segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

O fim – O profeta do apocalipse (1 de 3)



Sábado era dia de feira na rua de Alberto. E, como em todos os dias da semana, ele já estava acordado quando o sol nasceu. Velho tem dessas coisas. Aos setenta e um anos, ele vivia em um apartamento de dois cômodos na Tijuca. A única companhia constante era Hugo, um vira-latas que adotara há alguns meses. Era fedorento e mal educado, mas pelo menos ouvia o que o velho tinha a dizer.

– Vá pegar sua coleira, Hugo. Quero passar na feira para comprar algumas frutas. Se você se comportar, podemos até dividir um pastel de queijo – o cão ignorou a ordem de Alberto.

O velho tinha uma rotina rígida. Velho tem dessas coisas, você sabe. Acordava antes das seis da manhã e fazia suas orações enquanto limpava a sujeira do cachorro. Às sete, escutava o Show do Genésio, seu programa de rádio favorito, que ia até as nove horas. Ele, então, começava a preparar o almoço, que era servido às onze da manhã. Depois da sobremesa, sempre uma laranja lima, ele tirava uma soneca. Acordava às três da tarde, quando lia um pouco a bíblia e fazia mais algumas orações. Em seguida, ia para uma pracinha próxima, onde fazia alguns exercícios e passeava com Hugo. Quando anoitecia, ele voltava para casa, comia um sanduíche e assistia às novelas e telejornais. Às dez da noite ia dormir, nunca sem antes tirar o telefone do gancho para ligar para a filha, perder a coragem e colocar o telefone de volta no gancho.

Quando o relógio da cozinha avisou que já eram sete horas, Alberto ainda procurava a coleira do cachorro. Hugo tinha mania de esconder a coleira nos lugares mais complicados. Como estava na hora de seu programa, o velho adiou a ida à feira e ligou o rádio.

“Bom dia, meu amigo, minha amiga. Aqui é o companheiro de todas as manhãs, Genésio Costa”, no fundo, uma musiquinha repetia o nome do comunicador. “Hoje é sábado, dia de jogo do Mengão, dia de lavar o carro, dia de levar a patroa para jantar fora. Hoje é dia de quê?”, outra música dizia que era dia de alegria. “É isso aí, minha gente. Sabadão é dia de alegria. Para começar esse dia com alto astral, vamos ouvir uma música dele, o rei Roberto Carlos.”

A música começou. O Show do Genésio sempre começava com uma música do Roberto Carlos. E Alberto sentia que se seu dia não começasse com o Show do Genésio e uma música de Roberto Carlos, não seria um dia de alegria. Velho tem dessas coisas. Naquele sábado, porém, a música foi interrompida antes do refrão. Quem falava não era mais Genésio Costa, mas um dos membros da equipe de jornalistas da rádio.
“Bom dia, ouvintes do Show do Genésio. Lamentamos por interromper a transmissão do programa, mas estamos acompanhando ao vivo um pronunciamento da Casa Branca, sede do governo dos Estados Unidos. Vamos para lá agora com o repórter Júlio César Araújo. Júlio?”

Alberto sentou para ouvir a notícia. Ele acompanhava o Show do Genésio há mais de quinze anos e ele jamais havia sido interrompido. Com certeza era alguma coisa importante. “O presidente dos Estados Unidos acabou de concluir seu pronunciamento”, dizia o repórter. “Segundo ele, a Nasa, a Agência Espacial Norte-Americana, detectou a proximidade de um meteoro. O corpo celeste está se aproximando a uma velocidade de quinze quilômetros por segundo e deve atingir a Terra em cerca de três dias. Os cientistas preferiram não especular, mas disseram que o meteoro é semelhante ao que matou os dinossauros, há milhões de anos. Especialistas ainda estão calculando o ponto de impacto, mas já se sabe que será em algum lugar do Hemisfério Sul, provavelmente perto do leste da América do Sul.”

A transmissão do pronunciamento acabou e a rádio reiniciou a música de Roberto Carlos que havia sido interrompida, como se nada tivesse acontecido. Alberto ficou ali, sentado, olhando para Hugo, que nesta hora mastigava a coleira a seus pés. O profeta do apocalipse acabara de avisar sobre o fim do mundo. Apesar de velho, Alberto ainda pretendia fazer muitas coisas. Queria terminar de ler alguns livros que se acumulavam em sua estante, queria ser o síndico do prédio e poder botar ordem em toda a bagunça dos vizinhos, queria chamar uma viúva que ele via todo dia na pracinha para ir ao cinema, queria ver o cachorro crescer. Mas, principalmente, queria reencontrar a filha.

Tão rápido quanto seu corpo permitia, o velho correu para o telefone. Discou o número da filha, mas a companhia telefônica tocou uma mensagem dizendo que aquele número havia mudado. Mas não deu o número novo.

Alberto colocou a coleira em Hugo, fechou a janela, colocou uma muda de roupa na mochila, pegou o dinheiro que tinha escondido embaixo da televisão, fez uma última oração em gente à imagem de Nossa Senhora Aparecida e partiu.

As ruas estavam cheias. Alguns pareciam assustados com a notícia, outros debochavam das previsões. O velho foi para a rodoviária e comprou uma passagem para Itatiaia, no interior do Rio de Janeiro, onde a filha morava. A passagem estava três vezes mais cara do que o preço de costume, mas em três dias o dinheiro não serviria para mais nada mesmo. Alberto pagou sem reclamar.

Em uma caixa velha, que estava jogada em um canto qualquer da rodoviária, o velho escondeu o cachorro, para que ninguém reclamasse da presença dele no ônibus. Bastava torcer para que Hugo não decidisse latir durante a viagem.

Agarrado a sua bíblia, Adalberto rezou durante todo o trajeto. Rezou para que a filha estivesse bem, para que a filha estivesse em casa, para que a filha o recebesse bem e para que o mundo não acabasse. E rezava para que a filha cuidasse do cachorro quando ele morresse. Ele pensava muito no bem estar do cachorro. Velho tem dessas coisas.

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