. Ele defendia que havia uma maneira para entrar e sair da Rua do Meio e que isto não estava limitado aos turistas, como você e ele. Mas ele logo descobriu alguma outra coisa e partiu para um novo livro. E ninguém nunca tentou colocar os conceitos dele em prática. O livro, em si, está inacabado.”

O leitor começou a divagar e o jornalista saiu da sala. Foi até uma escrivaninha, onde escreveu algumas linhas em sua caderneta. Em seguida, voltou com uma teoria para que o leitor e a engenheira avaliassem. “Alguém quer controlar o transito das pessoas pela Rua do Meio. Alguém foi até lá e destruiu todos os imóveis, com suas portas dos fundos, limitando o acesso às esquinas. O xerife tentou recuperar os livros, mas o assassino, vamos chamá-lo assim, sabia que um dos livros continha a fórmula para entrar e sair. Sem o livro em mãos, ele deixou o bar de pé, para garantir que ainda houvesse uma porta. Se as teorias do livreiro não forem só teorias, o assassino poderá destruir o bar, sendo o único com meios para permitir que as pessoas transitem. Ele pode destruir todas as portas dos fundos, de todas as ruas, tendo assim mais poder que o presidente Ramirez.”

A engenheira concordou com a cabeça e o leitor gesticulou um aplauso sem som. “Precisamos de alguma pista para achar o assassino”, Mário falou para seu anfitrião. “Você sabe de algum elemento que seja necessário para fazer um caminho alternativo que possa nos dar uma pista. Algo fora do comum na Rua do Meio?”

O leitor pensou um pouco e abriu um sorriso animado. “Se eu bem me lembro, e eu tenho memória quase fotográfica, para fazer um caminho alternativo é preciso desenhar uma porta na parede. O livreiro foi bem claro na necessidade de um bastão de giz para fazer um desenho. Mas nós não temos giz na Rua do Meio. Talvez por isso a teoria nunca foi posta em prática. A única pessoa que eu consigo imaginar que possa ter um bastão de giz é um turista como você. Um homem muito rico que atende pelo nome de contrabandista. E, por sorte, ele mora no prédio em frente”, disse o homem, apontando para um dos apartamentos.

Assustado, o jornalista se aproximou com calma da janela. No prédio em frente, o contrabandista tinha uma visita. A criatura que Mário batizou como abaporu. O ser saltou sobre o contrabandista, destroçou sua caixa torácica com os dentes e devorou seu coração. Depois, arrancou a porta do cofre da parede e achou um bastão de giz. Ao perceber que estava sendo observado, o abaporu se aproximou da janela. Aos poucos, seu corpo se transmutou, até se tornar o de um jovem, de cerca de dezesseis anos, aparentemente pacato e sereno. Enquanto lambia os lábios ensanguentados, o assassino acenou para o repórter, com o giz na mão.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

A rua paralela – O suspeito e a lei (3 de 5)


A Rua Paralela, como os moradores da Rua do Meio a chamavam, mesmo sendo parte da Rua do Meio, era bem vasta. Enquanto a Rua do Meio tinha uma arquitetura que mesclava o moderno com o clássico, a Rua Paralela era extremamente moderna, com prédios muito altos, diversos letreiros e carros correndo a toda velocidade pela pista. O jornalista mal conseguia supor quantas pessoas viviam ali.

Mário e a engenheira seguiam o homem de cabelos compridos negros a uma certa distância. Com os livros debaixo do braço, ele era o principal suspeito da morte do livreiro, roubo de sua obra e destruição da Rua do Meio. Sem qualquer esquina e com prédios imensos, a rua era um interminável fiorde de concreto e neon.

Eles não entendiam bem o motivo, mas o suspeito já havia atravessado toda a rua, chegando novamente a seu começo. E não parava de andar. Lá estava o banco outra vez. De novo passando pela porta da loja de departamento. E mais uma vez a sede da empresa de água e energia da Rua do Meio. Talvez o homem soubesse que estava sendo seguido. Ou quem sabe ele estivesse procurando alguma coisa.

“Isso é divertido, sabe?”, a engenheira ria. “Melhor do que cuidar de doentes ou reconstruir casas. Sua rotina é sempre assim?” O jornalista negou com a cabeça. Em geral, seus dias eram pacatos. Exceto quando estava envolvido com o caso de Tábata. Nesta época, ele sentia como se estivesse ficando louco.

Em determinado ponto da rua, havia uma barraquinha de cachorro quente, onde o homem parou para comer. Apoiou os livros sobre o vidro do balcão e comeu com calma, tomando uma lata de refrigerante. Cold Cola, mais uma dessas marcas que só existem na Rua do Meio. Mário achou a cena curiosa. O sujeito sombrio tomando uma bebida sem álcool. Definitivamente fora dos estereótipos.

O jornalista queria se aproximar e ouvir sobre o que o homem falava com o vendedor de sanduíche, mas tinha medo de ser reconhecido. Não sabia se o suspeito se lembrava dele naquela tarde na livraria do falecido velho. Manteve a distância, um pouco escondido atrás da engenheira.

O homem de cabelos compridos finalmente terminou de comer. Pagou, acenou para o vendedor e foi embora, deixando para trás os livros sobre o balcão. Já estava a o que seria um quarteirão de distância quando Mário finalmente resolveu agir. Andou apressado até o barraquinha para pegar os exemplares. Talvez eles dessem alguma pista do que estava acontecendo, tivessem alguma anotação. Quando estava praticamente com as mãos nos livros, amarrados com uma corda antiga, o repórter quase caiu para trás. Eles simplesmente saíram voando, na direção do suspeito. “Os ignorados estão mesmo com ele”, sussurrou o jornalista.

Na porta de um prédio baixo, de três andares, um dos poucos da rua, o sujeito parou. Ficou olhando a fachada até que os livros voadores chegassem à sua mão. Em seguida, falou alguma coisa inaudível e entrou. Mário ordenou que a engenheira aguardasse do lado de fora enquanto ele interpelava o homem, mas ela não obedeceu. Os dois subiram os poucos degraus da entrada do prédio e acharam o suspeito sentado atrás de uma grande escrivaninha, com os pés para cima.

Com cautela, o jornalista pegou um pedaço de pau que estava encostado em um canto e avançou. Pretendia deixar o homem desacordado, amarrá-lo e só depois interrogá-lo. Seu plano caiu por terra quando algumas armas voadoras foram apontadas em sua direção. Estava cercado por ignorados.

“O senhor se incomodaria de largar este pedaço de pau”, o cabeludo nem se dava ao trabalho de olhar para Mário e a engenheira. O jornalista obedeceu, fazendo com que as armas – e os ignorados – se afastassem. “Quem é você?”, a mulher deixou a pergunta escapar.

O suspeito se levantou e apontou duas cadeiras para que Mário e a engenheira se sentassem. “Ora, eu sou o xerife. Vocês não me conhecem?”, o homem mostrava uma insígnia enferrujada que guardava na parte de dentro da jaqueta. Os dois negaram. “O que querem?”

Mário apontou para os livros. “Queremos o que você e seus homens roubaram da livraria da Rua do Meio”, disse o jornalista. “Você não sabe do que está falando”, rebateu o xerife. “Eu estou salvando estes livros.”
O xerife puxou da gaveta um cachimbo e um pouco de fumo. Enquanto acendia, tentou colocar o repórter e a engenheira a par de suas ações. “Eu e o livreiro éramos amigos. Chegamos à Rua do Meio na mesma época. Não demorou muito até que eu virasse o xerife e ele me ajudava. Por ser um turista, e poder ir e vir quando bem quisesse, ele saía sempre que era preciso seguir alguma pista até o mundo-além-da-esquina. Além disso, juntos nós escrevemos a lei”, o xerife desamarrou a corda que unia os livros e pegou o mais grosso deles. “Essa é a lei, a constituição que rege a Rua do Meio. Foi isso que eu fui buscar lá na livraria naquela tarde antes de você partir. Sim, eu sei que você estava observando.”

O homem estendeu o braço com o livro na direção de Mário. O jornalista abriu o exemplar e comprovou que havia sido escrito pelos dois. Na folha de rosto “Livreiro e Xerife” assinavam a lei. “Mas você está com os ignorados. E eles roubaram a livraria quando a Rua do Meio foi destruída.”

“Ignorados...”, o xerife parecia se divertir com a palavra. “O livreiro me contou que você os batizou assim. E você está certo, eles são ignorados. Criaturas invisíveis e intangíveis, sem fala e sem nomes. Até pouco tempo eles eram ignorados mesmo. Viviam perdidos pelas ruas, roubando para comer e trocando coisas de lugar apenas para irritar as pessoas como nós. Mas eu os descobri. Eu dei para eles um trabalho e um propósito. Hoje eles são minha força policial. E não são mais ignorados por aí.”

“Além disso”, prosseguiu o xerife, “eles não roubaram nada. Quando um dos refugiados da Rua do Meio conseguiu atravessar uma das portas dos fundos, ele veio me avisar. Assim que pude, mandei os ignorados até lá para resgatar todos os livros. Um deles ainda achou o livreiro com vida, mas não conseguiu socorrê-lo.” O homem parecia legitimamente triste, como se realmente falasse de um amigo. “Eles trouxeram os livros para cá. A lei, o livro das criaturas, os manuais sobre a Rua do Meio. Está tudo aqui. Mas alguns ignorados foram pegos no caminho. Assassinados. Os livros que eles carregavam foram capturados. Estou tentando descobrir quais, para poder determinar o interesse do interceptador.”

Mário anotava boa parte do que o xerife falava. Costume de repórter. “E quem são esses assassinos?”, perguntou. O homem de cabelos compridos soltou uma larga nuvem de fumaça. “Criaturas não catalogadas. Seres novos na Rua do Meio”, disse o xerife.

“Uma criatura como aquela?”, questionou a engenheira, com olhos arregalados e dedo em riste. O ser deformado, de corpo irregular havia invadido a delegacia. Com enorme velocidade, a criatura derrubou o jornalista e a mulher. Foi embora carregando um dos livros que estava sobre a escrivaninha. E a cabeça do xerife.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

A rua paralela – O bêbado e a porta dos fundos (2 de 5)



Aquela pilha de vergalhões retorcidos e tijolos esfarelados em pouco lembrava a beleza clássica da livraria. No meio de todo aquele caos, Mário conseguiu identificar sua máquina de escrever, uma caderneta que o livreiro havia lhe dado e os óculos do velho, quebrados sobre a calçada. Com delicadeza, o jornalista pegos a armação, retirou os cacos de lente e guardou no bolso. Era a única lembrança de seu amigo.

“Nós estávamos no bar quando tudo aconteceu”, o bêbado tentava explicar tudo ao repórter. “Ouvimos os primeiros sons e tentamos correr para ver o que estava ocorrendo, mas algo estava impedindo que a porta abrisse. Pelas janelas, vimos quando as construções caíram. Todos morreram. Só quem estava no bar sobreviveu.”

Mário estimulou o bêbado a contar tudo o que lembrava. Apesar dos cinco anos que separavam a tragédia daquele dia, o homem tinha uma boa memória. “Não havia ninguém estranho na rua. Ninguém que não fosse da Rua do Meio, sabe? Apenas os mortos e os destroços. Era como se um terremoto tivesse atingido esta área sem fazer o chão tremer.”

O jornalista começou a revirar o entulho da livraria em busca de algo mais que remetesse ao velho, mas não achou nada. Nada mesmo. “Não há nenhum livro aqui”, Mário coçou a cabeça, pensativo. “Exceto pela minha caderneta, não há uma folha de papel aqui.”

Com a mão no ombro do repórter, o bêbado explicou. “Eles se foram. Quando tudo começou eles saíram voando daqui. Voando. Um a um, eles saíram da livraria e da rua do meio.”

Desde que chegou à Rua do Meio, um dos trabalhos que mais dava prazer a Mário era dar sequência ao esforço do livreiro de catalogar todas as criaturas do lugar. E neste período, alguns novos seres surgiram ou se tornaram mais populares. Uma dessas novas espécies Mário chamava de “os ignorados”.

“Como assim ignorados?”, o bêbado parecia confuso. Apesar da bebedeira, ele parecia especialmente lúcido e claro. “Os ignorados são seres que simplesmente participam de eventos, mas que nunca entram em seus registros”, contou o repórter. “Eu nunca consegui desenvolver mais do que isso a descrição, mas acho que são criaturas invisíveis ou que de alguma maneira não podem ser vistas. E livros voando para fora de uma livraria me parecem coisa que os ignorados fariam.”

O bêbado estava admirado com a teoria de Mário. Em quase cinco anos ele pensou muitas vezes naqueles livros voando, mas nunca supôs que criaturas invisíveis os estivessem carregando. Puxou uma frasqueira do bolso, um bom whiskey como não havia mais na Rua do Meio que ele guardava para ocasiões especiais e levantou para celebrar. “Um brinde ao... jornalista?” O sujeito arregalou os olhos. Mário estava desmaiado sobre os escombros da livraria.

Aos poucos, Mário recobrou a consciência. A visão ainda estava turva, mas ele podia perceber que estava na sala atrás do bar, onde ele havia conversado com a sombra antes de partir atrás de Tábata. Agora, com alguns colchonetes no chão, o lugar parecia um dormitório improvisado. Provavelmente, os sobreviventes estavam morando ali. Além do bêbado, que o carregara até o lugar, o jornalista estava cercado pelo bartender, pelo jornaleiro, pelo carteiro e por uma mulher que ele nunca vira.

“Esta é a engenheira. Costumava ser a enfermeira, mas desde que tudo desabou ela está nos ajudando a reconstruir a Rua do Meio”, o bêbado a apresentou. “Ela já ergueu uma casa no final da rua, para onde pretendemos nos mudar em breve.” A engenheira era bastante atraente. Pele morena e muitas curvas. O jornalista estava tão atordoado por causa dela quanto por causa do desmaio. “Foi ela quem te salvou. Você apagou na livraria.”

A mulher mostrou um dente grande e afiado que estava em sua mão. Parecia um dente de tubarão, bem serrilhado. “Você pisou nisso”, explicou a engenheira. “Havia alguma substância tóxica que te fez desmaiar. Conseguimos te despertar usando todo o remédio que tínhamos. Agora você tem uma dívida conosco”, ela piscou o olho esquerdo.

Mário pegou o dente e o examinou. Não se lembrava de ter visto algo semelhante na Rua do Meio. Guardou em um bolso para investigar com calma depois, mas sabia que sem as anotações do livreiro aquilo seria muito difícil.

O jornalista sabia que não adiantava ficar na Rua do Meio. As pessoas naquele bar não poderiam ajudá-lo muito e era realmente importante recuperar os livros. Livros são conhecimento e se alguém os havia roubado era porque queria que algo permanecesse no esquecimento. Mário só pensava no homem de cabelos longos que havia entrado na livraria pouco antes de sua identidade desaparecer. Era um sujeito misterioso e lidava com o livreiro com certa intimidade, apesar de nunca ter visitado o velho me mais de um ano.

Durante este ano em que Mário escreveu o Meio da Rua, o velho o ensinou bastante sobre aquele mundo em que ele estava mergulhando. Entre outras coisas, mostrou que existiam outras ruas, tão ricas e estranhas quanto a Rua do Meio. As demais, porém, não tinham qualquer ligação com o mundo exterior. Eram infindáveis ruas paralelas que não tinham esquinas. A única forma de acessá-las era por meio das portas dos fundos dos imóveis. E era assim que o jornalista iria iniciar sua busca.

Na porta dos fundos do bar, com sua caderneta na mão e o dente serrilhado no bolso, Mário se despediu do bêbado, do bartender e dos demais. Andou pela Rua Paralela, procurando o melhor caminho a seguir, sem saber muito bem como começar a investigar aquilo. Pensou em entrar em um bar para tomar uma cerveja e pedir dicas. Quem sabe conseguiria um maço de Yellows em algum lugar.

“Não entraria aí, se eu fosse você”, a voz era doce e sensual. O repórter não precisava se virar para saber que era a engenheira. “Você está procurando seres invisíveis. Por que eles não estariam aí dentro ouvindo sua conversa? Antes que você percebesse, estaria estruído, como toda a nossa rua.”

O jornalista concordou. Talvez se ele entrasse em contato com o presidente Ramirez, antes conhecido como presidente Lopes, alguma autoridade pudesse auxiliá-lo. O pensamento se dissipou no ar quando Mário foi lançado no chão por um esbarrão acidental. Um esbarrão de um homem alto, forte e de cabelos negros lisos e compridos. O último homem que o jornalista viu conversando com o livreiro. E ele tinha alguns livros debaixo do braço.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

A rua paralela – Além da esquina (1 de 5)

A rua paralela é a continuação do conto A rua do meio. É importante, antes de ler este, saber o que já aconteceu.

Parte 1 - Tábata e um maço de Yellows
Parte 2 - O livreiro e o livro
Parte 3 - A sombra e a ausência
Parte 4 - Lamúria
Parte 5 - Um chope e mais um maço de Yellows



Nos fundos da livraria, o jornalista imprimia a nova edição do Meio da Rua, o jornal da Rua do Meio. Era apenas uma página, afinal não acontecia tanta coisa assim naquele lugar. Na maioria das vezes, as notícias falavam sobre novos moradores e pessoas que estavam deixando a rua, mas não era raro encontrar assassinatos e desaparecimentos. Como o próprio repórter descobriu quando conheceu a Rua do Meio, isso era mais comum do que podia se imaginar.

Aquela era uma edição especial. A quadrigentésima edição. Há mais de um ano o jornalista morava na casa que pertencia a Tábata. À falsa Tábata, pelo menos. A rotina era simples. Acordava, ia à banca de jornais comprar seu maço de Yellows, passava a manhã na rua apurando as notícias, preparava o jornal à tarde, ajudava o livreiro com seus afazeres e, por fim, como recompensa, ia ao bar tomar um chope bem gelado. Era uma rotina bastante agradável para o jornalista.

Naquela tarde, quando entregou os exemplares para que o entregador distribuísse, o repórter foi perguntar ao livreiro como podia auxiliá-lo. “Nada demais, meu caro. Preciso apenas que alguém coloque estes livros nas prateleiras de cima”, disse o velho apontando para uma pilha de cerca de 30 obras. O livreiro era baixo e nunca conseguia deixar o lugar arrumado. Desde que o jornalista, chegou, porém, as pilhas espalhadas pelos corredores haviam diminuído e as estantes estavam ficando mais cheias.

Enquanto limpava os exemplares antes de colocá-los na estante, o repórter viu um homem alto, com cabelos longos negros e muito lisos entrar. Ele foi direto no velho. Não era possível ouvir sobre o que conversavam. Com um livro na mão, o cabeludo piscou para o livreiro e foi embora.

Quando acabou a tarefa designada, o jornalista percebeu que o livreiro tentava falar algo, mas as palavras não saíam. O velho coçava a cabeça e mexia a boca, mas não conseguia dizer nada. Os olhos arregalaram-se. O repórter chegou perto do ancião, para tentar entender o que acontecia. “O senhor está bem, livreiro?”, ele perguntou. O velho se sentou e com um lenço secou a testa. “O seu nome, meu jovem”, o livreiro parecia muito confuso. “Eu esqueci o seu nome.”

“Que bobagem”, o jornalista achou graça. “Deve ser a idade. Meu nome é... É...” O jovem ficou pálido. “Eu não me lembro do meu nome.” Aquilo era comum, as pessoas perdiam seus nomes na Rua do Meio. O próprio velho não fazia ideia de como havia sido batizado. Mas o jornalista não achou que aconteceria tão depressa. Pouco mais de um ano e – puf – o nome se fora.

Era preciso fazer algo. Se o jornalista era um turista, uma das criaturas da Rua do Meio que podia ir e vir quando bem quisesse, talvez fosse hora de explorar o mundo-além-da-esquina para buscar identidade. O repórter se despediu do velho e partiu.

Ao cruzar a esquina, ele não estava mais em Copacabana, como das últimas vezes. A rua desembocava na Avenida Rio Branco, bem perto do jornal onde o repórter trabalhava. Foi ali onde ele começou a recuperar sua identidade. Em frente ao grande prédio, ele deixou escapar: “Mário... Meu nome é Mário.” Tendo abandonado o emprego há mais de um ano, ele não ousou subir. Amparado por algumas moedas que ainda tinha no bolso, ele pegou um ônibus para o bairro onde vivia.

Na entrada de seu prédio, no Bairro Peixoto, o porteiro não o reconheceu. Perguntou o que ele queria ali, a quem estava indo visitar. O mesmo porteiro que tantas vezes jogou conversa fora sobre futebol com ele. O máximo que Mário conseguiu foi descobrir que seu apartamento estava alugado para um casal.

A alguns quarteirões dali, na Santa Clara, o jornalista foi procurar a ex-mulher e a filha. Ficou parado em frente ao prédio, pois sabia que já estava na hora de a menina voltar do colégio. Quando ela chegou, estava acompanhada do padrasto, um homem mais bonito, mais simpático e mais presente que ele. Os dois passaram pelo repórter, o olharam, mas não viram nada além de um estranho.

Tendo certeza de que no dia em que perdeu seu nome também deixou de viver no mundo-além-da-esquina, Mário preferiu voltar para sua pequena casa sem janelas e para seu pequeno periódico. Seguiu andando pela Barata Ribeiro, mas não achou a famosa esquina com a banca de jornais. Viu apenas uma pequena rua que lembrava um campo de guerra.

Como quem passa em frente a um acidente, os olhos de Mário foram capturados pela rua e quando ele se deu conta já estava nela. O asfalto estava quebrado e as construções totalmente destruídas. Ninguém andava pela rua e uma constante fumaça parecia brotar do solo. O jornalista sentiu que precisava comentar com alguém, mas quando olhou para trás viu que ninguém entrava na rua. Todos andavam como se aquela rua não existisse. Por mais que lhe doesse admitir, era a Rua do Meio.

Não havia sinal da livraria ou de sua casa. Sem hotel ou restaurante. Após avançar um pouco pela rua, o jornalista percebeu que o único imóvel de pé, apesar das muitas rachaduras era o bar. O bar onde tudo começou, onde ele conheceu Tábata e a sombra.

Mário entrou afobado no bar. Cerca de seis pessoas bebiam, como se nada tivesse acontecido. O bartender ainda estava ali, mas usava um tapa-olho e tinha parte do rosto paralisada. “O que aconteceu?”, o jornalista perguntou aflito ao homem. O bartender se limitou a pegar uma tulipa que não parecia estar limpa e encher de chope, como o repórter costumava tomar todas as noites.

“Não achava que você voltaria a dar as caras por aqui”, um sujeito bêbado resmungou. O jornalista perguntou quem era ele. “Ora, eu sou o bêbado. Toda cidade precisa de um, não é mesmo? Sei que nunca nos falamos, mas eu sempre te via aqui. Nós sentimos sua falta.”

O jornalista coçou a cabeça. “Como assim sentiram a minha falta? Não fiquei mais do que três horas fora daqui!” O bêbado riu. Mário não esperava ouvir o que o sujeito estava prestes a dizer: “Três horas? Você esteve fora por mais de cinco anos!”

sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Triunfo – Não morra de amores (5 de 5)



O sol já tinha nascido há três horas e Linda Grant ainda não atendera o telefone. O sargento Alex Drake já havia procurado pela parceira no apartamento dela, na delegacia e em um restaurante onde ela tomava café da manhã todos os dias. Nada. Não se sabia nada da detetive desde que ela e Drake trocaram olhares na noite anterior.

O policial decidiu refazer os passos da mulher por quem se apaixonara. Foi até o Single’s Pub e procurou por Gary, o gerente. Ele disse não se lembrar a que horas ela partiu, mas garantiu que muitos vão embora sem esperar pelo resultado das fichas. “Talvez ela tenha ido atrás de uma dessas pessoas assim que os encontros-relâmpago acabaram”, disse o homem de trejeitos afeminados. Drake sabia que era exatamente isso o que tinha acontecido e perguntou pelo homem louro, magro e alto com o corte na mão. “O nome dele é Paul”, comentou o gerente. “Isso é praticamente tudo o que eu sei. Sempre toma um drinque depois dos encontros e vai embora sem saber dos resultados. Ele devia ficar mais. Sou um gênio em unir pessoas, sabe? Sem muita dificuldade poderia dizer que você e sua parceira têm um futuro interessante à frente. E vocês nem preencheram as fichas”, Gary sorria maliciosamente.

Em um computador, Gary puxou o cadastro do suspeito. Havia nome completo, endereço e mais alguns detalhes pessoais. Drake tinha tanta certeza de que nada daquilo era verdade que nem se deu ao trabalho de investigar pessoalmente. Pelo telefone, pediu ajuda para o perito Ted. Em poucos minutos, recebeu a confirmação que o único com o nome era um garoto de sete anos e o endereço correspondia a um terreno baldio. O sargento então pediu para que o gerente imprimisse a foto do suspeito.

Em um banco de praça, acompanhado de um café, Drake tentou organizar os pensamentos. “Seria bom ser como o Major Triunfo e poder voar por toda a cidade até achar Linda”, o sargento disse para si mesmo. A única coisa que ele sabia sobre o assassino era sua assinatura: flechas de balestra. Alex julgou que este era um bom ponto para começar.

Com a foto na mão, ele foi a três lojas que vendiam artigos esportivos, entre eles arcos, flechas e balestras. Nos dois primeiros não deu sorte, mas no terceiro encontrou alguém que parecia conhecer o suspeito. “O nome dele é Andrew, acho”, disse o vendedor, que não tinha mais do que vinte anos. “Já faz um bom tempo que não o vejo, mas tenho certeza que ele esteve aqui algumas vezes. Procurava flechas, equipamentos de caça esportiva, coisas do tipo. Me lembro que ele comprou muitos alvos e cavaletes, coisa grande, e pediu para entregar na casa dele. Eu trabalhava nas entregas nessa época. A loja é do meu pai, então já fiz de tudo por aqui. Se eu não me engano, ele morava em uma cabana na beira do Blue Lake, perto dos centros gastronômicos.”

Aquilo fazia sentido. Estava diferente da descrição de Ted, mas era aceitável. Em uma região turística, são poucos os frequentadores constantes que conseguem reparar padrões de comportamento suspeitos. Além disso, o barulho constante dos restaurantes e bares poderia ocultar qualquer grito e o sangue jogado no lago se dissolveria rapidamente, sem chamar atenção.

Alex pediu ajuda ao comissário Fisk para invadir a cabana e resgatar Linda, mas como o caso do Cupido não estava oficialmente aberto não havia nada o que ele pudesse fazer. “Mande o cretino do Major Triunfo com a imprensa então!”, gritou o sargento antes de desligar na cara de seu superior. Sozinho, ele foi para o lago procurar a cabana.

Não foi difícil deduzir o local. Havia cerca de dez cabanas na região mais turística, mas a maioria tinha as portas e janelas abertas, deixando claro que ninguém era mantido cativo dentro. Um dos imóveis, porém, estava totalmente lacrado, sem qualquer luz escapando pelas frestas. Drake tinha certeza que aquele era o lugar.

Com um chute, foi fácil para o sargento arrombar a porta. O lugar não oferecia grande resistência para alguém que tentasse invadi-lo. No escuro e com arma em punho, Drake explorou a cabana em busca de alguma dica de onde Linda e o Cupido pudessem estar. Não achou muito. Mas notou que uma porta dos fundos estava entreaberta. Pelo vão, viu o homem louro, magro e alto do dia anterior mexendo no porta-malas de um carro parado na beira do lago. O policial precisava achar rapidamente a parceira.

Toda a cabana estava muito empoeirada. Provavelmente o assassino não morava ali, só usava o lugar para matar suas vítimas. Um detalhe despertou a atenção de Drake. Um tapete na sala não tinha qualquer sinal de poeira e parecia ter sido desenrolado há pouco tempo. Alex afastou o tapete e achou uma espécie de alçapão que dava para uma sala escura. A Nona Sinfonia de Beethoven tocava bem alto.

Quando desceu a frágil escada para o porão, viu Linda Grant iluminada por algumas velas. Seu coração tropeçou de repente. Ela estava desacordada, amordaçada, com os pés amarrados e as mãos presas em um gancho no teto. O sargento correu para libertá-la e começou soltando suas mãos. Linda despertou sobressaltada, achando que era o Cupido, mas se acalmou ao ver Alex. Seus olhos quase sorriam. Drake ficou feliz com a reação da mulher, mas logo se surpreendeu com os olhos arregalados dela.

Som de alguém descendo a escada. Drake se vira, apontando a arma, mas é surpreendido. Uma flecha voa em sua direção e fica cravada em seu ombro direito. A arma escapa de sua mão e seu corpo é projetado para trás. A cabeça de Alex se choca contra uma parede. A visão fica turva. Fica escura. Ele apaga.
As mãos livres eram tudo o que linda precisava desde o começo. Mesmo com os braços fracos e dormentes, ela consegue arrancar a mordaça e as cordas dos pés. O Cupido demora a atacar. Está tentando encaixar uma nova flecha na balestra. Grande erro. Uma das primeiras lições do Cavaleiro Prateado foi sobre armas. Nunca use nada que precise ser recarregado. Evite coisas que vão te deixar na mão. Espadas, punhais e os próprios punhos são os melhores instrumentos em uma batalha.

Quando a flecha finalmente está no lugar certo, Linda já está muito perto do assassino. O Cupido podia parecer ameaçador para uma pessoa comum. Mas ela foi a Garota-Lebre. Passou anos enfrentando gente como o Doutor Destruição e a Serpente Humana. O homem louro só conseguiu captura-la porque ela realmente não esperava que ele a abordasse de maneira tão rápida. Ficou atônita na saída do Single’s Pub, deixando espaço para que o assassino a derrubasse com um lenço molhado em clorofórmio. Ele não teria outra chance como aquela.

O Cupido atirou em Linda, mas ela conseguiu desviar. O golpeou duas vezes no peito e nas costas, até que um chute no pescoço o deixou desacordado, caindo sobre a vitrola. A cabana voltou a ficar silenciosa.
Drake acordou quando os paramédicos chegaram para cuidar de seus ferimentos. Encontrou Linda muito forte, bem diferente da mulher amarrada que estava naquela cabana quando ele entrou. O Cupido, que todos chamavam naquele momento de James Cobb, estava desmaiado e algemado no banco de trás de uma viatura. O comissário Fisk dava entrevista a uma jornalista, falando sobre o importante trabalho da polícia de Blue Lake City na captura de Cobb.

Na ambulância, o sargento se esforçava para permanecer consciente. A dor da flechada no ombro era muito grande, mas o pior era a pancada na cabeça. Com dois paramédicos na traseira, o veículo partiu. Mas logo parou. As portas de trás se abriram e a policial Grant entrou sorrindo. “Você ia me abandonar nessa festa?”, ela segurava a mão do parceiro. "Vamos tentar não morrer de amores um pelo outro, está bem?"

"Acho que já é tarde demais para isso", disse Drake. Com ela por perto, ele se permitiu dormir novamente.

Na manhã seguinte, Linda levou o Blue Lake Chronicle para o quarto de Alex no hospital. Deitados juntos na cama, eles folheavam as páginas. Havia apenas uma pequena nota sobre a captura do Cupido, na página doze, que não citava o nome de nenhum dos dois. Eles não se importavam. Na capa, uma foto do Major Triunfo enfrentando uma pantera verde gigante.

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Triunfo – A flecha do Cupido (4 de 5)


Gary era um homem bonito, com cabelo bem cortado, barba de fios finos e trejeitos femininos. Era o responsável por organizar os encontros-relâmpago do Single’s Pub e estava assustado com a morte de seus clientes. “Fiquem à vontade, falem com quem quiserem”, dizia o gerente do estabelecimento. “Só, por favor, não falem dos assassinatos. Não queremos assustar os clientes. Já perdemos muitos que eram assíduos.”

O Single’s Pub era um bar muito bem decorado. Durante o dia funcionava como um pub comum, mas no início da noite se transformava. Um grande círculo era feito com vinte mesas, que receberiam vinte casais. Cada casal tinha três minutos para se conhecer. Então, soava uma campainha indicando que os homens deveria ir para a mesa à sua direita. Ao final, todos preenchiam fichas dizendo quais pessoas mais tinham impressionado e porque. Enquanto os participantes tinham liberdade para continuar no bar, Gary analisava as fichas, tentando juntar os casais que tinham se entrosado mais. Fora ele que juntou Leo e Jenny na semana anterior e Mike e Ruth há poucos dias.

“O senhor já notou alguém estranho nesses encontros?”, Linda Grant perguntou. O homem sorriu. “Minha querida, são encontros-relâmpagos. Se essas pessoas não fossem estranhas, não precisariam estar aqui.”
Alex e Linda decidiram participar do encontro naquela noite. Talvez assim poderiam se aproximar do assassino sem levantar suspeita. Para passarem despercebidos, os dois foram vestidos como se realmente investissem no encontro. Quando a detetive chegou, no horário combinado, Drake ficou boquiaberto. A ex-ginasta tinha braços muito fortes, sem perder a feminilidade Ela usava um vestido exageradamente curto que ressaltava suas pernas e havia trocado os tradicionais óculos escuros por uma sombra escura. Se havia um assassino naquele bar, ele estaria de olho nela.

O sargento Drake estava apaixonado. Conhecia Linda há apenas um dia, mas não imaginava sua vida sem ela. Em alguns momentos do dia até se esquecia da morte de seu antigo parceiro. “Você está linda”, ele disse. Grant corou. “E você terá seus três minutos para me convencer de que é o cara certo, como todos os outros!”

Os policiais se posicionaram nas mesas de forma a só se encontrar no último momento. Assim, poderiam trocar suas impressões antes que o assassino pudesse deixar o bar. Alex Drake conversou com muitas mulheres. Algumas pareciam psicopatas, mas ele estava convencido de que só um homem seria capaz de subjugar duas pessoas ao mesmo tempo, carregar seus corpos e ainda elaborar uma cena amarrando-os. Ele deixava as mulheres falarem e aproveitava para observar os homens mais próximos. Um deles se destacou. Usava camisa de flanela, tinha cabelos crespos e o tamanho certo para derrubar uma pessoa com um simples golpe.

Neste mesmo tempo, de três em três minutos, Linda Grant conversava com os homens, usando sua experiência de tantos anos enfrentando os piores tipos de criminosos para traçar um perfil de cada um dos potenciais suspeitos. Em geral, os homens pareciam amedrontados e incapazes de fazer qualquer mal, mas ela sabia o quanto um assassino podia esconder sua verdadeira face.

Quando, enfim, chegaram os três minutos finais, duas horas depois de os encontros começarem, Alex e Linda ficaram cara a cara. “O sujeito de camisa xadrez é o meu suspeito. Ele é forte e tenho quase certeza que há uma corda na bolsa que ele carrega. O que acha?”, o sargento questionou. A detetive não concordava. “Prefiro ir atrás do número sete”, ela apontava para um homem magro, alto e louro. “Ele estava com um corte na palma da mão esquerda. Acho que pode ser por manusear flechas.”

“Aquele magrelo?”, a voz de Drake saiu mais alta do que ele esperava. “Certamente se cortou fazendo uma salada. Ele não teria força para matar um homem como Mike Porter. De qualquer forma, siga seus instintos. Quando acabar eu vou atrás do grandão e você segue o magrelo. Nos ligamos mais tarde, ok?”

A campainha tocou e Gary passou para recolher as fichas de todos. O grandão foi o primeiro a ir embora, sem esperar o resultado das combinações de Gary. Provavelmente já tinha escolhido seus alvos. De longe, Alex piscou para Linda e foi atrás do homem de camisa de flanela. Ela continuava no bar, de olho no magrelo com o corte na mão.

O suspeito morava longe. Pegou um ônibus que ia para um subúrbio da cidade. Drake, em seu carro, o seguiu. O grandão desceu em um ponto escuro, perto de um bosque. Um lugar perfeito, na opinião do sargento, para matar pessoas sem ser visto ou ouvido. Com o carro estacionado, o policial seguiu o sujeito a pé.

O homem de camisa de flanela acidentalmente derrubou a sacola que carregava e Drake pode dar uma boa olhada no conteúdo. Havia um bom pedaço de corda, de espessura semelhante à usada para unir os corpos das vítimas, além de um pedaço de meio metro de cano, que poderia ser usado para golpear alguém, e umas poucas ferramentas.

Drake estava determinado a ver onde o homem morava. Ele já tinha investigado dois ou três serial killers e sabia que casas com porões, sem vizinhos próximos e com garagens fechadas eram espaços perfeitos para matar. Se o cara tivesse ainda uma van ou caminhonete para transportar os corpos, estaria praticamente assinando a confissão de culpa.

Quando o homem finalmente chegou em casa, após caminhar por cerca de quinze minutos em uma estrada que cortava o bosque, o sargento ficou morbidamente satisfeito com o que viu. A casa era isolada por muros, o que dificultaria uma fuga do terreno, caso uma das vítimas conseguisse escapar. A iluminação era extremamente precária e, fora algumas corujas, não havia viva alma nas redondezas. Drake esperou o homem entrar e depois pulou o muro para ver a casa mais de perto.

Por uma das janelas, o policial reparou que o grandão tinha equipamentos de caça e uma cabeça de veado na parede, ou seja, ele sabia como matar um ser de grande porte e já havia feito isso antes. Não seria complicado para ele exterminar um empresário ou um vendedora de discos usados. Alex viu ainda o homem abrir a porta que dava acesso ao porão e descer com a sacola na mão.

O sargento deu a volta na casa, em busca de algum acesso externo ao subsolo. Se ouvisse algum grito ou barulho estranho, invadiria imediatamente. Em vez disso, ao chegar aos fundos, encontrou muitas cordas, que desciam do telhado da casa. Apoiados na parede, alguns canos e telhas. O sujeito estava fazendo uma reforma na casa, o que explicaria o conteúdo da sacola.

Alguns passos em uma escada de madeira indicaram que o cara de camisa de flanela estava voltando para o térreo. Pelas janelas da casa, Drake acompanhava a movimentação. Além dele, havia outra pessoa na casa. Uma adolescente de cerca de 16 anos. Ela não parecia amedrontada. O homem deu alguns dólares para ela, que se despediu e saiu da casa.

Era uma babá. Na mesa da cozinha, duas crianças tomavam sorvete. Tinham menos de dez anos, Alex não conseguia precisar. Sob a lareira, uma foto do grandão com uma mulher morena e uma urna. Provavelmente as cinzas da esposa. O sujeito era viúvo, se dividia entre o trabalho, a reforma da casa e a criação dos filhos. Ia ao Single’s Pub para tentar conhecer novas pessoas, mas sua saída antes que Gary computasse os resultados das fichas mostravam que ele ainda não estava preparado para um novo relacionamento. Aquele homem nunca seria o assassino.

O sargento Alex Drake pulou o muro de volta e seguiu na estrada até onde tinha estacionado o carro. Tentava ligar para o celular de Linda, mas ela não atendia. Provavelmente estava com o telefone no modo silencioso enquanto seguia o outro suspeito. O policial esperava que sua parceira tivesse mais sorte que ele.

Às margens do Blue Lake, alguns remadores amadores guardavam seus barcos após uma agitada noite de treino. Os bares que atraíam os turistas estavam com o movimento fraco, por conta do vento frio que soprava. Um adolescente passeava com seus cachorros enquanto fumava escondido dos pais.

Em uma cabana à beira do lago, a música alta impedia que Linda ouvisse seu telefone tocar. Era o Allegro da Primavera. As Quatro Estações de Vivaldi. A detetive gostava muito de música clássica, mas naquele momento ela mal conseguia prestar atenção no que estava tocando. Estava focada no homem alto e magro, com o corte na mão, que ela vira no encontro-relâmpago. Ele conferia se uma flecha estava afiada e a colocava em sua balestra. Linda queria correr dali, avisar seu parceiro, mas estava amarrada, amordaçada e na mira do Cupido.

terça-feira, 27 de novembro de 2012

Triunfo – Garota-Lebre (3 de 5)


Do centésimo andar do Kane Building, Linda Grant observava os carros passando pelas ruas de Blue Lake City. Se ela olhasse com atenção para o horizonte era possível até ver o grande lago que batizava a cidade. Ela se lembrava de sua juventude em Moonlight City, quando costumava ver a cidade do alto.

Quando Linda foi dispensada da equipe de ginástica olímpica, seu futuro parecia incerto. Em meio à adolescência e com pais frustrados pelo fim da vida esportiva, ela acabava ficando pela rua após as aulas. Se envolveu com as pessoas erradas. Muito erradas.

Numa noite, após beber demais e consumir algumas variedades de entorpecentes, Linda tentou voltar para casa. Desnorteada, ela acabou se perdendo na região mais perigosa da cidade. Dois homens surgiram de um beco e tentaram violentá-la. Ainda que estivesse bêbada e drogada, a ex-ginasta conseguiu derrubar os dois. Isso foi o suficiente para que sua vida mudasse.

Linda já estava sendo observada há algumas semanas. Dos telhados, o Cavaleiro Prateado, protetor de Moonlight City, analisava se deveria acolher a menina. Naquela noite, ele tomou a decisão. Afastou Linda das más influências e a treinou. Deu a ela um propósito. Ao lado do herói com a armadura e a espada, ela se tornou a Garota-Lebre.

Hoje, esses dias pareciam distantes, mas serviam para lembrá-la que o mundo era um lugar estranho. No escritório de Mike Porter, ela e seu parceiro, o sargento Alex Drake, acompanhavam enquanto o perito Ted tirava fotos do empresário amarrado a uma jovem. Ela de pernas abertas e ele no meio, simulando uma posição sexual. Não restava dúvidas que era o mesmo assassino do caso da semana anterior, eliminando a possibilidade improvável de crime passional seguido de suicídio.

“Como eu suspeitava, eles foram mortos por flechas”, disse Ted, alinhando a longa barba e prendendo o cabelo em um rabo de cavalo. “Mas não são flechas de um arco como Robin Hood. As lâminas são menores. Acredito que a arma do crime seja uma balestra. Os corpos estão totalmente sem sangue, o que deixa claro que eles não foram mortos aqui. Mas acho que os corpos foram amarrados nesta sala mesmo. Há algumas fibras de corda naquele tapete, mostrando que o assassino manuseou o material aqui. Para mim é só um assassino e ele carregou os corpos um de cada vez, mas isso cabe a vocês.”

Drake estava mais interessado em saber como poderia ser o assassino. A expectativa era capturá-lo antes de um novo crime. “Sargento, esta não é minha área de especialidade”, Ted comentou, “mas eu diria que é um homem frio e sério. Muito calmo, pela maneira como matou e amarrou os dois. E deve ser solteiro e sem filhos, já que ele gastou muito tempo fazendo isso.”

Linda já havia visto muitos assassinos na vida. O Cavaleiro Prateado a treinou bem para achar pistas onde parece não haver. Ele era um herói, mas não tinha poderes. Seu diferencial era o intelecto e a habilidade de combate, coisas que ele ensinou bem à sua parceira-mirim.

“Não acho que as vítimas foram escolhidas ao acaso”, a detetive afirmou. “Acho que se investigarmos bem podemos descobrir algo em comum, que nos leve ao assassino.” Drake concordou e mandou que ela se dedicasse a isso. Ele ainda investigaria a cena do crime um pouco mais.

Na delegacia, ela levantou todas as informações possíveis. Ao contrário do que dizia a imprensa, Leonard e Jennifer, as vítimas amarradas como um abraço, não eram namorados. Um tinha o telefone do outro na memória do celular, mas os registros mais antigos datavam de dois dias antes do assassinato. Leo era mecânico e Jenny trabalhava em uma loja de discos usados.

No assassinato mais recente, Mike era um empresário em ascensão e Ruth era bailarina clássica. Ela tinha um cartão de visita dele na bolsa e ele tinha o nome dela anotado na agenda. Se conheciam há pouquíssimos dias também.

Os quatro moravam em bairros diferentes, trabalhavam em áreas díspares e tinham condições de vida ímpares. Estava difícil achar uma ligação além dos assassinatos em si. Linda apelou para uma técnica que usara diversas vezes quando saltava pelos telhados de Moonlight City usando maiô branco, máscara e orelhas de lebre, mas que jamais adotara em sua vida como policial. Ligou anonimamente para a família de uma das vítimas.

Ela apostou em Ruth, pois provavelmente a família não sabia do assassinato ainda. Atendeu uma mulher. Lara, irmã da bailarina. Grant disse que queria falar com Ruth, mas do outro lado da linha informaram que ela não voltara para casa. “Estamos preocupados com ela”, Lara se controlava para não chorar. “Ela saiu de casa anteontem e não voltou. Não deu notícias. Ela foi para aquele bar e nunca mais soubemos dela.”

Quando Alex Drake voltou para a delegacia, a detetive estava empolgada. Ele não havia conseguido nada mais na cena do crime. Não havia sequer uma imagem do circuito interno do prédio que pudesse ajudar a descobrir quem era o assassino. O sistema era desligado toda noite, dando margem para que o criminoso montasse sua escultura humana durante a madrugada.

“Acho que tenho algo que possa nos ajudar”, disse Linda, sorrindo. “Eu sei que eu não deveria estar feliz, pois quatro pessoas morreram, mas eu acho que estamos perto de resolver isso. Não achei qualquer coisa que ligasse os quatro mortos além de um pequeno detalhe. Todos eles frequentavam o mesmo bar. Single’s Pub. Um bar que realiza encontros-relâmpago. Foi lá que os casais se conheceram, duas noites antes dos corpos serem encontrados. E tenho certeza que também foi lá que eles conheceram o assassino.”

“Um assassino que dá flechadas em casais que acabaram de se apaixonar”, o sargento Drake refletia em voz alta. “Acho que estamos prestes a enfrentar o próprio Cupido.” Os dois se divertiram com o apelido do criminoso.

Linda e Alex entraram pela madrugada analisando o caso. Tinham certa sintonia, ainda que no início daquele dia ele não tenha ficado muito satisfeito em ter um novo parceiro. Depois do trabalho, saíram para comer e beberam um pouco. Contaram um pouco de suas vidas, ouviram um pouco da vida do outro. Ele deu uma carona a ela até em casa. Acabaram se beijando acidentalmente, os lábios dela roçando nos lábios do parceiro. Riram nervosos. Ele perguntou se ela queria tomar mais uma bebida. Ela disse que não queria misturar trabalho com vida amorosa, mas acabou chamando-o para subir. E, de manhã, os dois foram juntos para o trabalho, com Alex usando as mesmas roupas do dia anterior.