Os ignorados limpavam o sangue do xerife do chão da
delegacia. Era possível ver os panos de chão deslizando de um lado para o
outro. A engenheira checava uma lista de livros anotada pelo xerife, tentando
determinar qual obra havia sido levada pelo assassino. Já o jornalista,
rabiscava em sua caderneta detalhes da criatura que havia decapitado o homem
que até poucas horas atrás era o principal suspeito da morte do livreiro.
“A criatura possui corpo disforme, com braços e pernas muito
longos e tronco estreito”, relatava o repórter. “Parece exageradamente forte e
comprovadamente veloz, tendo arrancado a cabeça de um homem com os próprios
dentes em questão de segundos. Dadas as características físicas e a natureza
antropofágica do ser, batizo-o em referência a uma obra da pintora brasileira
Tarsila do Amaral como abaporu, aquele que devora.” Mário concluiu a página com
um esboço da criatura.
Algum tempo depois, tendo checado diversas vezes toda a
lista de livros, a engenheira finalmente procurou o repórter para relatar sua
descoberta. “Caminhos alternativos” era o nome da obra desaparecida. Talvez
aquela informação ajudasse o xerife de alguma maneira, mas o nome não dizia
nada ao jornalista. “Se há uma coisa que eu aprendi durante tantos anos na
redação de um jornal é que o repórter não precisa saber de nada. Ele só precisa
encontrar alguém que saiba”, disse para a engenheira e para os ignorados que
estavam ao seu redor.
Com uma lista telefônica da Rua do Meio em mãos, ele folheou
em busca de alguém que pudesse auxiliá-lo. Não havia um bibliotecário, já que
não havia bibliotecas. Todos os livros sempre estiveram concentrados na
livraria. O jornalista encontrou um professor, um mestre e um doutor, mas não queria
perder tempo procurando cada um para checar suas áreas de especialidade. Quando
já estava quase desistindo, a engenheira encontrou um nome que certamente
poderia dar um norte àquela apuração: “o leitor”.
Depois de gastarem alguns minutos tentando desvendar o
endereço – Rua Paralela, lado dos que acordam cedo, prédio ora verde, ora
vermelho, ora azul, acima dos vizinhos – Mário e a engenheira partiram. O “lado dos que
acordam cedo” se referia ao lado oposto da delegacia, onde o sol invadia as
casas logo pela manhã. O “prédio ora verde, ora vermelho, ora azul” era um edifício
espelhado em frente a um restaurante com um letreiro que piscava nestas cores.
E “acima dos vizinhos” fazia menção ao apartamento da cobertura. De pé, na
calçada, foi fácil determinar onde o leitor morava.
Quando os dois se identificaram como amigos do livreiro, o
leitor prontamente autorizou a entrada. Ele vivia em um apartamento muito amplo,
com muitas fichas repletas de anotações. Não devia ser muito fácil ser um
leitor em um lugar onde os livros estavam concentrados na mão de um único
homem. “Acredito que vocês não tenham vindo cobrar as obras que o livreiro me
emprestou na minha última visita à Rua do Meio”, o homem tinha um ar esnobe.
Mário negou. E afirmou que eles sequer sabiam sobre a
existência destes livros, embora estivessem satisfeitos que parte da coleção do
livreiro estivesse em boas mãos. A engenheira explicou o que queriam. “Claro, a
lista. O xerife já havia me procurado em busca de ajuda, mas não sei se eu
poderia ajudar em algo”, o leitor procurava seus óculos em uma gaveta cheia de pares.
“Na verdade, senhor, houve um incidente”, Mário explicou. “O
xerife está morto e um dos livros que estava com ele foi roubado. Não sabemos o
conteúdo do livro e tínhamos esperança de que você já o tivesse lido.”
Ao ouvir que a obra era “Caminhos alternativos”, o leitor
coçou o cavanhaque e se sentou em uma poltrona que parecia confortável e velha.
“Eu já li de tudo. Me lembro de uma época em que tínhamos um grupo, chamado de
Clube do Livro. Nome bobo, eu sei. Leitor, escritor e livreiro, um alimentando
o trabalho do outro. Infelizmente o escritor morreu e o livreiro assumiu essa
função. Não que eu não gostasse do trabalho dele, mas o livreiro sempre foi
muito ciumento com seu trabalho e não deixava que os exemplares circulassem
livremente pela Rua do Meio. Eu entendo que para ele aquilo tudo era
importante, um compêndio da história, da lei e das ciências da Rua do Meio. Mas
para mim eram só livros, só material para a minha necessidade de continuar
lendo. Acabamos brigando, mas eu li todos os livros dele. Hoje, gasto meu tempo
fazendo anotações para ler depois. Mas eu não sou escritor, não tenho esse
talento. Estou frustrado.”
O leitor prometeu ajudar, com uma condição: quando todos os
livros fossem recuperados o jornalista e a engenheira reergueriam a livraria ou
construiriam uma biblioteca para que todo o conhecimento da Rua do Meio ficasse
à disposição de sua população. Os dois concordaram. “Desta forma, direi tudo o
que sei. Vocês obviamente já perceberam que tudo é muito estranho na Rua do
Meio. E só é possível atravessar entre as ruas paralelas por meio das portas
dos fundos. O livreiro nunca acreditou neste tipo de limitação. Junto com o
curioso, que também já nos deixou, ele investigou as passagens de uma rua para
a outra. E para o mundo-além-da-esquina também. Os tais caminhos alternativos.
Ele defendia que havia uma maneira para entrar e sair da Rua do Meio e que isto
não estava limitado aos turistas, como você e ele. Mas ele logo descobriu
alguma outra coisa e partiu para um novo livro. E ninguém nunca tentou colocar
os conceitos dele em prática. O livro, em si, está inacabado.”
O leitor começou a divagar e o jornalista saiu da sala. Foi
até uma escrivaninha, onde escreveu algumas linhas em sua caderneta. Em
seguida, voltou com uma teoria para que o leitor e a engenheira avaliassem. “Alguém
quer controlar o transito das pessoas pela Rua do Meio. Alguém foi até lá e
destruiu todos os imóveis, com suas portas dos fundos, limitando o acesso às
esquinas. O xerife tentou recuperar os livros, mas o assassino, vamos chamá-lo
assim, sabia que um dos livros continha a fórmula para entrar e sair. Sem o
livro em mãos, ele deixou o bar de pé, para garantir que ainda houvesse uma
porta. Se as teorias do livreiro não forem só teorias, o assassino poderá
destruir o bar, sendo o único com meios para permitir que as pessoas transitem.
Ele pode destruir todas as portas dos fundos, de todas as ruas, tendo assim
mais poder que o presidente Ramirez.”
A engenheira concordou com a cabeça e o leitor gesticulou um
aplauso sem som. “Precisamos de alguma pista para achar o assassino”, Mário
falou para seu anfitrião. “Você sabe de algum elemento que seja necessário para
fazer um caminho alternativo que possa nos dar uma pista. Algo fora do comum na
Rua do Meio?”
O leitor pensou um pouco e abriu um sorriso animado. “Se eu
bem me lembro, e eu tenho memória quase fotográfica, para fazer um caminho alternativo
é preciso desenhar uma porta na parede. O livreiro foi bem claro na necessidade
de um bastão de giz para fazer um desenho. Mas nós não temos giz na Rua do
Meio. Talvez por isso a teoria nunca foi posta em prática. A única pessoa que
eu consigo imaginar que possa ter um bastão de giz é um turista como você. Um
homem muito rico que atende pelo nome de contrabandista. E, por sorte, ele mora
no prédio em frente”, disse o homem, apontando para um dos apartamentos.
Assustado, o jornalista se aproximou com calma da janela. No
prédio em frente, o contrabandista tinha uma visita. A criatura que Mário
batizou como abaporu. O ser saltou sobre o contrabandista, destroçou sua caixa torácica
com os dentes e devorou seu coração. Depois, arrancou a porta do cofre da
parede e achou um bastão de giz. Ao perceber que estava sendo observado, o
abaporu se aproximou da janela. Aos poucos, seu corpo se transmutou, até se
tornar o de um jovem, de cerca de dezesseis anos, aparentemente pacato e sereno. Enquanto lambia os lábios
ensanguentados, o assassino acenou para o repórter, com o giz na mão.
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