Sábado era dia de feira na rua de Alberto. E, como em todos
os dias da semana, ele já estava acordado quando o sol nasceu. Velho tem dessas
coisas. Aos setenta e um anos, ele vivia em um apartamento de dois cômodos na
Tijuca. A única companhia constante era Hugo, um vira-latas que adotara há
alguns meses. Era fedorento e mal educado, mas pelo menos ouvia o que o velho
tinha a dizer.
– Vá pegar sua coleira, Hugo. Quero passar na feira para
comprar algumas frutas. Se você se comportar, podemos até dividir um pastel de
queijo – o cão ignorou a ordem de Alberto.
O velho tinha uma rotina rígida. Velho tem dessas coisas,
você sabe. Acordava antes das seis da manhã e fazia suas orações enquanto
limpava a sujeira do cachorro. Às sete, escutava o Show do Genésio, seu
programa de rádio favorito, que ia até as nove horas. Ele, então, começava a
preparar o almoço, que era servido às onze da manhã. Depois da sobremesa,
sempre uma laranja lima, ele tirava uma soneca. Acordava às três da tarde,
quando lia um pouco a bíblia e fazia mais algumas orações. Em seguida, ia para
uma pracinha próxima, onde fazia alguns exercícios e passeava com Hugo. Quando
anoitecia, ele voltava para casa, comia um sanduíche e assistia às novelas e
telejornais. Às dez da noite ia dormir, nunca sem antes tirar o telefone do
gancho para ligar para a filha, perder a coragem e colocar o telefone de volta
no gancho.
Quando o relógio da cozinha avisou que já eram sete horas, Alberto
ainda procurava a coleira do cachorro. Hugo tinha mania de esconder a coleira
nos lugares mais complicados. Como estava na hora de seu programa, o velho
adiou a ida à feira e ligou o rádio.
“Bom dia, meu amigo, minha amiga. Aqui é o companheiro de
todas as manhãs, Genésio Costa”, no fundo, uma musiquinha repetia o nome do
comunicador. “Hoje é sábado, dia de jogo do Mengão, dia de lavar o carro, dia
de levar a patroa para jantar fora. Hoje é dia de quê?”, outra música dizia que
era dia de alegria. “É isso aí, minha gente. Sabadão é dia de alegria. Para
começar esse dia com alto astral, vamos ouvir uma música dele, o rei Roberto
Carlos.”
A música começou. O Show do Genésio sempre começava com uma
música do Roberto Carlos. E Alberto sentia que se seu dia não começasse com o
Show do Genésio e uma música de Roberto Carlos, não seria um dia de alegria.
Velho tem dessas coisas. Naquele sábado, porém, a música foi interrompida antes
do refrão. Quem falava não era mais Genésio Costa, mas um dos membros da equipe
de jornalistas da rádio.
“Bom dia, ouvintes do Show do Genésio. Lamentamos por
interromper a transmissão do programa, mas estamos acompanhando ao vivo um
pronunciamento da Casa Branca, sede do governo dos Estados Unidos. Vamos para
lá agora com o repórter Júlio César Araújo. Júlio?”
Alberto sentou para ouvir a notícia. Ele acompanhava o Show
do Genésio há mais de quinze anos e ele jamais havia sido interrompido. Com
certeza era alguma coisa importante. “O presidente dos Estados Unidos acabou de
concluir seu pronunciamento”, dizia o repórter. “Segundo ele, a Nasa, a Agência
Espacial Norte-Americana, detectou a proximidade de um meteoro. O corpo celeste
está se aproximando a uma velocidade de quinze quilômetros por segundo e deve
atingir a Terra em cerca de três dias. Os cientistas preferiram não especular,
mas disseram que o meteoro é semelhante ao que matou os dinossauros, há milhões
de anos. Especialistas ainda estão calculando o ponto de impacto, mas já se
sabe que será em algum lugar do Hemisfério Sul, provavelmente perto do leste da
América do Sul.”
A transmissão do pronunciamento acabou e a rádio reiniciou a
música de Roberto Carlos que havia sido interrompida, como se nada tivesse
acontecido. Alberto ficou ali, sentado, olhando para Hugo, que nesta hora
mastigava a coleira a seus pés. O profeta do apocalipse acabara de avisar sobre
o fim do mundo. Apesar de velho, Alberto ainda pretendia fazer muitas coisas.
Queria terminar de ler alguns livros que se acumulavam em sua estante, queria
ser o síndico do prédio e poder botar ordem em toda a bagunça dos vizinhos,
queria chamar uma viúva que ele via todo dia na pracinha para ir ao cinema,
queria ver o cachorro crescer. Mas, principalmente, queria reencontrar a filha.
Tão rápido quanto seu corpo permitia, o velho correu para o
telefone. Discou o número da filha, mas a companhia telefônica tocou uma
mensagem dizendo que aquele número havia mudado. Mas não deu o número novo.
Alberto colocou a coleira em Hugo, fechou a janela, colocou
uma muda de roupa na mochila, pegou o dinheiro que tinha escondido embaixo da
televisão, fez uma última oração em gente à imagem de Nossa Senhora Aparecida e
partiu.
As ruas estavam cheias. Alguns pareciam assustados com a
notícia, outros debochavam das previsões. O velho foi para a rodoviária e
comprou uma passagem para Itatiaia, no interior do Rio de Janeiro, onde a filha
morava. A passagem estava três vezes mais cara do que o preço de costume, mas
em três dias o dinheiro não serviria para mais nada mesmo. Alberto pagou sem
reclamar.
Em uma caixa velha, que estava jogada em um canto qualquer
da rodoviária, o velho escondeu o cachorro, para que ninguém reclamasse da
presença dele no ônibus. Bastava torcer para que Hugo não decidisse latir
durante a viagem.
Agarrado a sua bíblia, Adalberto rezou durante todo o
trajeto. Rezou para que a filha estivesse bem, para que a filha estivesse em
casa, para que a filha o recebesse bem e para que o mundo não acabasse. E
rezava para que a filha cuidasse do cachorro quando ele morresse. Ele pensava muito
no bem estar do cachorro. Velho tem dessas coisas.
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