Parte 1 - Tábata e um maço de Yellows
Parte 2 - O livreiro e o livro
Parte 3 - A sombra e a ausência
Parte 4 - Lamúria
Parte 5 - Um chope e mais um maço de Yellows
Nos fundos da livraria, o jornalista imprimia a nova edição
do Meio da Rua, o jornal da Rua do Meio. Era apenas uma página, afinal não
acontecia tanta coisa assim naquele lugar. Na maioria das vezes, as notícias falavam
sobre novos moradores e pessoas que estavam deixando a rua, mas não era raro
encontrar assassinatos e desaparecimentos. Como o próprio repórter descobriu
quando conheceu a Rua do Meio, isso era mais comum do que podia se imaginar.
Aquela era uma edição especial. A quadrigentésima edição. Há
mais de um ano o jornalista morava na casa que pertencia a Tábata. À falsa
Tábata, pelo menos. A rotina era simples. Acordava, ia à banca de jornais
comprar seu maço de Yellows, passava a manhã na rua apurando as notícias,
preparava o jornal à tarde, ajudava o livreiro com seus afazeres e, por fim,
como recompensa, ia ao bar tomar um chope bem gelado. Era uma rotina bastante
agradável para o jornalista.
Naquela tarde, quando entregou os exemplares para que o
entregador distribuísse, o repórter foi perguntar ao livreiro como podia
auxiliá-lo. “Nada demais, meu caro. Preciso apenas que alguém coloque estes
livros nas prateleiras de cima”, disse o velho apontando para uma pilha de
cerca de 30 obras. O livreiro era baixo e nunca conseguia deixar o lugar
arrumado. Desde que o jornalista, chegou, porém, as pilhas espalhadas pelos
corredores haviam diminuído e as estantes estavam ficando mais cheias.
Enquanto limpava os exemplares antes de colocá-los na
estante, o repórter viu um homem alto, com cabelos longos negros e muito lisos
entrar. Ele foi direto no velho. Não era possível ouvir sobre o que
conversavam. Com um livro na mão, o cabeludo piscou para o livreiro e foi
embora.
Quando acabou a tarefa designada, o jornalista percebeu que
o livreiro tentava falar algo, mas as palavras não saíam. O velho coçava a
cabeça e mexia a boca, mas não conseguia dizer nada. Os olhos arregalaram-se. O
repórter chegou perto do ancião, para tentar entender o que acontecia. “O
senhor está bem, livreiro?”, ele perguntou. O velho se sentou e com um lenço
secou a testa. “O seu nome, meu jovem”, o livreiro parecia muito confuso. “Eu
esqueci o seu nome.”
“Que bobagem”, o jornalista achou graça. “Deve ser a idade.
Meu nome é... É...” O jovem ficou pálido. “Eu não me lembro do meu nome.”
Aquilo era comum, as pessoas perdiam seus nomes na Rua do Meio. O próprio velho
não fazia ideia de como havia sido batizado. Mas o jornalista não achou que
aconteceria tão depressa. Pouco mais de um ano e – puf – o nome se fora.
Era preciso fazer algo. Se o jornalista era um turista, uma
das criaturas da Rua do Meio que podia ir e vir quando bem quisesse, talvez
fosse hora de explorar o mundo-além-da-esquina para buscar identidade. O
repórter se despediu do velho e partiu.
Ao cruzar a esquina, ele não estava mais em Copacabana, como
das últimas vezes. A rua desembocava na Avenida Rio Branco, bem perto do jornal
onde o repórter trabalhava. Foi ali onde ele começou a recuperar sua
identidade. Em frente ao grande prédio, ele deixou escapar: “Mário... Meu nome
é Mário.” Tendo abandonado o emprego há mais de um ano, ele não ousou subir.
Amparado por algumas moedas que ainda tinha no bolso, ele pegou um ônibus para
o bairro onde vivia.
Na entrada de seu prédio, no Bairro Peixoto, o porteiro não
o reconheceu. Perguntou o que ele queria ali, a quem estava indo visitar. O
mesmo porteiro que tantas vezes jogou conversa fora sobre futebol com ele. O
máximo que Mário conseguiu foi descobrir que seu apartamento estava alugado
para um casal.
A alguns quarteirões dali, na Santa Clara, o jornalista foi
procurar a ex-mulher e a filha. Ficou parado em frente ao prédio, pois sabia
que já estava na hora de a menina voltar do colégio. Quando ela chegou, estava
acompanhada do padrasto, um homem mais bonito, mais simpático e mais presente
que ele. Os dois passaram pelo repórter, o olharam, mas não viram nada além de
um estranho.
Tendo certeza de que no dia em que perdeu seu nome também
deixou de viver no mundo-além-da-esquina, Mário preferiu voltar para sua
pequena casa sem janelas e para seu pequeno periódico. Seguiu andando pela
Barata Ribeiro, mas não achou a famosa esquina com a banca de jornais. Viu
apenas uma pequena rua que lembrava um campo de guerra.
Como quem passa em frente a um acidente, os olhos de Mário
foram capturados pela rua e quando ele se deu conta já estava nela. O asfalto
estava quebrado e as construções totalmente destruídas. Ninguém andava pela rua
e uma constante fumaça parecia brotar do solo. O jornalista sentiu que
precisava comentar com alguém, mas quando olhou para trás viu que ninguém
entrava na rua. Todos andavam como se aquela rua não existisse. Por mais que
lhe doesse admitir, era a Rua do Meio.
Não havia sinal da livraria ou de sua casa. Sem hotel ou
restaurante. Após avançar um pouco pela rua, o jornalista percebeu que o único
imóvel de pé, apesar das muitas rachaduras era o bar. O bar onde tudo começou,
onde ele conheceu Tábata e a sombra.
Mário entrou afobado no bar. Cerca de seis pessoas bebiam,
como se nada tivesse acontecido. O bartender ainda estava ali, mas usava um tapa-olho
e tinha parte do rosto paralisada. “O que aconteceu?”, o jornalista perguntou
aflito ao homem. O bartender se limitou a pegar uma tulipa que não parecia
estar limpa e encher de chope, como o repórter costumava tomar todas as noites.
“Não achava que você voltaria a dar as caras por aqui”, um
sujeito bêbado resmungou. O jornalista perguntou quem era ele. “Ora, eu sou o
bêbado. Toda cidade precisa de um, não é mesmo? Sei que nunca nos falamos, mas
eu sempre te via aqui. Nós sentimos sua falta.”
O jornalista coçou a cabeça. “Como assim sentiram a minha
falta? Não fiquei mais do que três horas fora daqui!” O bêbado riu. Mário não
esperava ouvir o que o sujeito estava prestes a dizer: “Três horas? Você esteve
fora por mais de cinco anos!”
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