Aquela pilha de vergalhões retorcidos e tijolos esfarelados
em pouco lembrava a beleza clássica da livraria. No meio de todo aquele caos,
Mário conseguiu identificar sua máquina de escrever, uma caderneta que o
livreiro havia lhe dado e os óculos do velho, quebrados sobre a calçada. Com
delicadeza, o jornalista pegos a armação, retirou os cacos de lente e guardou
no bolso. Era a única lembrança de seu amigo.
“Nós estávamos no bar quando tudo aconteceu”, o bêbado
tentava explicar tudo ao repórter. “Ouvimos os primeiros sons e tentamos correr
para ver o que estava ocorrendo, mas algo estava impedindo que a porta abrisse.
Pelas janelas, vimos quando as construções caíram. Todos morreram. Só quem
estava no bar sobreviveu.”
Mário estimulou o bêbado a contar tudo o que lembrava.
Apesar dos cinco anos que separavam a tragédia daquele dia, o homem tinha uma
boa memória. “Não havia ninguém estranho na rua. Ninguém que não fosse da Rua
do Meio, sabe? Apenas os mortos e os destroços. Era como se um terremoto
tivesse atingido esta área sem fazer o chão tremer.”
O jornalista começou a revirar o entulho da livraria em
busca de algo mais que remetesse ao velho, mas não achou nada. Nada mesmo. “Não
há nenhum livro aqui”, Mário coçou a cabeça, pensativo. “Exceto pela minha
caderneta, não há uma folha de papel aqui.”
Com a mão no ombro do repórter, o bêbado explicou. “Eles se
foram. Quando tudo começou eles saíram voando daqui. Voando. Um a um, eles
saíram da livraria e da rua do meio.”
Desde que chegou à Rua do Meio, um dos trabalhos que mais
dava prazer a Mário era dar sequência ao esforço do livreiro de catalogar todas
as criaturas do lugar. E neste período, alguns novos seres surgiram ou se
tornaram mais populares. Uma dessas novas espécies Mário chamava de “os
ignorados”.
“Como assim ignorados?”, o bêbado parecia confuso. Apesar da
bebedeira, ele parecia especialmente lúcido e claro. “Os ignorados são seres
que simplesmente participam de eventos, mas que nunca entram em seus registros”,
contou o repórter. “Eu nunca consegui desenvolver mais do que isso a descrição,
mas acho que são criaturas invisíveis ou que de alguma maneira não podem ser
vistas. E livros voando para fora de uma livraria me parecem coisa que os
ignorados fariam.”
O bêbado estava admirado com a teoria de Mário. Em quase
cinco anos ele pensou muitas vezes naqueles livros voando, mas nunca supôs que
criaturas invisíveis os estivessem carregando. Puxou uma frasqueira do bolso,
um bom whiskey como não havia mais na Rua do Meio que ele guardava para
ocasiões especiais e levantou para celebrar. “Um brinde ao... jornalista?” O
sujeito arregalou os olhos. Mário estava desmaiado sobre os escombros da
livraria.
Aos poucos, Mário recobrou a consciência. A visão ainda
estava turva, mas ele podia perceber que estava na sala atrás do bar, onde ele
havia conversado com a sombra antes de partir atrás de Tábata. Agora, com
alguns colchonetes no chão, o lugar parecia um dormitório improvisado. Provavelmente,
os sobreviventes estavam morando ali. Além do bêbado, que o carregara até o
lugar, o jornalista estava cercado pelo bartender, pelo jornaleiro, pelo
carteiro e por uma mulher que ele nunca vira.
“Esta é a engenheira. Costumava ser a enfermeira, mas desde
que tudo desabou ela está nos ajudando a reconstruir a Rua do Meio”, o bêbado a
apresentou. “Ela já ergueu uma casa no final da rua, para onde pretendemos nos
mudar em breve.” A engenheira era bastante atraente. Pele morena e muitas
curvas. O jornalista estava tão atordoado por causa dela quanto por causa do
desmaio. “Foi ela quem te salvou. Você apagou na livraria.”
A mulher mostrou um dente grande e afiado que estava em sua
mão. Parecia um dente de tubarão, bem serrilhado. “Você pisou nisso”, explicou
a engenheira. “Havia alguma substância tóxica que te fez desmaiar. Conseguimos
te despertar usando todo o remédio que tínhamos. Agora você tem uma dívida
conosco”, ela piscou o olho esquerdo.
Mário pegou o dente e o examinou. Não se lembrava de ter
visto algo semelhante na Rua do Meio. Guardou em um bolso para investigar com
calma depois, mas sabia que sem as anotações do livreiro aquilo seria muito
difícil.
O jornalista sabia que não adiantava ficar na Rua do Meio.
As pessoas naquele bar não poderiam ajudá-lo muito e era realmente importante
recuperar os livros. Livros são conhecimento e se alguém os havia roubado era
porque queria que algo permanecesse no esquecimento. Mário só pensava no homem
de cabelos longos que havia entrado na livraria pouco antes de sua identidade
desaparecer. Era um sujeito misterioso e lidava com o livreiro com certa
intimidade, apesar de nunca ter visitado o velho me mais de um ano.
Durante este ano em que Mário escreveu o Meio da Rua, o
velho o ensinou bastante sobre aquele mundo em que ele estava mergulhando.
Entre outras coisas, mostrou que existiam outras ruas, tão ricas e estranhas
quanto a Rua do Meio. As demais, porém, não tinham qualquer ligação com o mundo
exterior. Eram infindáveis ruas paralelas que não tinham esquinas. A única
forma de acessá-las era por meio das portas dos fundos dos imóveis. E era assim
que o jornalista iria iniciar sua busca.
Na porta dos fundos do bar, com sua caderneta na mão e o
dente serrilhado no bolso, Mário se despediu do bêbado, do bartender e dos
demais. Andou pela Rua Paralela, procurando o melhor caminho a seguir, sem
saber muito bem como começar a investigar aquilo. Pensou em entrar em um bar
para tomar uma cerveja e pedir dicas. Quem sabe conseguiria um maço de Yellows
em algum lugar.
“Não entraria aí, se eu fosse você”, a voz era doce e
sensual. O repórter não precisava se virar para saber que era a engenheira. “Você
está procurando seres invisíveis. Por que eles não estariam aí dentro ouvindo
sua conversa? Antes que você percebesse, estaria estruído, como toda a nossa
rua.”
O jornalista concordou. Talvez se ele entrasse em contato
com o presidente Ramirez, antes conhecido como presidente Lopes, alguma
autoridade pudesse auxiliá-lo. O pensamento se dissipou no ar quando Mário foi
lançado no chão por um esbarrão acidental. Um esbarrão de um homem alto, forte
e de cabelos negros lisos e compridos. O último homem que o jornalista viu
conversando com o livreiro. E ele tinha alguns livros debaixo do braço.
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