sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

A rua paralela – Tinteiro e páginas em branco (5 de 5)



O jornalista ficou petrificado com a cena. Um adolescente ensanguentado após devorar o coração de um homem no prédio em frente. E, em sua mão, um objeto que poderia torná-lo o ser mais poderoso da Rua do Meio – um simples bastão de giz. O assassino encarava o repórter como se dissesse que se ele não saísse do caminho seria a próxima vítima. Mário, porém, tinha uma dívida com o falecido livreiro e não podia desistir.

Ele teria ficado horas ali, olhando pela janela ao lado do leitor, mas um puxão da engenheira o trouxe de volta à realidade. Os dois correram para fora do prédio a fim de interceptar o abaporu antes que ele fugisse. Ou pior, antes que ele conseguisse tirar do papel da teoria dos caminhos alternativos.
Quando os dois chegaram ao saguão do prédio, o assassino, muito mais veloz, já estava entrando em um carro e seguindo em alta velocidade pela Rua Paralela. Sem pensar, a engenheira parou um veículo que passava em sua frente, rendeu o motorista e roubou o carro. Na direção, ela rasgou o asfalto atrás do abaporu.

Foram vinte minutos de perseguição, onde o adolescente abria vantagem a cada momento. Com o rua reta e interminável, era muito provável que o jornalista e sua parceira perdessem o assassino de vista. “Isso está ridículo. Já passamos três vezes por esse shopping center!”, gritou Mário, tentando ser ouvido sobre o barulho do motor.

Subitamente, a engenheira pisou fundo no pedal do freio, fazendo com que o jornalista batesse a cabeça no painel do carro. “Você ficou louca?”, disse ele. A mulher virou o veículo na direção oposta e acelerou. Como a Rua Paralela recomeçava sempre em seu final, em poucos segundos eles ficaram frente a frente com o carro do abaporu, claramente surpreso. “Coloca o cinto!”, ordenou a engenheira ao repórter, sendo atendida na hora. Os dois carros se chocaram e o assassino foi projetado através do para-brisa, caindo no asfalto.

Ainda tonto pelo choque contra o painel e pela batida posterior, Mário se viu obrigado a sair do carro pela janela para conter o assassino. Ele não tinha um plano, não sabia como lidar com a criatura, mas talvez se o adolescente estivesse desacordado fosse fácil dominá-lo.

Não foi. O assassino se levantou e saltou contra o repórter, mas ainda em sua forma humana. Não era tão forte ou tão ágil, o que permitiu que Mário escapasse, carregando a engenheira com ele. “Eu não sei se somos capazes de lidar com essa criatura, mas acho que podemos, pelo menos, impedir que o plano dele vá adiante. Volte para a Rua do Meio, fique no bar. Junto com o bartender e o bêbado, pense em um jeito de impedir a passagem dele”, pediu o jornalista. Deu um beijo na testa da mulher e se despediu.

Com um pedaço do cano de descarga que havia se desprendido de um dos carros, Mário golpeou o assassino, fazendo-o cair. O giz correu de um dos bolsos do adolescente até os pés do repórter, que sem pensar duas vezes pisou no bastão, fazendo uma grande marca branca no chão. O abaporu ficou descontrolado, já em sua forma de criatura. Estava pronto para matar o jornalista quando viu que um pequeno pedaço do giz ainda estava inteiro. Pegou o objeto e correu para dentro de um prédio em construção.

O jornalista seguiu o assassino. Encontrou a criatura desenhando uma porta em uma parede e dizendo algumas palavras que Mário não conseguiu ouvir. As linhas feitas com giz se iluminaram e foi possível ver uma outra rua por onde antes só se viam tijolos e cimento. O assassino atravessou o caminho alternativo, com o repórter logo atrás.

Saíram em uma outra rua. Uma via de barro cercada de pinheiros dos dois lados. Nada além de um rasgo em uma floresta densa. Mais uma rua dentro da Rua do Meio. A ausência de qualquer construção, onde pudesse haver uma porta dos fundos, indicava que talvez aquele lugar estivesse sendo pisado pela primeira vez. A criatura parecia especialmente satisfeita com sua conquista. Comemorou derrubando duas árvores, quase atingindo o repórter com o tronco de uma delas. Mário tentava se manter escondido, contando que o abaporu não sabia que havia sido seguido. A criatura explorou a área e teve até tempo de caçar um pequeno coelho – um presente para celebrar seu êxito. Mas não demorou até que ele farejasse o repórter a poucos metros. Andou calmamente na direção de Mário, esperando que sua presa fugisse. Mas ele não fugiu. Mantinha na mão o cano de descarga para acertar o ser monstruoso e deformado.

Enquanto caminhava, o abaporu derrubou mais uma árvore e levantou muita poeira com os pés. Estava babando o sangue o coelho e sua língua agitada mostrava que ainda estava com fome. Com um salto, agarrou-se a um pinheiro e mergulhou para destroçar o jornalista. Mário fechou os olhos, retraído de medo. Mas a criatura não chegou. No lugar de seu rosnado, ele só ouviu tiros. Tiros de armas voadoras. Doze pistolas apontadas na direção do abaporu. Os ignorados, a força policial do xerife, vingando o assassinato de seu líder.

O abaporu contorceu-se no chão. Aos poucos, voltou à forma do adolescente. Por impulso, Mário se aproximou, como se fosse possível, ou valesse a pena, salvar o jovem. “Ele está vindo”, sussurrou o assassino. “O primeiro está vindo e não há nada que você possa fazer”. Com a última palavra, escapou também o último fôlego. O adolescente estava morto.

Mário demorou ainda uma semana para voltar à Rua do Meio, à sua Rua do Meio, o cento de todas aquelas ruas paralelas. Neste período ele conseguiu reunir todos os livros que estavam em posse do xerife e do abaporu. Ficou hospedado na casa do leitor, que se tornou um grande amigo. O jornalista comprometeu-se ainda a encontrar um substituto para o xerife, alguém que pudesse tratar os ignorados como eles realmente mereciam.

Na Rua do Meio, parecia que o tempo tinha corrido mais rápido. O bar estava totalmente restaurado, algumas casas já estavam de pé e uma nova livraria esperava apenas o retorno do repórter – tudo fruto do bom trabalho e do esforço da engenheira.

Na livraria, Mário organizou todas as obras e colocou preço em tudo, cumprindo assim a promessa feita ao leitor de que finalmente toda a informação estaria ao livre acesso dos habitantes da Rua do Meio. Atrás do caixa, ele pendurou uma foto de seu velho amigo, como se ele estivesse sempre vigiando a livraria.

“Gostou do meu presente para você, jornalista?”, brincou a engenheira. Ele sorriu. “Não. Quer dizer sim”, complicou-se o repórter. Para relaxar, puxou um cigarro do maço de Yellows, comprado na recentemente reinaugurada banca de jornais. “Gostei muito, mas não sou mais o jornalista. Esse lugar não precisa de um jornal. Precisa de alguém que cuide de todas essas obras, de todo esse conhecimento. Se você era a enfermeira e virou a engenheira, acho que posso abandonar a identidade de jornalista para virar o livreiro. Ou simplesmente Mário, se você preferir.”

Na quartinho dos fundos, onde agora morava, o novo livreiro gastava boa parte do seu tempo debruçado sobre uma escrivaninha. Lá, com uma pena, tinteiro e páginas em branco, ele escrevia mais um capítulo da história da Rua do Meio. Tudo iluminado pela claridade que saía de um dos tantos caminhos alternativos que tinham sido abertos recentemente.

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