A Rua Paralela, como os moradores da Rua do Meio a chamavam, mesmo sendo parte da Rua do Meio, era bem vasta. Enquanto a Rua do Meio tinha uma arquitetura que mesclava o moderno com o clássico, a Rua Paralela era extremamente moderna, com prédios muito altos, diversos letreiros e carros correndo a toda velocidade pela pista. O jornalista mal conseguia supor quantas pessoas viviam ali.
Mário e a engenheira seguiam o homem de cabelos compridos
negros a uma certa distância. Com os livros debaixo do braço, ele era o
principal suspeito da morte do livreiro, roubo de sua obra e destruição da Rua
do Meio. Sem qualquer esquina e com prédios imensos, a rua era um interminável
fiorde de concreto e neon.
Eles não entendiam bem o motivo, mas o suspeito já havia
atravessado toda a rua, chegando novamente a seu começo. E não parava de andar.
Lá estava o banco outra vez. De novo passando pela porta da loja de
departamento. E mais uma vez a sede da empresa de água e energia da Rua do
Meio. Talvez o homem soubesse que estava sendo seguido. Ou quem sabe ele
estivesse procurando alguma coisa.
“Isso é divertido, sabe?”, a engenheira ria. “Melhor do que
cuidar de doentes ou reconstruir casas. Sua rotina é sempre assim?” O
jornalista negou com a cabeça. Em geral, seus dias eram pacatos. Exceto quando
estava envolvido com o caso de Tábata. Nesta época, ele sentia como se
estivesse ficando louco.
Em determinado ponto da rua, havia uma barraquinha de
cachorro quente, onde o homem parou para comer. Apoiou os livros sobre o vidro
do balcão e comeu com calma, tomando uma lata de refrigerante. Cold Cola, mais
uma dessas marcas que só existem na Rua do Meio. Mário achou a cena curiosa. O
sujeito sombrio tomando uma bebida sem álcool. Definitivamente fora dos estereótipos.
O jornalista queria se aproximar e ouvir sobre o que o homem
falava com o vendedor de sanduíche, mas tinha medo de ser reconhecido. Não
sabia se o suspeito se lembrava dele naquela tarde na livraria do falecido
velho. Manteve a distância, um pouco escondido atrás da engenheira.
O homem de cabelos compridos finalmente terminou de comer.
Pagou, acenou para o vendedor e foi embora, deixando para trás os livros sobre
o balcão. Já estava a o que seria um quarteirão de distância quando Mário
finalmente resolveu agir. Andou apressado até o barraquinha para pegar os
exemplares. Talvez eles dessem alguma pista do que estava acontecendo, tivessem
alguma anotação. Quando estava praticamente com as mãos nos livros, amarrados
com uma corda antiga, o repórter quase caiu para trás. Eles simplesmente saíram
voando, na direção do suspeito. “Os ignorados estão mesmo com ele”, sussurrou o
jornalista.
Na porta de um prédio baixo, de três andares, um dos poucos
da rua, o sujeito parou. Ficou olhando a fachada até que os livros voadores
chegassem à sua mão. Em seguida, falou alguma coisa inaudível e entrou. Mário
ordenou que a engenheira aguardasse do lado de fora enquanto ele interpelava o
homem, mas ela não obedeceu. Os dois subiram os poucos degraus da entrada do
prédio e acharam o suspeito sentado atrás de uma grande escrivaninha, com os
pés para cima.
Com cautela, o jornalista pegou um pedaço de pau que estava
encostado em um canto e avançou. Pretendia deixar o homem desacordado,
amarrá-lo e só depois interrogá-lo. Seu plano caiu por terra quando algumas
armas voadoras foram apontadas em sua direção. Estava cercado por ignorados.
“O senhor se incomodaria de largar este pedaço de pau”, o
cabeludo nem se dava ao trabalho de olhar para Mário e a engenheira. O
jornalista obedeceu, fazendo com que as armas – e os ignorados – se afastassem.
“Quem é você?”, a mulher deixou a pergunta escapar.
O suspeito se levantou e apontou duas cadeiras para que
Mário e a engenheira se sentassem. “Ora, eu sou o xerife. Vocês não me
conhecem?”, o homem mostrava uma insígnia enferrujada que guardava na parte de
dentro da jaqueta. Os dois negaram. “O que querem?”
Mário apontou para os livros. “Queremos o que você e seus
homens roubaram da livraria da Rua do Meio”, disse o jornalista. “Você não sabe
do que está falando”, rebateu o xerife. “Eu estou salvando estes livros.”
O xerife puxou da gaveta um cachimbo e um pouco de fumo.
Enquanto acendia, tentou colocar o repórter e a engenheira a par de suas ações.
“Eu e o livreiro éramos amigos. Chegamos à Rua do Meio na mesma época. Não
demorou muito até que eu virasse o xerife e ele me ajudava. Por ser um turista,
e poder ir e vir quando bem quisesse, ele saía sempre que era preciso seguir
alguma pista até o mundo-além-da-esquina. Além disso, juntos nós escrevemos a
lei”, o xerife desamarrou a corda que unia os livros e pegou o mais grosso
deles. “Essa é a lei, a constituição que rege a Rua do Meio. Foi isso que eu
fui buscar lá na livraria naquela tarde antes de você partir. Sim, eu sei que
você estava observando.”
O homem estendeu o braço com o livro na direção de Mário. O
jornalista abriu o exemplar e comprovou que havia sido escrito pelos dois. Na
folha de rosto “Livreiro e Xerife” assinavam a lei. “Mas você está com os
ignorados. E eles roubaram a livraria quando a Rua do Meio foi destruída.”
“Ignorados...”, o xerife parecia se divertir com a palavra. “O
livreiro me contou que você os batizou assim. E você está certo, eles são
ignorados. Criaturas invisíveis e intangíveis, sem fala e sem nomes. Até pouco
tempo eles eram ignorados mesmo. Viviam perdidos pelas ruas, roubando para
comer e trocando coisas de lugar apenas para irritar as pessoas como nós. Mas
eu os descobri. Eu dei para eles um trabalho e um propósito. Hoje eles são
minha força policial. E não são mais ignorados por aí.”
“Além disso”, prosseguiu o xerife, “eles não roubaram nada.
Quando um dos refugiados da Rua do Meio conseguiu atravessar uma das portas dos
fundos, ele veio me avisar. Assim que pude, mandei os ignorados até lá para
resgatar todos os livros. Um deles ainda achou o livreiro com vida, mas não
conseguiu socorrê-lo.” O homem parecia legitimamente triste, como se realmente
falasse de um amigo. “Eles trouxeram os livros para cá. A lei, o livro das
criaturas, os manuais sobre a Rua do Meio. Está tudo aqui. Mas alguns ignorados
foram pegos no caminho. Assassinados. Os livros que eles carregavam foram
capturados. Estou tentando descobrir quais, para poder determinar o interesse
do interceptador.”
Mário anotava boa parte do que o xerife falava. Costume de
repórter. “E quem são esses assassinos?”, perguntou. O homem de cabelos
compridos soltou uma larga nuvem de fumaça. “Criaturas não catalogadas. Seres
novos na Rua do Meio”, disse o xerife.
“Uma criatura como aquela?”, questionou a engenheira, com
olhos arregalados e dedo em riste. O ser deformado, de corpo irregular havia
invadido a delegacia. Com enorme velocidade, a criatura derrubou o jornalista e
a mulher. Foi embora carregando um dos livros que estava sobre a escrivaninha. E
a cabeça do xerife.
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