terça-feira, 25 de novembro de 2008

Destino

“Nasceu Bianca Duarte, que será grande atriz da televisão e do cinema brasileiro. Seus papéis de destaque serão na novela O Caminho da Felicidade e no filme Nosso Amor. Ela tentará também carreira como cantora, mas seus discos não serão bem recebidos pela crítica. Ela se casará com Rodolfo Mello, com quem fará par romântico na novela A Mulher dos Meus Sonhos, que a lançará para o estrelato. Juntos, terão duas filhas, Rosa e Patrícia, e ambas seguirão a carreira dos pais. O casamento de Bianca e Rodolfo será marcado por brigas, motivadas pela dependência dele em álcool. A futura atriz morrerá aos 87 anos, de falência múltipla nos órgãos. Ela deixará grande fortuna, que será utilizada na criação da Fundação Bianca, que dará oportunidade de estudar teatro a diversas crianças, muitas das quais serão reconhecidas como sucessoras de Bianca Duarte.”

Azevedo assinou a coluna de nascimentos, enviou para seu editor, puxou o paletó da cadeira e se despediu do jornal. Nada no mundo o frustrava tanto quanto seu emprego. A coluna de nascimentos era importante e atraía muitos anunciantes. As famílias dos recém-nascidos enviavam diversos presentes a Azevedo, na esperança de que ele contasse um futuro melhor para seus filhos. Na verdade, independia dele o conteúdo da coluna. Azevedo só escrevia a verdade.

A sociedade em que o jornalista vivia, diferente desta nossa, era totalmente baseada no destino. E eles levavam o destino muito a sério. Havia diversos especialistas em ler o futuro e, não importa o que acontecesse, eles sempre acertavam. Apesar da fama que a coluna lhe rendia, Azevedo vivia frustrado, considerando-se um burocrata do destino.

No dia em que o próprio Azevedo nasceu, seu parto rendeu uma notinha. “Nasceu na tarde de ontem Emanuel Azevedo, que em 25 anos se tornará o autor desta coluna. Azevedo, como será chamado, trabalhará em diversos jornais em sua carreira, mas será sempre conhecido como o ‘Homem do Destino’, graças a seus relatos sobre os nascimentos. Ele se casará com Fátima Lopes, mas não terá filhos por ser estéril, o que causará inúmeros problemas conjugais. Emanuel morrerá aos 62 anos, em um acidente de carro. Após sua morte, uma rua será batizada em sua homenagem.”

Seu destino o incomodava. Quem o lesse, perceberia toda uma vida de não realizações, baseada exclusivamente no trabalho que ele tanto odiava. Mas não era isso o que o aborrecia. Caso sua nota de nascimento dissesse que ele se tornaria extremamente rico e se elegeria presidente, Azevedo ficaria igualmente inconformado.

O que mais chateava o jornalista era a total impossibilidade de tomar qualquer decisão. Porque independentemente do que ele fizesse, tudo acabaria como os estudiosos escreveram no dia em que ele nasceu. Fátima, a esposa, gostava do sistema. Mesmo sabendo que nunca teriam filhos, lhe restava a alegria de constatar como o namoro dos dois tinha acontecido do jeito que estava previsto.

Naquela noite, quando voltou para casa, Azevedo estava claramente abatido. Fátima logo percebeu que havia algo errado. Ela tanto insistiu, que o marido contou o que o afligia. “Sabe essa droga de destino? Eu odeio o destino!”

Fátima achou graça na reclamação do marido. Como alguém podia reclamar do destino, se este já estava escrito e não havia como fugir? Ela deu uma gargalhada e saiu da sala. Azevedo, mais irritado do que nunca, decidiu: “Vou escrever meu próprio destino!”

Emanuel correu na gaveta da sala e pegou sua certidão de nascimento, que narrava com riqueza de detalhes os principais episódios de sua vida. Lá, dois lhe chamaram em especial a atenção. O primeiro, uma grande festa de aniversário para comemorar seus trinta anos, data que se aproximava em poucos dias. O outro, um livro que escreveria. Na opinião dele, estas eram coisas fáceis de se evitar e provar que o destino não existia.

No dia de seu aniversário de trinta nos, que mais parecia a celebração de que só faltavam mais trinta e dois para que todo o destino se cumprisse, Azevedo fez de tudo para fugir. Havia uma festa marcada num restaurante próximo ao jornal e todos os seus amigos, parentes e colegas já tinham garantido presença. A primeira idéia que teve foi ligar para o estabelecimento, acusando uma ameaça de bomba. O dono do lugar pediu que ele esperasse um pouquinho. Quando voltou, riu da brincadeira. “Isto é um trote, meu amigo. Só pode ser. Aqui no registro do meu imóvel não fala nada de bomba. Vou ter um incidente com ratos até o final do mês e um bujão vai explodir a minha cozinha em dois anos, mas bomba não tem não”, disse o homem. Impaciente, Azevedo desligou.

Sem poder cancelar a festa, só lhe sobrou fugir dela. Saiu da redação meia hora antes do horário, chamou um táxi e correu para casa. Entrou de fininho, pé ante pé, e quando chegou na sala, um grito de “surpresa” quase o derrubou. Metade de todo mundo que ele conhecia estava parado em sua sala de jantar, com bolas, bolo e salgadinhos.

Durante mais de um ano, o pensamento de Azevedo permaneceu focado no destino. Destino este que garantia que ele escreveria um livro. Essa, só dependia dele. Se Emanuel não escrevesse nada, o destino estaria errado e ele ganharia. A cada dia que se aproximava da data de lançamento da obra, mais nervoso ele ficava. Até porque diversas vezes Azevedo se descobriu escrevendo algumas linhas no intervalo do trabalho ou durante a noite.

Quando o fatídico dia chegou, o jornalista era só alegria. Seria impossível concluir e publicar uma obra em menos de vinte e quatro horas. Mas quando chegou à sua mesa e encontrou uma caixa, seu coração quase parou. No interior, encadernados com suas colunas trazia sua assinatura imensa na capa. “Gostou?”, perguntou o editor. “É um apanhado com as pessoas que serão mais famosas que você já escreveu. Vai vender que nem água. Um milhão, oitocentos e quarenta e dois, duzentos e três exemplares, para ser mais exato.”

Furioso, Azevedo voltou correndo para casa. Aproveitou que sua mulher estava fora para colocar a última etapa de seu plano em ação. Se o destino dizia que ele morreria aos sessenta e dois, um suicídio aos trinta e um seria o golpe perfeito contra o sistema. Puxou uma cadeira, amarrou uma corda no lustre e fez um laço em volta do pescoço. Com a frieza de quem estava à beira do desespero, o jornalista chutou a cadeira em que estava trepado e contente deixou o corpo pender na forca.

Enquanto gozava sorridente de seus últimos segundos e sentia com alegria o pulmão reclamar e os olhos forçarem-se para fora das órbitas, Azevedo ouviu o telefone tocar pela última vez. Após a terceira campainha, a secretária eletrônica atendeu. “Emanuel? Sou eu, Fátima. Só para te avisar que ligaram hoje do departamento de registro. Parece que houve um erro no dia em que você nasceu. A sua certidão diz que você vai morrer aos sessenta e dois, em um acidente, mas parece que você morre hoje, enforcado. To ligando só para dizer que te amo. Espero que eu ainda te pegue vivo quando chegar do trabalho. Beijo.”

Azevedo ouviu o recado em desespero. Sacudiu-se todo na tentativa de escapar da morte. Em vão. No dia seguinte, seu suicídio estava no obituário do jornal. Ninguém leu.

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

A cidade em que morri


O calor e o clima seco só faziam aumentar a angústia de Maria Lúcia. Sentada naquela praça empoeirada, ela se arrependia de ter saído de casa. Já estava esperando há mais de uma hora. Esperaria quantas horas fosse preciso. Não poderia continuar naquela cidade horrorosa em hipótese alguma.

Pegara um avião alguns dias antes. Saiu do Rio de Janeiro em uma ponte aérea para São Paulo. De lá embarcou em um aviãozinho de passageiros da TAM que não podia ver uma pista no meio do mato que já ia pousando. Toda vez que Lúcia achava que estava ganhando altitude, o maldito aeroplano já se aproximava de outra fazenda para pegar ou deixar passageiros.

O destino era Pontaporã. Não era para ser. No princípio daquele mesmo ano, 1977, Lúcia e o pai combinaram de visitar Recife. Senhor Luiz Gonzaga, um pernambucano alto, de pele clara, descendente de holandeses, queira ver a cidade natal mais uma vez. Lúcia queira apenas acompanhar o pai numa viagem. Como o destino prega peças, Luiz Gonzaga faleceu, em fevereiro, antes da viagem. Decidida a passear, mesmo sem companhia, Maria Lúcia, que na época tinha 21 anos, mudou o destino para visitar uma amiga.

Stela morara no Rio de Janeiro e tinha trabalhado com Lúcia numa agência do Banco Nacional. Quando o marido dela se transferiu para o Mato Grosso a pedido do Banco do Brasil, Stela o acompanhou. Lúcia estava disposta a fazer uma surpresa para a amiga. Não avisou da viagem a ninguém, exceto aos pais de Stela que pediram que uma boa quantidade de camarões fosse lavada à filha. Dito e feito, Lúcia e os camarões embarcaram no trem parador rumo à fronteira do Brasil com o Paraguai.

A jovem estava com pouco dinheiro e uma incrível falta de sorte. Um inesperado excesso de bagagem levou embora uma porcentagem de suas cifras, mas ela não estava preocupada com isso. Queria era se divertir. No avião, conheceu o senhor Gilson, que também iria para Pontaporã. O velho homem, um pouco gordo e de barbas bem desenhadas, logo percebeu que ela não era dali e lhe ofereceu uma carona. Chegaram ao endereço de Stela no princípio da tarde. Maria Lúcia agradeceu, catou as malas e pôs-se à porta da casa grande. Bateu palmas (não havia campainhas) e viu uma figura desconhecida atender:
- Pois não?
- Olá! É aqui que mora a Stela e o Paulo?
- È sim, minha filha. É na casa dos fundos. Me diga seu nome que eu vou chamá-los.
- Meu nome é Lúcia, mas olhe só... Não diga que eu estou aqui.
A mulher a chamou para entrar. Lá dentro, pôde explicar-se com mais calma:
- Nós trabalhávamos juntas. Somos muito amigas. Eu sou até madrinha do filho dela, o Paulinho. Vim visitá-la, mas não avisei nada.
- Você deve ser louca... Vir para este fim de mundo sem avisar...
- Uma aventura de vez em quando não faz mal. Se a senhora pudesse chamá-la sem avisar que eu estou aqui seria muito bom.
A dona da casa enfiou a cabeça para fora da janela e começou a gritar:
- Oh, Stela! Venha cá, minha filha! Acode Stela! Acode!

Stela partiu numa corrida de sua casa à da senhoria, equilibrando o bebê no colo, com o marido logo atrás dela. Que desgraça estaria acontecendo para tamanho escândalo? Os três invadiram a sala prontos para salvar a mulher dos escombros de um desabamento ou das chamas rebeldes de um incêndio, mas só encontraram uma senhora quieta e uma amiga de longa data. “Lúcia, Lúcia!”, e a festa não tinha fim. Abraçaram, beijaram, agradeceram os camarões, repreenderam a loucura e o sigilo. Por fim, tomaram a amiga pela mão e carregaram-na para sua casa. Deram comida, bebida, levaram para conhecer a cidade. Apesar de toda a atmosfera pacata que cobria a cidade, o chão de barro vermelho que deixava roupas e cabelos parecendo urucum a incomodou nos primeiros dias. Os tiroteios entre policiais e contrabandistas tiraram o sono da turista. Sim, pasmo leitor, naquela época ainda não havia tiroteios no Rio de Janeiro.

Para compensar a casa onde se instalou e todas as despesas que dava, Lúcia decidiu-se por pagar as compras de supermercado. Atravessaram a fronteira, que era nada menos que um canteiro no meio de uma avenida e se abasteceram no mercado mais próximo de casa. Lá se foi mais dinheiro embora.

Passados cinco dias de sua chegada, Lúcia despediu-se e seguiu viagem. De Pedro Juan Caballero, na fronteira, pegou um ônibus para Assunção, capital paraguaia. O ônibus merecia um conto à parte. Velho e enferrujado, carregava todo tipo de gente: turistas, contrabandistas, caboclos e senhores ricos. Qualquer pessoa que quisesse chegar a uma cidade com vestígios de civilização precisava tomar aquela condução. No meio do caminho, uma forte chuva começou a cair. O ônibus reduziu a velocidade parou completamente ao chegar a uma ponte. Sem saber o que estava acontecendo, Lúcia acompanhou todos os passageiros para o lado de fora. Entendendo praticamente nada e preocupada com as malas, atravessou a ponte a pé. Ao chegar à outra extremidade, viu o carro seguir na direção dos passageiros. Subiu de volta, tomou seu assento e seguiu viagem. Só num país como o Paraguai as pessoas atravessam para dar passagem ao ônibus.

Empolgada com a viagem, Maria Lúcia viu seu sonho desmoronar ao chegar em Assunção. Era a cidade mais opressora em que ela já estivera. Chegou a pensar: “Se existe reencarnação, em outra vida eu morei nesta cidade, fui torturada e sofri muito. Esta é a cidade em que morri”.

Ela encaminhou-se para o hotel, reservou um quarto, arrumou suas coisas. Estava disposta a sair do quarto, mas não achava motivação. Andou de um lado para o outro até que decidiu conhecer as ruas. Dirigiu-se calmamente a uma praça e, de repente, deu de cara com coisa mais bela de toda a cidade: Aerolíneas Argentinas. Era o melhor meio para fugir daquela cidade, daquele país. Correu para a loja, mas deu de cara com a porta fechada. Era a hora de sesta. Toda a praça estava deserta. Nenhuma loja aberta, nenhuma alma viva perambulava pela rua. Uma sensação péssima começou a tomar o corpo de Lúcia, uma náusea sem clara explicação, sem origem aparente. Resistiu. Sentou-se no centro da praça e esperou uma hora, mais uma e mais outra até que a loja, enfim, reabriu. Lançou-se ao seu interior e implorou a fuga mais rápida daquele lugar demoníaco. Foi informada que a próxima viagem Assunção-Buenos Aires seria apenas no dia seguinte. Desolada e sem esperanças vagou pela cidade. Para não perder a viagem, conheceu museus e pontos históricos, sem ser jamais abandonada pelo sentimento de angústia que lhe tirava a concentração.

Voltou ao hotel, dormiu mal e correu para o aeroporto. Apesar do dinheiro extra que estava gastando, era o melhor negócio dos últimos vinte e um anos. Sentiu o maior alívio que alguém pode sentir quando chegou à Argentina. Esqueceu-se qualquer rivalidade entre o país e sua terra natal e abraçou com carinho a cidade que bem a acolhia. Na chegada ao hotel, contou cada centavo, separou o dinheiro da volta a comprou as excursões que seu bolso alcançava. Dura que nem uma porta, ela tomava o desayuno e guardava as sobras para o restante do dia. Geléias, torradas, biscoitos, manteiga: tudo o que coubesse na bolsa era petisco para mais tarde.

Na primeira excursão que fez, ouviu a palavra restaurante, e, desesperada correu ao programa. Era realmente um restaurante, provavelmente iriam jantar em algum lugar. Quando a saliva tomava a boca, lembrou-se de que não tinha mais dinheiro. Que vergonha! Teria de ficar no ônibus, enquanto todos celebravam a gula. Ou pior: sairia do ônibus como se tudo estivesse bem e sumiria até a hora da volta. Quando, triste, já se preparava para dar uma boa desculpa, ouviu um compatriota perguntar:
- O que é cena?
O guia argentino não entendeu o sentido da pergunta. Cena é cena, o que mais haveria de ser?
-Aqui diz cena.
Foi então que um espanhol com antepassados lusitanos esclareceu, com um português quase irreconhecível:
- Cena é jantar.
Lúcia consultou o programa e lá estava: cena. O jantar estava incluído no pacote. Respirou aliviada. Num pulo, saiu de seu lugar rumo ao restaurante. Era o lugar mais lindo de toda a América do Sul. Garçons desfilando, talheres pesados, lustres de cristal, espelhos imensos (que deixariam a Confeitaria Colombo com inveja), uma infinidade de copos, facas, garfos e colheres. A comida era deliciosa, com o requinte da culinária francesa e o exagero dos pratos italianos.

Maria Lúcia “a-do-rou” Buenos Aires. Conheceu tudo o que se pode conhecer. Dançou tango, conheceu La Boca, o centro da cidade, o Rio de la Plata e descobriu que quando se flerta com o guia pode-se ir a qualquer passeio. O argentino Marcelo a levava a todo canto. Tudo ia bem, até que na última noite ele resolveu dançar mais juntinho e se insinuar. Tudo acabado, então. No quarto dia, depois de uma adorável estada e um passa fora, a jovem deixou o país.

Num ônibus leito branco com um “Pluma” azul na lateral, ela foi de Buenos Aires a Porto Alegre, de onde nem saiu da rodoviária. De lá mesmo, pegou outro ônibus para Blumenau, Santa Catarina. A irmã do meio, Maria da Conceição, morava na cidade da Oktoberfest – que ainda não era a cidade de Oktoberfest, pois o festival só surgiu após as enchentes de 1983 – desde o casamento alguns anos antes e tinha duas filhas pequenas, Marta Helena e Valéria Beatriz. Ao chegar na cidade tomou um táxi e ordenou:
- Por favor, senhor, vá à Vila Formosa, próximo à Alameda – na porta da casa a irmã já esperava com o dinheiro da corrida do táxi na mão, já que Lúcia estava zerada.

Em Blumenau tudo era bom. Tinha a irmã, o cunhado, as sobrinhas, comida boa, café colonial e nenhuma preocupação. Ficou uma semana e pôde celebrar o Natal com Maria da Conceição. Ceia de Natal, mais comida. Ganhou dez quilos que levou quase um ano para perder.

Com o fim das férias, viu-se obrigada a voltar para casa. A irmã pagou-lhe o avião da volta e lhe deu um dinheirinho extra para qualquer eventualidade. Do Santos Dumont, tomou um táxi até a Tijuca. Deu um beijo na mãe Lalieta e na irmã Íris. Antes de arrumar qualquer coisa, buscou o diário na gaveta da cômoda. Em vez dos detalhes de tal aventura, escreveu apenas:
“Visitei a cidade de Assunção. Fiquei 24 horas porque não consegui sair antes”.

Em memória de Dona Lúcia (1956-2008), minha mãe, que me ensinou a chorar

terça-feira, 16 de setembro de 2008

Lacunas


Os livros, aos poucos, iam sumindo das prateleiras. Antes que se pudesse perceber, as fotos desapareciam. Na agenda telefônica, os nomes clareavam. Com o tempo, desapareceriam as cores da parede, o cheiro da comida no forno, a sensação de beber água. A cadeira confortável desapareceria e Lúcio seria arremessado ao chão, despencando entre lacunas de um passado que, agora, parece não mais existir. Ele já foi um homem comum, habilidoso com as letras, ativo o suficiente para que a notícia da doença chocasse a todos que o conheciam. Hoje, ele não passa de uma caricatura sem graça do homem majestoso que já foi. Carregado pela casa, cruzando os cômodos nos braços de alguém, ele nem tem noção do que se passa. Fica apenas observando, com os olhos opacos, sem expressão, o mundo ao seu redor. Pessoas de quem ainda se lembra, parentes que parecem com outros parentes. Um mundo em branco que não poderá ser reescrito.

Há muitos anos, Lúcio foi um exemplo. Era capaz de puxar pela memória os eventos mais distantes. A família o desafiava a lembrar o dia em que o primo nasceu, onde foi o casamento da irmã, o que foi servido na festa dos pais. Não havia conhecimento que não estivesse ao seu alcance. Além da boa memória, também era muito inteligente. Sabia o que tinha aprendido na escola quando garoto. Até de química, a disciplina que mais detestava, era capaz de desenhar uma cuba eletrolítica e mencionar elementos químicos e seus respectivos números. Graduou-se em Direito, por pressão da família, mas realmente gostava de ser advogado. Defendeu diversas causas, com a maestria de alguém que deveria ter sido ator. Gesticulava, fazia pausas, falava com graça. Abandonou a advocacia, somente, quando decidiu ser juiz. Nesta mesma época, escreveu alguns livros de poesias e chegou a receber prêmios por eles. Criou uma grande família. Casou-se apenas uma vez, com Marlene, com quem teve quatro filhos. Viu cada um deles crescer, deu boa educação, ensinou diversas línguas, foi o mais presente que poderia ser. Quando todos ficaram adultos, ele constatou o bom trabalho que fez. Os filhos lhe deram, até agora, três netos. Um ainda é tão pequeno, que nem aprendeu a falar. Morou com a mulher em seu pequeno apartamento por quase cinqüenta anos. Sofreu quando ela partiu, deixando-o sozinho nesta vida. Os filhos ainda tentaram animá-lo, alegando que era o melhor, que ela estava bem, que ele deveria ser forte. Lúcio superou a morte de Marlene e se reergueu. Já aposentado, voltou a trabalhar, escreveu mais livros, viajou pelo mundo, passou seu conhecimento para mais pessoas. Onde quer que fosse, Lúcio era tido como um líder, alguém pelo qual nos deixamos guiar. Foi grande entre os colegas, imenso entre os amigos, majestoso em casa. Era capaz de fazer qualquer pessoa superar os próprios obstáculos. Foi sedutor quando solteiro, fiel quando casado. Forte, destemido, adorava se aventurar, experimentar coisas novas. Mantinha contato com todas as pessoas. Era o único do edifício que cumprimentava a todos os vizinhos. As mulheres reclamavam com os maridos que queriam que eles fossem um pouco mais parecidos com Lúcio.

Deitado em uma cama que não atende às suas necessidades, ele sente a comida entrar pela sonda nasogástrica. Não há como se queixar. De tempos em tempos alguém aparece para ver o que está acontecendo. Muitas vezes ele nem percebe. Apenas fica ali, deixando-se levar pelo reflexo do sol na parede branca, tentando compreender o que é aquilo. Em posição fetal, com o corpo extremamente debilitado, esquálido, ele em pouco lembra a figura que foi. O rosto fino, de bochechas fundas, faz as pessoas pensarem no que se passa com ele. Nem mesmo os olhos – olhos de estátua, pétreos, imóveis – podem denunciar a claustrofobia de estar dentro daquela carcaça. Sem pensar, ele apenas observa o tempo passar e a morte dar mais um passo.

Lúcio nasceu pobre, estudou com sacrifício e conseguiu conquistar seu espaço. Ganhou algum dinheiro, que empregou no bem estar de quem gostava. Para a mulher, deu tudo o que podia. Ela nunca trabalhou e nunca faltou nada para seu conforto. Ele dizia, que se preciso fosse, trabalharia vinte e quatro horas por dia para que ela fosse uma pessoa feliz. A garra e a alegria do pai fizeram com que, dos quatro filhos, três decidissem seguir seus passos como advogado. Apenas a mais nova quis algo diferente. Optou pelo teatro e foi claramente apoiada pelo pai, orgulhoso da ousadia da menina.

A aposentadoria que ganha é o suficiente para atender às necessidades. Ele hoje depende da ajuda dos filhos para tudo. Quando morrer, não vai deixar nada, exceto o exemplo que tentou passar no decorrer de sua vida. Foi exemplo como filho, como marido, como pai, como pessoa. Não havia nada que ele não fizesse rindo. Se divertia com mergulho submarino ou com palavras cruzadas. Poderia dançar em um restaurante chileno ou num bingo de igreja. Jamais alguém conhecerá um homem tão feliz e tão admirado quanto Lúcio. A doença foi surgindo aos poucos. No princípio, parecia implicância. Depois, loucura. A família só descobriu o mal quando já era tarde. Todos já haviam dito coisas das quais se arrependeriam, atitudes que não poderiam ser ignoradas. Lúcio foi regredindo. Deixou de ser forte, deixou de ser Lúcio, deixou de ser gente. Chorava por qualquer motivo, repetia as palavras, deixava de falar. A casa foi ficando triste, pesada, as paredes foram ficando cinzas e agora estão brancas e em pouco tempo nem paredes serão. Lúcio não pode mais andar, não pode mais falar, não consegue engolir. A posição em que fica lhe trás feridas por todo o corpo. Não fala, não se expressa. Só respira porque é involuntário.

Em alguns anos de vida, ele foi casado com alguma mulher, teve alguns filhos, alguns netos. Trabalhou em algum lugar, gostava de algumas coisas, era alguém. Agora, as lacunas roubam tudo o que ele foi e por mais bravo que tenha sido em vida, as pessoas apenas o lembrarão como essa lacuna vegetativa que agora repousa pacífica sobre um passado glorioso. Seus olhos são fechados quando o mundo adormece e fica apenas a saudade, que aos poucos dará lugar a outra lacuna que só trará insegurança e tristeza quando seu nome for invocado.

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

No escritório

Sentado em sua mesa, o chefe a observava. A secretária arrumava a sua mesa cheia de quinquilharias. Cantarolava alguma coisa enquanto levantava os bibelôs para tirar a poeira da mesa. Arrumava o porta-lápis, alinhava o mata borrão e rasgava os papéis velhos como quem assiste a um filme de classificação livre. O sorriso nos lábios, o brilho no olhar, a alegria em fazer as coisas. Todos os dias, alguns minutos antes do almoço, a secretaria começava seu ritual.

De rituais, a mulher estava cheia. Começava na hora em que chegava. Entrava calmamente na repartição, colocava a bolsa sobre a cadeira, cumprimentava a todos os presentes e colocava um pedaço de bolo na mesa do chefe. Só então ia bater o cartão. De volta à mesa, ela se sentava, colocava meticulosamente a bolsa sobre um tapetinho debaixo da mesa, levantava um pouco a cadeira, depois a abaixava, tendo a certeza de que estava no mesmo lugar. Da bolsa, ela tirava um estojo com mais de uma dúzia de canetas. Todas — cada uma de uma cor — eram alinhadas sobre a mesa. A secretária escolhia qual iria usar no dia e depositava as demais no porta-lápis. Estalava os dedos e recostava-se, sempre com aquela cara de quem está prestes a assobiar.

O segundo ritual era quando o chefe chegava. O homem, muito ocupado e, geralmente, mal humorado, ia direto para a sala. Não passava mais de um minuto e a secretária chegava sorrindo, perguntando se ele havia gostado do bolo. Não houve uma só vez em que ele já tivesse provado o quitute quando a mulher entrou. A secretária dava seqüência à ladainha perguntando pela esposa do patrão, pelas duas filhas e pelo cachorro, que ela adorava, porque tinha o mesmo nome que seu marido. Cantarolando, ela pegava o casaco e o chapéu do chefe e colocava na arara. Voltava para a mesa com a mesma cara satisfeita que tinha chegado.

Assim que o trabalho começava, vinha o novo ritual. A secretária pegava todas as pastas e arquivos que ia usar no dia e dispunha todos em sua mesa, numa pilha. Depois, alinhava-os à esquerda. Com uma régua, afastava seus títulos em cinco centímetros, para que soubesse onde cada pasta estava. Tirava um pequeno bloco da bolsa, onde fazia as pequenas anotações, sempre muito rabiscadas. Passado algum tempo, ele tirava um caderno azul da gaveta, que tinha um desenho na capa feito pelo filho mais novo. A secretária passava tudo a limpo com o máximo capricho possível, fazendo pequenas anotações de rodapé. Só então, o trabalho ia para o computador. Quando estava lendo qualquer coisa, a mulher batia com a tampa da caneta na mesa. De dentro da sala, o chefe não conseguia fazer mais nada.

Dez e trinta era a hora de ir ao banheiro. Não era por volta de dez e trinta, mas na hora exata. O organismo da secretária funcionava como um relógio, tão sistemático quanto ela mesma. Ela se levantava, colocava a cadeira de volta no lugar, ajeitava as sandálias nos pés e saía. Na volta, puxava a cadeira, batia com a mão no acento e acomodava-se. Da gaveta, ela tirava uma loção, que esfregava nas mãos por alguns minutos. Quando terminava, dava uma olhadinha para trás, para a sala do chefe, para garantir que estava tudo em ordem.

Durante o dia, a secretária fazia três ligações. A primeira era de manhã bem cedo, um pouco depois de chegar. Ela acordava os filhos, lembrava que estava quase na hora de ir para o colégio e que eles deveriam escovar os dentes e tomar banho. Antes do almoço, ela ligava pra o marido, certificando-se que ele comeria algo saudável, que não atacasse sua úlcera. Antes de ir embora, ela fazia a última ligação, interurbana, para a mãe que morava no interior, avisando que estava saindo do trabalho e que ligaria assim que chegasse em casa para por a conversa em dia.

Na hora do almoço, a secretária era a única que não descia para o restaurante da empresa. Comia ali mesmo, sobre sua mesa, alegando que tinha muito trabalho e pouco tempo a perder. Tirava da bolsa uma toalha branca, bordada por ela quando estava grávida, e estendia sobre os arquivos e pastas. Tirava de uma sacola um prato de louça, talheres com cabo de madeira e duas embalagens plásticas. Da primeira, a secretária tirava a salada, sempre a mesma, com alface, cenoura, tomate e repolho. Jogava um pouquinho de sal e comia. Em seguida, abria a segunda embalagem, onde sempre estava uma panqueca de carne de soja moída, arroz integral e um ovo cozido. Quando terminava, guardava as embalagens, dobrava a toalha e seguia sorridente para a copa, onde lavava os talheres e o prato.

De sua sala, o chefe observava todas as manias da secretária, irritado com os sorrisos e a aparente felicidade, mas sem achar um erro sequer. A mulher trabalhava muito bem, era competente, incentivava outros funcionários e fazia bolos maravilhosos. Por mais que ele estudasse algo para reclamar, o único problema dela era estar sempre contente. O patrão inventava coisas loucas para a mulher fazer, mandava-a a outros andares a toa, dava serviço dos outros e a secretária simplesmente piscava o olho esquerdo e voltava ao trabalho. Nem o mais cáustico dos obstáculos impedia aquela mulher de sorrir. O carrancudo patrão começou a levar a questão para o lado pessoal. Resolveu que atrapalharia a todas as cerimônias diárias da secretária.

Seu primeiro ato foi retirar o telefone da mesa da mulher. Quando um colega ofereceu seu celular para que ela acordasse os filhos, a mulher respondeu: "não precisa, obrigado, eles já estão bem crescidinhos, já podem se levantar sozinhos", e riu satisfeita e orgulhosa. Depois do almoço, a secretária passou a escrever cartas para a mãe, incapaz de ligar para dar um alô. Em vez de se abalar, ela apenas mudou suas manias. Ainda insatisfeito, ele proibiu que os funcionários comessem no escritório. Ou desceriam para almoçar, ou seriam obrigados a jejuar. A secretária não desceu. Ficou lá em cima, trabalhando no tempo vago. Se não fosse suficiente, ela ainda se orgulhava da nova silhueta, alguns quilos mais leve, resultado dos dias sem almoço. A secretária cantarolava sorridente. A questão foi ficando mais séria e o chefe decidiu desafiar o organismo da mulher. Determinou que todos os dias, por volta das dez e vinte, ela deveria organizar os arquivos de sua sala. O trabalho durava, pelo menos, meia hora, o que impedia que a secretária fosse ao banheiro na hora de costume. Sem se abalar, ela habituou-se à falta de horário para suas necessidades.

Sem se dar conta da guerra que travava com o patrão, a mulher foi vencendo todas as batalhas. Passo a passo ela demarcava seu espaço na empresa. Aos poucos, o chefe teve que recuar. Como medida desesperada, resolveu que a mandaria embora, pelo simples fato de não poder conviver com pessoa tão alegre. Passou o dia todo planejando o ato, o que diria, o que faria. Alguns minutos antes da saída, ele chamou a secretária em sua sala. Ela pediu um momento, arrumou sua mesa, ajeitou a cadeira e foi atendê-lo. No meio do caminho, deu uma topada na porta e deixou escapar um “putaqueopariu”. Entrou na sala séria, irritada com o susto e com a reação. "O que foi, senhor?", ela perguntou carrancuda. O patrão pôs as mãos atrás da cabeça e abriu um largo sorriso, quase uma gargalhada silenciosa. "Não foi nada", respondeu, "nada mesmo".

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

Terça-feira


Havia algo de novo, mesmo que todo ano fosse igual. Aquela menina eu não conhecia, ou conhecia?, era difícil dizer. Ela se protegia com uma máscara branca sobre a face, mas lá estavam seus olhos verdes me espiando de longe. Por mais que eu tentasse manter a concentração, aquela moça não deixava. Se aproximava e se afastava e voltava a se aproximar. Fiquei completamente hipnotizado com seus quadris, mas nada fiz senão olhar. E ela devagar - a cadência era perfeita, pode acreditar - me chamou para um canto e fez que não era com ela quando eu fui atrás. A verdade é que por aquele par de olhos, que escapavam do rosto alvo imóvel, eu andaria toda uma avenida.

- Qual o seu nome?, gritei no meio do mar de gente e das ondas de som do salão.
- Para quê?, rebateu.
- Seu nome... Eu quero saber.
- Hoje não é dia para isso.

Era verdade. Um ano tem cerca de cinqüenta e duas terças-feiras, mas em uma o mundo era outro. E nem estou falado do mundo todo, só de um pedacinho perdido ao lado da Guanabara. Estava na hora de evoluir, mesmo se ela não quisesse. Fui me chegando e quando a minha mão estava quase nas mãos dela, fez-se uma chuva colorida que me cegou por um instante. E lá estava ela de volta ao meio do salão.

Minha deixa... Dois para lá, dois para cá, me dá chupeta, mas que calor. Ainda que tímido, cheguei tão perto que já dava para sentir o perfume exalando de seu pescoço. Havia um bom punhado de purpurina, que lhe brilhavam a pele macia que eu pude sentir quando me aproximei e deixei meu corpo levemente tocar o dela. Marchamos um bocado, coxas nas coxas, mas ela nem me olhava. Pelos olhos apertados, eu vi que ela ria e ria de mim.

- Eu te conheço?, indaguei.
- Essa não é a questão!
- E qual é?, deixei escapar trêmulo e curioso.
- Se você quer me conhecer…

Ah, ela sabia bem qual era a resposta, nem perdi meu tempo montando uma sentença. O problema estava bem diante de mim, me separando dela. Uma fina camada de plástico que nos afastava de todas as formas possíveis.

Ela mexia e descia e requebrava, enquanto seus cabelos dourados voavam pelo salão tal serpentina. Era preciso força, botar o bloco na rua. Me vesti de uma persona que não era eu, agarrei seu braço e lá foi a máscara embora. Ela tinha um narizinho perfeito, maças rosadas e covinhas nas bochechas. Os lábios eram únicos, o inferior carnudo, o superior mais fino. E vermelhos, muito vermelhos.

Quando a máscara voou, ela levou um susto. Ficamos assim, sérios, parados no meio da correnteza de tanta gente. Eu admirando, ela sendo admirada. Foi quando ela percebeu que eu não tinha palavras. Apenas sorriu e se virou e eu sempre atrás dela, não importa para onde.

Na perseguição que ela tanto gostava, acabei ficando para trás, quando um trenzinho de mais de vinte vagões ficou no caminho de minha caçada. A harmonia desandou e eu fiquei claramente nervoso. Tentava vencer a folia, transcender a barreira que se construía cada vez mais forte à minha frente. Quando olhei para o lado, lá longe, reparei que o trem ganhava vagões e mais vagões. E eu ainda inerte, esperando minha vez de passar.

Ela era o destaque, não tenha dúvidas. Com os pés no chão (tinha uma belíssima tornozeleira, tive tempo de notar) ela chamava atenção, e não só a minha. Lá de longe, um gatuno, um pirata, apareceu para saqueá-la. Tentei correr para o resgate, mas de nada adiantou. Ela estava muito distante, inalcançável.
- Pare!, gritei, mas a cabeleira do Zezé abafou meu apelo.

Pensei que ela seria forte, que lutaria por mim, mas a quem eu estava enganando, apenas um bobo cortejando uma princesa. O perverso me olhou com um olho só e deu uma gargalhada, antes de desferir seu golpe mortal. Mas quanto iria tentar enganchá-la, lá estava ela, de volta à dança frenética e ao rebolado fulminante.

Seus passos - as solas dos pés pretas, mas ainda assim lindas - a trouxeram de volta para mim. Ainda fazia seu charme, olhando para lugar nenhum, fingindo que apenas a bateria a empolgava, mas foi só o vilão chegar para que ela chegasse mais perto de mim e se deixasse perder em um gostoso abraço.

Confesso que passei longos minutos torcendo para que o nefasto desaparecesse, mas agora, com a dama acolhida em meus braços, achava até bom que ele continuasse ali. Ficamos um minutinho fitando o outro, quase sassaricando e nos entregamos a um beijo suado.

Aquela menina… Vou te dizer, aquilo sim era beijo. Em quesito de calor, ela tinha nota dez. Não sei quanto tempo durou. Trinta segundos. Uma eternidade, talvez. Mas logo depois veio outro. E mais outro. E um que valia por dez. Era a apoteose, e foi quando eu perguntei:

- Por que não me diz o seu nome afinal? Me diga quem é você!
- Nomes… Deixe os nomes para amanhã. Me chame de Colombina, eu sou a porta-estandarte, sou a passista, a mulata. Eu sou só uma alegoria, ela disse, só uma fantasia.

E foi perfeito, até que tudo virou cinzas.

segunda-feira, 11 de agosto de 2008

Antiquário

O homem parou por alguns minutos na frente da loja, repensando se deveria seguir o conselho do amigo. Que mal faria?, ele pensava. Um amigo conseguiu fama e dinheiro e atribuía tudo à loja em questão. Mesmo assim, se recusava a dizer quais artigos eram vendidos. “Você precisa ir até lá para crer”, disse. O homem estufou o peito, criou coragem e entrou.
A loja era realmente bonita. Alguns lustres de cristal, canapés franceses, uma penteadeira e um divã. Mais parecia um quarto mal decorado do que uma loja, mas mesmo assim tinha certo charme. Um senhor de longas barbas brancas o recebeu e o indicou o caminho até uma escrivaninha. Todo o lugar era coberto por papel de parede, das mais diversas cores e estampas.

- Em que posso ser útil?, interrogou o lojista.
- Na verdade, eu não sei.
- Não seja tímido – disse o velho enquanto limpava os óculos em um antigo lenço com monograma. – Pode me dizer o que veio procurar.
- Não sei ao certo. Vim por indicação de um amigo. Ele disse que conseguiu sucesso e fortuna no seu estabelecimento.
- Sim, me lembro. Mas isso não é garantido. É o que você quer? Dinheiro? Sucesso?
- O que mais eu posso querer?
- Não sei. São inúmeras as possibilidades... Por que não me diz o que você já tem?
- O que eu já tenho?
- Sim. Me conte o seu passado.
- Não lhe entendo – retrucou o homem.
- Seu passado. Afinal, somos uma loja de passado.
- Me perdoe, senhor, mas cada vez entendo menos.
- Compreendo, compreendo. Na certa seu amigo não lhe disse qual era a nossa matéria-prima. Somos vendedores de passado. Fique a vontade, dê uma volta pela loja. Creio que vai acabar encontrando algo que goste.

“Um antiquário?”, indagou-se o homem. “Como meu amigo conseguiria fama e riqueza em um antiquário?”
Deu uma volta pelo estabelecimento, ainda que contrariado. Olhou alguns bibelôs e porta-retratos, mas o que mais lhe impressionou foi o vasto acervo de fotos.

- Vejo que encontrou nosso tesouro – comentou o velho, mais empolgado do que deveria estar. – Vê algo que lhe interessa?
- Como assim? Não consigo entender onde quer chegar...
- Esta aqui, por exemplo – divagou o vendedor. Em suas mãos, o retrato de uma mulher muito bonita sentada em uma cadeira de praia. – Posso dizer que te serve, é o seu número. Não me entenda mal, não estou sugerindo que seja a mulher, mas ela poderia ser sua irmã. Ou melhor, uma ex-namorada.
- Onde quer chegar, senhor.
- Leve a foto. Ela pode lhe servir.
- Mas é uma mulher que eu nem conheço.
- Temos outros exemplares. Fotos de grupo; podem ser seus amigos. Um cavalo; um exótico animal de estimação. Uma casa; quem sabe não foi onde passou a infância?
- Vocês vendem fotos para eu dizer que são minhas?
- Nada disso... Nosso comércio apenas começa com as fotos. Esta aqui, se me permite, é valiosíssima – disse o vendedor com uma foto de um casal com um menino na Itália. – Além da foto, podemos conseguir as passagens de avião da época, reservas em hotel... Com uma gorjeta gorda, até consigo um globo de neve com o Coliseu.
- Uma viagem falsa da minha infância?
- Não. Será muito verdadeira. Note, uma vez, vendi um casamento com uma chinesa para um senhor que mora nas redondezas. A história era tão boa que um dia ele me encontrou na rua e me contou sobre a lua de mel. Acho que até ele já acreditava no falso casamento.
- Não quero uma viagem de mentira!
- Se levar a moça na cadeira de praia, lhe dou de brinde uma carta apaixonada de despedida. E com a casa antiga, lhe apresento a um rapaz que confirmaria que vocês foram vizinhos.
- Desculpe, senhor. Acho que foi um engano ter vindo aqui.

O homem deu as costas ao vendedor e partiu para fora da loja. Já fazia sinal para um táxi quando, sem querer, olhou a vitrine. Lá, uma foto desbotada lhe chamou a atenção. Voltou correndo para o estabelecimento e indagou ao velho:
- E quanto àquela da vitrine?
- O bebê?
- É... Eu sou divorciado e nunca tive um filho... Talvez fosse uma boa idéia.
- Claro. Não está entre os itens mais vendidos, mas quem comprou uma sempre volta para olhar as novidades. Um dos nossos clientes foi tão bem sucedido que até conseguiu o próprio filho. E já passava dos sessenta, o pobre diabo. Sabe o que ele fez? Me deu uma fotografia do menino dele. Mas este não é o caso. Se quiser a foto, tenho um pacote completo. Chupeta, certidão de nascimento, teste do pezinho, tudo. E como fui com a sua cara, te vendo um álbum com vinte retratos por um preço especial. No final, tem dois telefones. Se ligar para eles, um casal confirmará que foram os padrinhos da criança.
- Mas o que aconteceu com o menino? O que ele faz hoje, quantos anos tem?
- Isso depende do senhor. Nós vendemos passado, não presente e futuro.
- Está bem, eu penso em algo. Quanto é?
- Depende... Qual a forma de pagamento?
- Cartão de crédito.
- Lamento, senhor. Só aceitamos cruzeiro, cruzado e contos de réis.

terça-feira, 5 de agosto de 2008

Biografia


Faltava o final, lhe disse seu editor. O escritor decidira redigir sua biografia por acreditar que já estava muito perto da morte. Beirando os oitenta anos, muito do que se passara com ele, já não tinha mais testemunhas, a não ser o próprio escritor. Foi para sua casa de praia e durante dois meses contou toda a sua vida: a infância difícil, as brigas com os pais, a fuga de casa, o aprendizado com velhos professores, namoros, o casamento, consagração na carreira, abandono dos filhos, velhice. Era um calhamaço de mais de setecentas páginas, mas que não tinha fim, de acordo com o editor.

“Não me leve a mal, meu caro, mas da metade em diante o livro é totalmente morto. O último clímax é o seu casamento, e isso aconteceu na página quatrocentos e quatorze. Nem a morte de sua esposa foi um evento memorável. Não é possível que você não teve nenhum caso, uma experiência religiosa que mudou sua vida ou foi roubado pelo antigo empresário”, reclamou o editor. A verdade é que, muito caseiro, a vida do escritor nos últimos anos se resumia a ler, comer e dormir.

Determinado a dar um desfecho glorioso à sua obra então recusada, o escritor estava disposto a dar cabo da própria vida. Foi à farmácia, comprou alguns comprimidos de tarja preta com receita falsificada e sentou à máquina de escrever. Lá, descreveu como tomou cada uma das pílulas, como rolou pelo chão em agonia, como viu sua vida passar diante dos olhos e como só foi encontrado quase uma semana depois pela arrumadeira. Ao colocar o ponto final no texto, tomou seus comprimidos e apagou. Acordou algumas horas mais tarde no hospital com uma úlcera.

Ao retornar para casa, tentou bolar um meio mais eficiente de morrer, afinal não poderia correr o risco de piorar sua condição gástrica no caso de novo fracasso. Tentou enforcar-se, mas a corda rompeu. Pensou em um acidente de carro, mas não sabia dirigir. Cogitou um tiro na cabeça, mas tinha horror a armas de fogo. Tentou cortar os pulsos, mas desmaiou ao ver a primeira gota de sangue. Contratou um assassino de aluguel, mas este acabou preso antes de executar o serviço. Ao final de cada tentativa, as páginas recém escritas com o final apoteótico e a vida lhe passando diante dos olhos antes da derradeira escuridão eram devidamente descartadas.

Sem solução para o fim do livro, desistiu. Naquela mesma noite, deitou-se para dormir e acordou apenas para dar seu último suspiro, por volta das cinco da manhã. O corpo foi encontrado pela arrumadeira. O livro, sem conclusão, jamais foi publicado. E o pior: o escritor jamais viu sua vida passar diante de seus olhos.

quarta-feira, 30 de julho de 2008

Bom dia


- Consultório da Doutora Carolina.
- Bom dia.
- Bom dia, Paco.

Zefa olhou no relógio. Nove horas, como de costume. Todos os dias, verão ou inverno, chovendo ou fazendo sol, ela recebia a mesma ligação. Há três anos. Um homem chamado Paco ligava, dizia “bom dia”, aguardava a resposta e desligava. Nas primeiras vezes, ela chegou a achar estranho.

- Consultório da Doutora Carolina.
- Bom dia – disse uma voz trêmula e um pouco rouca.
- Bom dia. Em que posso ajudar...?

O telefone já havia sido desligado. Zefa chegou a comentar com algumas pacientes a estranheza daquela ligação. O homem não se identificou, não disse o que queria, não pediu informação. Certamente, não seria engano. Ele não pediu desculpa, não disse que ligou para o número errado. Disse apenas “bom dia”.

No dia seguinte, nove em ponto, o telefone tocou novamente e, novamente, repetiu-se a cena. Lá pelo quinto dia, Zefa já supunha ser o estranho visitante.

- Consultório da Doutora Carolina.
- Bom dia.
- Antes de lhe responder, gostaria de saber o seu nome. Já que vamos nos cumprimentar toda manhã, quero saber para quem respondo.

O homem nada disse. Pelo telefone, Zefa ouvia apenas a respiração, um pouco impaciente. Sem saber ao certo o que fazer, ela apenas disse:
- Bom dia.
E o telefone foi desligado. Qual não foi sua surpresa, quando, na segunda-feira, seu interlocutor se apresentou.
- Consultoria da Doutora Carolina.
- Bom dia.
- Bom dia.
- Meu nome é Paco.
- Prazer, Paco. Eu sou a Zefa.

Assim começou esta estranha relação. Nunca conversaram, não sabiam nada um do outro. A outra única vez em que trocaram mais do que a saudação matutina foi quando Zefa lhe deu seu telefone de casa.
- Paco, não desligue. Vou te passar o meu número pessoal. É que eu só trabalho aqui de segunda a sexta-feira. Você pode querer me ligar no final de semana também.
Dito e feito. No sábado seguinte, Paco ligou para a casa da recepcionista aguardando seu tradicional “bom dia”.

Para paco, a história começou muito tempo antes. Na verdade, assim que ele nasceu. Sua mãe lhe acordava todos os dias com um beijo na testa e um “bom dia” sincero, que lhe alegrava muito além da simples manhã. Nunca precisou de um “boa tarde” ou “boa noite”. O “bom dia” já era completo.

Quando fez vinte e cinco anos, sua mãe faleceu. Foi difícil para Paco, mas ele se adaptou a aprendeu a viver sem a progenitora. Afinal, já estava casado e tinha a esposa para, às nove da manhã, lhe desejar um “bom dia”. Foram bons os anos de matrimônio, mas a mão do destino lhe levou a mulher, largando-o sozinho, sem filhos, sem amigos, sem “bom dia”. Foi nessa época que as ligações começaram. Paco escolheu um número aleatoriamente:
- Alô?
- Bom dia.
- Quer falar com quem?

E ele desligava. Por dias e dias insistiu. Semanas e meses se passaram sem que ele conseguisse de alguém a saudação que tanto aguardava. Havia sempre um “quer falar com quem”, “o que deseja”, “pois não”, outro “alô”. Isso quando não ganhava um palavrão ou batiam o telefone no gancho. Foi escolhendo os números a esmo até que ouviu, do outro lado:
- É o cara do “bom dia” de novo? Por que é que volta e meia você insiste em ligar para mim?

Neste dia, paco decidiu fazer uma lista dos telefones que ligava. Por mais que tentasse, seu esforço era em vão. Pareciam todos hostis ao seu cumprimento. Todos ressabiados, com medo de uma brincadeira, de um trote. Suas manhãs foram tormentos até que ouviu as palavras mágicas:
- Consultório da Doutora Carolina.

Paco já estava sem esperanças. Talvez o mundo fosse um lugar inóspito para um adicto em “bom dia” como ele. Decidiu: se esta moça não responder, eu não insisto mais.
- Bom dia.
O coração gelou por um segundo. Apesar de ter decidido que poria fim aos telefonemas, ainda não sabia qual seria seu destino. Apenas deixaria de ligar ou encerraria todas as suas atividades?
- Bom dia. Em que posso ajudar...?

Em nada.
Já havia ajudado o bastante.
Alívio.
Paco voltou a ligar no dia seguinte e no outro e no outro. Pela primeira vez, continuava a receber respostas. Pela primeira vez, tinha bons dias. Ele chegou a ficar nervoso quando a recepcionista perguntou seu nome. Era uma sexta-feira. Paco passou o final de semana nervoso. Deveria responder? Ele achava melhor não. Não queria ir além daquilo. E se ela deixar de falar? Então, era melhor dizer o nome. Após as devidas apresentações, Paco sentiu que voltava a ter um relacionamento, ainda que virtual.

Para Zefa, as ligações de Paco já faziam parte de seu cotidiano. Tanto que, numa terça-feira, quando a paciente das nove e meia chegou para a consulta e o telefona ainda não havia tocado, ela se preocupou. Na certa, Paco teria dormido até mais tarde. Que nada. Ela esperou a ligação o dia todo. No dia seguinte, a mesma coisa.
No terceiro dia, Zefa arregaçou as mangas e foi à luta. Precisava, a qualquer custo, descobrir o que estava se passando com Paco. Estava doente? Estava viajando? Havia morrido? Havia se matado? Ela arrependeu-se de não ter perguntado o sobrenome dele, ou onde ele morava, ou qual era seu telefone. Tudo que ela sabia era que ele ligava às nove, sem falta, sem atraso.

A recepcionista sacou seu caderninho de telefones e ligou para uma cliente da Doutora Carolina que trabalhava na companhia telefônica. Queria a qualquer custo saber o paradeiro de Paco. A moça titubeou, disse que era ilegal, antiético, que poderiam demiti-la se descobrissem, mas acabou cedendo. Deu o nome completo de Paco, o endereço de seu apartamento, o número de seu telefone. Zefa começou tentando ligar para ele, mas não conseguiu resposta. Após o expediente, foi à casa dele, mas ninguém atendeu à campainha. Com seu nome, visitou hospitais e o instituto médico legal. Ninguém soube dizer o que aconteceu. Zefa se preocupou, como se ele fosse um amigo verdadeiro ou um membro da família. Chegou a perder duas noites em claro, só pensando nas possibilidades. Nunca chegou à uma conclusão.

Muito tempo passou, cerca de um ano, e Zefa acabou enterrando em sua memória as chamadas de Paco. Evitava pensar no amigo invisível, mas quando o relógio avisava que chegaram as nove horas, seu coração batia apertado. Num desses dias, ela estava sentada em sua mesa, na recepção do consultório. O telefone tocou, na exata hora cheia e ela atendeu cheia de esperanças.

- Alô? Consultoria da Doutora Carolina. Zefa falando.
Uma voz de mulher respondeu:
- Desculpa, querida. Foi engano.

Ela baixou a cabeça e fechou os olhos. Quase um ano depois, deixou-se contagiar por um telefonema, que poderia ser de qualquer um. Enquanto lamentava, a maçaneta da porta girou, deixando entrar um senhor de uns sessenta anos. Com sua bengala em punho, ele se aproximou vagarosamente.

- Pois não, senhor? Em que posso ajuda-lo?
- Bom dia.
Zefa reconheceu imediatamente a voz rouca a trêmula.
- Paco?
- Sou eu, Zefa.
- Nossa... Já faz um ano. O que aconteceu com você?
- Muita coisa, Zefa.
- Nossa... Eu estou tão nervosa. Cheguei a pensar que você tinha morrido.
- Eu estou bem, Zefa.
- Você precisa me contar o que aconteceu. Tudo. Tudo!
- Só se você me permitir lhe pagar uma xícara de café.
- Claro, Paco. Eu saiu às quatro da tarde.
- Eu passo para lhe buscar.

Paco se afastou, caminhando para a porta. Zefa sentiu um grande alívio tomar conta de seu corpo. E uma ansiedade louca de que as quatro horas chegasse. Ao se dar conta de um detalhe, ela levantou correndo e foi até o corredor do edifício. Paco já estava entrando no elevador.

- Paco, Paco – ela gritou.
- O que foi, Zefa?
- Eu já ia me esquecendo... Bom dia!
- Bom dia, Zefa. E obrigado.

segunda-feira, 28 de julho de 2008

Zé Maria

Não era sempre que seu José Maria se apresentava com tanta empolgação. Aliás, nem sequer gostava de seu nome. Penou no colégio com tantas brincadeiras envolvendo seu nome do meio. Os meninos debochavam, dizendo “lá vem Maria” toda vez que ele cruzava o corredor. Talvez por isso, ou pela falta de capacidade intelectual, abandonou o colégio sem ter completado a sexta série do ensino fundamental. Depois do colégio, fez bico como entregador de pães para ajudar a mãe a sustentar a casa. Zé Maria tinha sete irmãos, sem falar de uma prima que morava com ele e do avô inválido, incapacitado de qualquer tarefa. Foi aos dezessete que decidiu ser porteiro. “Por vocação e opção”, dizia ele, sem saber ao certo o que era vocação e colocando um “i” entre o “p” e o “ç” de “opção”. Repetia a frase que ouvira de um padre durante um sermão. Padre Saulo. Rezava a maioria das missas na paróquia em que Zé Maria freqüentava com a mãe, o batalhão de irmãos, a prima e o avô inválido. Padre Saulo se envolveu com a esposa de um dos messes durante um retiro em Vargem Grande. Um escândalo. Na época, Zé não entendeu, mas pelo pouco que lembra, tenta refazer a história. Hoje em dia, Padre Saulo é pastor de igreja evangélica. Mudou seu nome para Paulo, simbolizando sua transformação. Vive com a esposa do messe, que não é mais esposa do messe, mas corre à boca pequena que ele sai com outras esposas de outros messes. Pastor Paulo. Ainda outro dia Zé cruzou com ele na rua, mas a longa barba não deixou que o Pastor fosse reconhecido. Isso não vem ao caso.

O caso é que numa bela tarde chuvosa de um mês qualquer do último ano do século vinte (sim, uma bela tarde), uma jovem entrou na portaria de Zé Maria. A portaria não era dele. Era do prédio. Prédio este em que ele só trabalhava duas vezes por semana. Nas terças à tarde e nas quintas de madrugada, quando apenas dormia, com os braços apoiados sobre a escrivaninha. Mesmo assim, Zé dizia “minha portaria” e enchia a boca, como se aquela portaria ocupada por ele doze horas por semana fosse tudo o que ele tivesse. Era quase isso. Além da portaria deste prédio e de mais dois, somando no total cinqüenta e quatro horas semanais de trabalho mal remunerado e sem carteira assinada, Zé possuía um Fiat 147, enguiçado e enferrujado, modelo “mil novecentos e guaraná de rolha”, como dizia para os amigos, sem entender bem o que a rolha tinha a ver com o guaraná, e um quartinho no fundo do barraco da prima, onde também morava o avô inválido, que para a surpresa de todos, ainda estava vivo, beirando o centenário. Sendo assim, era cabível que Zé Maria tomasse aquela portaria emprestada para ele duas vezes por semana, nas tardes de terça e nas madrugadas de quinta.

Retomando a narrativa: a jovem sorria para ele e perguntava por um morador que ele não conhecia, sendo assim, não sabia se estava ou não em casa. A jovem era realmente bonita. Zé não se lembrava de ter falado com muita gente bonita. Conheceu algumas de vista, mas não falou com nenhuma, exceto pelo seu trabalho nas portarias. Ele se lembrava de uma menina, ainda em seu colégio. Pensou em pedi-la em namoro, mas ela era mais uma a engrossar o coro que debochava de seu nome meio masculino, meio feminino. Lembrava, também, da mulher do messe, que agora era mulher do Pastor, se é que ainda era. A mulher do messe era bonita e não era de se admirar que o Padre Saulo caísse de amores por ela. Ou era, tendo em vista que ele dizia nos sermões dominicais que era padre por vocação e por opção. Zé achava a prima bonita, embora evitasse pensar nisso e pedia a Deus para afastar qualquer pensamento libidinoso de sua mente, principalmente algum que sua mãe, agora finada, desaprovasse. A mãe, como já dito, finada, também tinha sua beleza, mas Zé acreditava que ela era bonita apenas por ser sua mãe. Mãe é sempre bonita. Aliás, a mãe de seu vizinho Ronaldo, dona Esperança, também era bonita. Fora estas, as moradoras dos prédios também eram bonitas, mas tinham uma beleza de Zona Sul, onde todas as meninas são bonitas, mas todas as meninas são iguais.

A bela jovem, ainda sorrindo, pois antes ela estava sorrindo, o que a deixava mais bela, insistiu. O nome dele é Luís Maurício, e repetia e dizia “o senhor deve conhecê-lo, tem um carro vermelho e um corte de cabelo moderno”. Mas Zé não prestava atenção nas palavras. Apenas no movimento dos lábios. Admirava a poesia daquele movimento, embora não achasse poesia alguma naquilo ou tivesse lido algum poema na vida. Sabia os primeiros versos do hino do Botafogo e sabia que batatinha quando nasce esparrama pelo chão, mas nunca visualizou a cena da batatinha nascendo e se esparramando pelo chão. Mas isso não importava. O que importava era a jovem tentando manter o sorriso, a simpatia e a educação. Pela cabeça de Zé, não passava moço com carro moderno ou cabelo vermelho. E ela repetia “talvez você não o conheça pelo nome” e Zé só ouvia “o nome” e estufou o peito e pensou nas mulheres bonitas e nos sermões de Padre Saulo e nos meninos do colégio e disse “José Maria”.

Era uma bela tarde chuvosa de um mês qualquer do último ano do século vinte. A jovem sorria e Zé nem mais se lembrava do resto todo e poderia repetir pelo resto da tarde ou até a bela jovem ir embora: “José Maria. Meu nome é José Maria”.

segunda-feira, 21 de julho de 2008

Ainda um menino


Ainda ontem achei debaixo da cama algo que tinha perdido há muito tempo. Já nem me lembrava direito que era meu; poderia ser de qualquer um. Estava empoeirado, meio amassado e até cheirava mal. Era o meu medo de escuro. Decidi usá-lo outra vez, afinal no passado ele teve certa utilidade. Me lembro que minha mãe ficava do meu lado, sentada na beirada da cama, cantando e lendo enquanto eu não adormecia.

Quando minha mulher viu, pôs-se a rir. “O que um homem deste tamanho vai fazer com medo de escuro? Você vai ser a piada da repartição.” A verdade é que quando a noite veio e eu precisei de um abraço apertado para me acalmar e dormir, ela não achou tão ruim assim.

No dia seguinte, vasculhei armários, gavetas velhas, malas de viagem, qualquer canto em busca de um fragmento perdido de minha inocência. Entre algumas roupas antigas, achei a capacidade de fantasiar que havia perdido na adolescência. Meus filhos riram de mim, com o lençol amarrado no pescoço e a cueca por cima da calça, gritando que era um super-herói e podia voar. Mas logo, lá estavam eles, rolando na grama do jardim comigo, num duelo mortal entre piratas e alienígenas.

Numa prateleira da sala, achei minha curiosidade. Estava achatada, apertada dentro de um livro antigo, mas ainda dava para usar. Vesti e fui correndo para a casa da minha mãe. Perguntei como ela tem passado, o que tem feito de bom, como andam suas amigas, a quantas anda sua saúde. Mesmo surpresa, ela não perdeu tempo; passou toda uma tarde me contando cada detalhe de seus dias mais recentes.

Foi então que eu me lembrei de uma caixa. Uma velha caixa que eu guardava no alto do armário. Ela estava vazia há muitos anos. Foi dentro dela, ainda um menino, que encontrei a maturidade. Foi dentro dela que consegui a coragem para procurar emprego, que achei a responsabilidade para me casar, de onde tirei a força para criar dois filhos. Olhando para a caixa, tirei meu medo de escuro, minha capacidade de fantasiar, minha curiosidade infantil. Tampei e guardei de volta em cima do armário. Minha família nunca notou a diferença e nunca vai notar. Se algum dia eu precisar, minhas relíquias estarão me esperando muito bem guardadas, mas por enquanto eu tenho tudo o que preciso.

domingo, 20 de julho de 2008

A vida é uma campanha publicitária de cerveja


Sentado no bar, com os amigos de sempre, Adalberto pensava. De um segundo para o outro, tinha perdido completamente a atenção na conversa. Mergulhava novamente em seu pensamento mais freqüente: uma frase de impacto. Desde sempre ele ouvia as frases que seus amigos diziam e era incapaz de dizer umazinha sequer. Deu-se conta, pela primeira vez, em um jantar em sua casa. A ocasião era o seu aniversário. Estavam lá os mesmos de sempre: Marcos, que era seu amigo desde a infância, Gomes, reclamando feito um velho, e o gordo que sempre usava camisas listradas na vertical – uma tentativa desesperada de parecer mais magro.

Adalberto passara toda a tarde preparando a comida e a sobremesa. Aos amigos, coube unicamente trazer a bebida. Isso eles bem sabiam fazer. No caminho, passaram em um supermercado e encheram o carrinho de latas de cerveja, umas garrafas de cachaça e um galão de vinho, que era para acompanhar a comida. Era bebida suficiente para um churrasco de trinta pessoas, mas pouco para os três amigos de Adalberto.

Se seus amigos tinham o costume de citar frases, ele nunca tinha notado. A primeira que ouviu, saiu da boca de Gomes. A frase foi antecedida por um “é como dizia Manuel Bandeira”, e pronto. Adalberto não se lembra da frase. Nunca lembrou. Talvez nem a tenha ouvido no dia. Nem sabe o que foi dito em seguida. Ele começou a escavar sua mente e chegou à conclusão de que nunca soube dizer uma frase.

Geralmente, as citações eram famosas. O gordo era o que mais clamava os imortais. E de todos os gêneros e correntes. Era um tal de “de acordo com Sartre”, “já dizia Fernando Pessoa”, “citando Drummond”, “parafraseando Santo Agostinho” e tantos outros que nem podem ser lembrados por Adalberto. O maldito gordo sempre tinha uma frase na manga. Mas o gordo tornou-se previsível.

Um belo dia, Adalberto notou uma frase de Clarice Linspector em meio às comemorações do aniversário de casamento de Marcos. Adalberto, que era o maior fã das frases, percebeu que, pelo terceiro ano consecutivo, a frase era dita no aniversário de casamento de Marcos. Depois disso, o perspicaz Adalberto reparou que as frases se repetiam nos mesmos dias, no decorrer dos anos. A culpa era de uma agenda, que o gordo de camisa listrada sempre carregava debaixo do braço, tal uma bíblia.

Aliás, a Bíblia Sagrada não era poupada pelos amigos. Nesse quesito, Marcos era o campeão. Sabia salmo, provérbio, palavras do Senhor no Antigo Testamento, palavras de Jesus no Novo Testamento e - as preferidas dos colegas – citações sem pé nem cabeça do Apocalipse. Quem ficava sempre desconfortável com estes episódios era Gomes, agnóstico desde que se entende por gente.

Logo naquele primeiro dia, Adalberto decidiu que também citaria uma frase, vez ou outra, só para provar sua falsa erudição. Correu para seus livros, em busca de uma fragmento que pudesse ser cuspido durante uma conversa informal. Buscou poetas, afinal, as poesias já vêm mais ou menos divididas, sendo mais fácil roubar um pedacinho. Não achou nada. Cavou os grandes autores. Em Machado de Assis, Monteiro Lobato, Friederich Nietzsche e Cecília Meirelles não encontrou seu tesouro. Quando achava uma frase fantástica, logo descobria que, assim que retirada do contexto, perdia completamente o sentido.

A vontade de se igualar aos amigos fez com que Adalberto tomasse uma medida desesperada: ligar para a ex-mulher. Ele lembrou-se que ela, professora de língua portuguesa, era grande fã de dicionários. Na certa, teria um dicionário de citações para emprestar. Quando Liliana atendeu o telefone, se surpreendeu em falar com o ex-marido, que não dava sinal de vida desde que o divórcio havia sido concluído. A surpresa foi maior ainda quando ele esclareceu o motivo. Sempre solícita, a mulher deixou à disposição de Adalberto o tão precioso dicionário.

Assim que pegou o livro, Adalberto passou horas lendo. Leu no táxi, depois leu no elevador e seguiu lendo em um dos sofás da sala, o mais próximo da porta. Foi incapaz de separar algo realmente fabuloso. Foi incapaz de decorar qualquer frase.

Desistindo da investida, Adalberto reencontrou a realidade e lamentou. Era hora de arrumar a casa, cheia de copos e latas de cerveja espalhados. Pegou um imenso saco de lixo e pôs-se a catar aquela infinidade de alumínio dispersa em todos os cômodos. Da sala ao quarto, no banheiro e na cozinha: tudo tinha cheiro de cerveja velha. Findo o recolhimento do lixo, Adalberto deixou-se despencar no sofá vermelho em frente à televisão. O controle remoto não estava ali, mas ele também não queria assistir nada. Ficou só sentado, pensando nas malditas frases de Marcos, Gomes e do gordo. Não se conformava em não saber uma única citação para impressionar os amigos.

No canto da sala, uma lata abandonada observava o homem abatido. Talvez ela fosse a solução, Adalberto pensou. Talvez aquela lata, um pouco amassada, sobre o carpete úmido, fosse a resposta para as preces de um homem à beira do precipício criativo. Ele levantou-se e caminhou pausadamente até a lata. Já com o cilindro em suas mãos, foi até a janela, de onde observava ora a paisagem, ora a lata de cerveja. Em crise, Adalberto pensou: “E se eu criasse uma frase em vez de apenas cita-la?”. Era preciso ser algo tão fantástico que deixasse os amigos com inveja de suas idéias.

Adalberto começou a pensar na cerveja. Pensou no gosto, na cor, na temperatura. Nada. Então, começou a buscar outra solução para a sua frase. Seria algo relacionado a cerveja, mas não seria a própria cerveja. Ele pensou na lata, na embalagem com doze latas, nos diferentes tamanhos de lata. Desistiu. Catou o controle de lado e ligou a televisão. A lata foi rudemente atirada à rua, como que relegada ao limbo. Sentado no sofá, o desesperado homem tentava não pensar na frase, ou na falta de frase. Foi então, que, tal um anjo visitando Paulo na cadeia, como tantas vezes Marcos invocou, surgiu algo inesperado na tela. Uma loura muito sensual, vestindo apenas um biquíni laranja, caminhava em uma praia paradisíaca. Ela esnobava os terríveis banhistas que a observavam de longe, todos acima do peso, em trajes deprimentes, e ia até um quiosque. Lá, pedia uma cerveja, e se refrescava. De um instante para o outro, os outrora repelentes banhistas se transformavam em modelos de corpos bem trabalhados, exalando masculinidades em seus olhares.

Estupefato, Adalberto arregalou os olhos. Pensou, em voz alta, “a vida é uma campanha publicitária de cerveja”. E sorriu. Estava feliz com a frase. Pensou horas em como era brilhante, em como tinha criado algo tão espetacular. Isso, até que se deu conta de que a frase estava incompleta. Por que a vida era uma campanha publicitária de cerveja? Pensou em centenas de finais possíveis. Reflexões profundas sobre a realidade, tiradas jocosas sobre a beleza, constatações óbvias sobre o mercado. Nada que fizesse a frase se tornar completa e realmente boa. Desistiu, mas jamais esqueceu daquela introdução de citação.

Passaram alguns anos. Uns sete, mais ou menos. Sete anos em que Marcos, Gomes e o gordo atiravam frases atrás de frases e Adalberto limitava-se a ouvi-las e admirá-las. Volta e meia, perdia-se em um mar de Camões, em uma floresta de José de Alencar, em uma quinta de Eça de Queiróz, em uma vinícola de Esopo. Em nenhum desses lugares achou uma frase para somar às dos amigos. Eles chegavam a competir. Quando os livros acabavam, mencionavam novelas, programas de televisão, filmes. As únicas frases de filmes que Adalberto conhecia eram “Bond, James Bond” – que jamais teria espaço para uma citação – e “Nós sempre teremos Paris”, de Casablanca – que não pegava bem ser dita em uma mesa cheia de homens. A ele, só cabia o papel de sorrir. Um sorriso tão amarelo quanto a mesa de bar, que trazia a logomarca de uma famosa marca de cerveja.

Cansado de buscar uma citação, Adalberto fugiu para seu próprio mundo, onde ninguém recita frases ao vento, em troca de nada. Ficava remoendo que a vida é uma campanha publicitária de cerveja, sabe-se lá porquê. Pensava nos milhões de comerciais das diversas marcas da bebida alcoólica mais apreciada no país. Chegou a esquecer que estava à mesa com seus amigos mais fiéis. Só voltou a conversar quando o gordo começou a contar uma história.

- Vocês não sabem – disse ele –, a minha vida está uma droga. Acho que a minha mulher quer o divórcio... Tem dito que eu estou muito ausente, que só penso em trabalhar. Eu só trabalho tanto porque quero comprar coisas bonitas para ela, levá-la para viajar, dar o mundo para ela. Eu realmente não sei o que eu faço.
- Sei que o meu casamento é bem diferente do seu – continuou Gomes –, mas lá em casa as coisas nem sempre vão bem. Eu e a Maristela temos brigado muito ultimamente. Sempre que eu posso, tento compensar as minhas ausências. Eu só estou aqui, hoje, com vocês, porque ela foi jantar na casa da minha sogra.
- Nem me fale – acrescentou Marcos. Estou tão cheio de brigar em casa, que às vezes saio só para evitar o atrito. Seria tão bom se as coisas acontecessem do jeito que a gente sempre sonhou, não é?

Divorciado há nove anos, não caberia a Adalberto dar uma lição de moral nos amigos. Na verdade, ele era o mais fracassado quando o assunto era casamento. Já havia passado por dois, todos sem sucesso. E a sua vida de solteiro também não era grande coisa. Mas ele sabia que o clima só iria ficar mais pesado. Seria preciso quebrar o gelo, dizer algo inteligente para fazer os amigos pensarem e mudar o rumo do bate-papo. Algo inteligente como uma frase. Mas Adalberto não sabia frase alguma. Olhando para as garrafas vazias e os copos que em segundos seriam esvaziados, Adalberto deixou escapar:
- Sabe, gente... A vida é uma campanha publicitária de cerveja.

Todos fizeram silêncio. Todos olharam para ele. O gordo, de olhos arregalados, mal podia acreditar no que Adalberto disse. Gomes olhava para os lados, pensava no que acabara de ser dito. Adalberto se arrependeu do que acabara de falar. Queria voltar no tempo e retirar a colocação. Os olhos dos amigos esperavam a continuação, procuravam sentido no que havia sido deixado sobre a mesa do bar. O coitado Adalberto, arremessado à ribalta, preferia as coxias onde sempre esteve.
Quando Adalberto estava se preparando para pedir que os amigos esquecessem seu comentário, Marcos, quem melhor o conhecia, foi obrigado a dizer:
- Adalberto, meu camarada, isso é a mais pura verdade.
- A mais pura verdade – repetiu o gordo.
- A vida é exatamente isso – concordou Gomes.

sexta-feira, 18 de julho de 2008

Guarda-chuva


O barulho da água caindo nas minhas costas não me deixa ouvir o telefone tocar. Na verdade, é lógico que deixa, senão eu não estaria aqui afirmando isto, mas esta é a desculpa que eu vou dar. Já é a quarta vez que ela liga e eu continuo metido no chuveiro para não atender. Se minha mãe ainda fosse viva, estaria parada, na porta do banheiro, o telefone na mão, pedindo para que eu falasse com Madalena. Mas a minha mãe se foi e eu nem estou escutando o telefone.

Não sou uma pessoa normal, como você pôde perceber. Fui eleito por Deus para nascer no pior dia possível, 29 de fevereiro. Este é o maldito dia que só acontece uma vez a cada quatro anos. Isto significa que, mesmo eu tenho nascido em 1964, hoje, em 2003, conto os dias para comemorar o meu décimo aniversário. É claro que você já deve estar pensando. “dia 29 de fevereiro... o mesmo dia do aniversário do...” Sim! Sim! Todo mundo conhece alguém que nasceu neste fatídico dia. Nós somos uma legião de desgraçados, aleijados de bolos e festas. Se comemoro uma dia antes: “Ah! Ainda não é seu aniversário, você ainda não nasceu.” Se eu ainda não nasci, está falando comigo, por que? É maluco, por acaso? Quando descido comemorar no dia seguinte: “Não, não. Agora já é março. Seu aniversário foi em fevereiro.” Desgraça!

A esta altura do relato, você não deve estar entendendo mais nada. Estou no chuveiro, fingindo que não ouço o telefone, nasci no dia 29 do segundo mês de um maldito ano bissexto e o título disso é “Guarda-chuva”. Calma. Eu chego lá.

Fui garoto numa época complicada, não dava para falar tudo. Meu pai, um paranaense comunista, vermelho, imenso, que metia medo até nos militares, mandava a gente nunca comentar o que era dito dentro de casa, quais livros ele lia e botava a gente para ler e de que ilha caribenha era aquela bandeira que ficava pendurada atrás da porta do quarto do casal. Era opressão em casa e na rua. Naquela época, a maior loucura que eu fiz foi me trancar no banheiro com um livro de Weber. O homem ficou louco, derrubou a porta e me bateu de cinto. Mas só de lembrar que foi o vô Ademar, pai dele, quem me deu o exemplar,o sorriso me volta aos lábios.

Como o clima não era bom no lar, doce lar, eu gastava boa parte do meu tempo na rua. Nunca fui comunista. O mais próximo que eu cheguei do socialismo foi me declarar anarquista, quando minha mãe pediu para eu tomar conta da Gabriela, minha irmã caçula. “Cada um defende o que é seu. Quando for para o bem de todas as colônias, a gente se reúne”, e saí correndo para fora. Bom, estou me estendendo. Blábláblá, o pai era grosso, blábláblá, vivia na rua. Ponto.

Por estas e outras, acabava tomando chuva, porque as marquises não me protegiam e naquele tempo não tinha shopping para ficar perambulando. Não era raro pegar uma gripe, mas confesso que a chuva estava entre as coisas que eu mais gostava. Guarda-chuva era incômodo, chato de carregar e, de vez em quando, fazia a gente passar a maior vergonha. Eu só saía de guarda-chuva por três motivos: minha mãe, meus livros, minhas meninas – as coisas com as quais eu me importava. Desde então, guarda-chuva passou a ser sinônimo de amor. Ele é incômodo, chato e, de vez em quando, faz a gente passar a maior vergonha, mas nos protege. Agora que você já entendeu que eu sou maluco, cheio de manias e porque este é o título, volto para o meu banho.

Conheci a Madalena em Londres. Estava lá eu, a trabalho, tentando comprar alguma coisa para comer num restaurante. Como inglês é uma língua capitalista, lá em casa a gente só aprendeu russo e espanhol. Tentei falar, gesticular e até me ofereci para ir à cozinha fazer o meu próprio prato, mas o cara não saía do excusme. Comecei a ficar irritado e catei minhas coisas para ir embora. Neste momento, ela tocou o meu ombro, sorriu e falou qualquer coisa com o garçom. Depois sentou e disse que já estava tudo em ordem e que a comida viria em alguns minutos:

- Da próxima vez que for a um país que fale uma língua diferente da sua tente comprar alguma coisa no supermercado. É só encher o carrinho e mostrar o dinheiro.
- Muito engraçado.
- Nunca pensei em encontrar em Londres alguém que não falasse inglês. Podem acabar achando que você veio da França.
- E eu nunca pensei que precisaria de uma mulher para conseguir algo para comer.
- Maria Madalena.
- Prazer. Karl.
- Karl?
- É... Meu pai era comunista.

Madalena morava na Inglaterra, mas, como a família toda ainda vivia no Brasil, volta e meia dava um pulo no Rio. Numa destas vindas ela me visitou e acabou ficando por aqui mesmo. Abandonou o emprego, apartamento e noivo para dividir uma quitinete em Copacabana comigo.

Passávamos as noites em claro, um olhando para o outro, e não conseguíamos fazer uma única refeição sem que ela cortasse o meu bife ou eu passasse manteiga na torrada dela. Durante estes quatro meses, vivemos para nós dois. Não havia um horário de almoço em que eu não fugisse do escritório e passasse em casa, para dar um beijo nela. Na grande maioria das vezes, comíamos lá mesmo, ela tentando virar dona de casa e eu tentando voltar na hora certa para o trabalho. Em algumas outras, saíamos para almoçar fora, ela agradecendo por não cozinhar, eu levando uma baita bronca pelo atraso. Na volta para casa, lá pelas oito, ela me esperava semi-acordada, esparramada no sofá, vendo novela, mas abandonava até o plantão da Globo para ficar quietinha comigo.

Tudo ia ás mil maravilhas em nossa vida, quando um dia, ao sair para almoçar, notamos que estava chovendo muito. Madalena catou pela mão um guarda-chuva imenso, destes que dá para uma família inteira se proteger. Descemos as escadas, empurrando e cutucando, como não poderia deixar de ser, e paramos no hall. A chuva parecia apertar a cada segundo, empoçando a calçada, parando o tráfego. Ficamos ali, namorando, esperando o clima dar uma trégua. Já passava das duas e não tardaria para acabar minha hora de almoço.

- É melhor irmos.
- Está bem.

Cruzamos o portão e, ainda sobre a marquise, pude ver o pé direito de Madalena tocar o chão molhado. Tudo parou. Ela estava linda, um pouco suada, um pouco molhada, a maquiagem escorrendo, mas uma beleza. Os cabelos enrolados e enfiados para dentro da camiseta, os braços cruzados em volta do peito, protegendo-se do frio, o guarda-chuva ainda na mão.

- Não vai abrir?
- Não.
- Por que não?
- O restaurante é logo ali e está chovendo muito. Não vai fazer a menor diferença.

Ela atravessou a rua desviando dos carros. Eu fui atrás. Entramos na churrascaria – fomos a uma churrascaria naquele dia –, eu tirei o casaco, e nos sentamos. Ela pediu um couvert e, por mais que ainda não tivesse comido nada desde o café da manhã, a fome não vinha. No lugar, apenas o estômago embrulhado, como se eu tivesse comido um salmão que dormiu fora da geladeira. Meti a mão no bolso, procurei meu celular e o achei, mas continuei procurando mesmo assim.

- O meu telefone está com você?
- Não, não está.
- Acho que deixei em casa.
- Esquece.
- Não posso. E se alguém do trabalho me ligar?
- A gente come rapidinho e vai embora.
- Acho melhor eu passar em casa para buscar.

Me levantei, vesti o casaco e voltei para o meu edifício. Calmo, nem me preocupei com a água que descia pelos meus cabelos e embaçava as minha lentes. Subi cada degrau buscando do fundo da minha alma o máximo de força possível. Abri a porta, joguei o celular sobre o sofá e entrei no banho. Já é a quinta vez que ela liga, mas, mesmo assim, eu não ouço. Quando sair daqui, vou para o quarto fazer a mala. Entro no primeiro táxi e sumo deste lugar.

quinta-feira, 17 de julho de 2008

Angústia não compartilhada

O telefona tocava e ninguém atendia. Já era a quinta vez que ela ligava esta noite. A vigésima sétima, contando as ligações feitas durante o decorrer do dia. A resposta era sempre a mesma: depois de duas dezenas de toques, uma mensagem da operadora telefônica anunciava que a chamada estava sendo interrompida. As lágrimas corriam. Novamente, ela passava por aquela situação. Já deveria ter se acostumado, mas a algumas coisas nós nunca nos habituamos. Na sala vazia, as chamas de algumas velas desenhavam as paredes. O cheiro de incenso preenchia o ambiente. Pelas cortinas cerradas, era possível enxergar a claridade da rua, ouvir o barulho dos carros, as conversas dos casais. Sozinha, tomada pela sofreguidão, ela chorava, sem ninguém para consolá-la.

Mais uma vez, a mulher tentou usar o telefone. A resposta era a mesma. A mesma que ouvia nos últimos cinco dias, desde que ele pediu um tempo para pensar, para pôr a cabeça no lugar. Os homens são assim. Tão corajosos, tão fortes, tão incapazes de dizer adeus. Naquela esquina escura, prometendo um novo encontro, ele se foi, desaparecendo nas brumas do passado. Ela ainda ficou ali, chorando um pouco, se recompondo antes de ir para casa. Dele, ela nunca mais teve notícias, nunca mais soube. Só sabe da dor em seu peito, da tristeza que não será acalmada, da angústia não correspondida. Ela deixa-se levar pela escuridão da sala, deita-se no sofá e tenta outra vez o telefone. Ainda vai tentar outras duas vezes antes de desistir. Amanhã vai tentar mais uma e outra e ainda outra. O ritual será o mesmo, até que ela o veja na rua e ele não faça contato algum. Só então ela terá entendido o que aconteceu. Só então ela poderá compreender que ele se foi, que ele teve medo de dizer que não seria possível continuar.

Sozinha, depois de todo o tempo compartilhado, ela chora e fica triste por estar chorando por alguém que não vale a pena chorar. Ela cruza os braços, pensando em tudo o que foi doado, em quanto ela se entregou por alguém que nem teve postura para pedir perdão. Escondendo a face com as mãos, ela soluça, gagueja, e tenta mais uma vez. Sem respostas. Outra vez. Nada. Desolada, ela se entrega à própria sorte, debruçada sobre um amanhã incerto. Não há mais a sensação de segurança que sempre a envolvera. Ela está só, envergonhada de continuar tentando ligar para alguém que não mais se importa com ela. Chorando ela se deita no sofá e deixa o destino guiar sua vida e permite que os sonhos a enganem.

Sentado em sua cama, ele vê o celular tocar mais uma vez. Já é a quinta ligação desde o jantar. A vigésima sétima desde o dia raiar. Ele observa trêmulo a luz acender e o nome dela estampar o display. Fica ali, encurralado, sem saber se deve atender. Ele nem sabe o que sente. Abraçado a um travesseiro, ele se lembra do outro dia, quando, incapaz de qualquer ato digno, partiu, deixando a amada sozinha, chorando. Sozinho no escuro, ele se pergunta quanto tempo teria demorado até que ela voltasse para casa. O quarto repleto de móveis não deixa espaço para o sofrimento. Uma seqüência de sentimentos contraditórios o tomava, enquanto ele via a entrada de outra chamada. Ela ainda ligaria uma última vez, antes de ser derrotada pela amargura. Nos dias seguintes, continuaria ligando, até que ele a visse sorridente na rua. A aparente alegria da mulher transpassaria seu coração como uma faca, marcaria sua pele como brasa. Ele se abandonaria, infeliz, ao peso do futuro incerto.

Repensando a separação, ele nem sabe mais se os motivos que teve realmente são relevantes agora. Ele partilhou tudo o que tinha com ela, até mesmo aquilo que antes lhe parecia banal e hoje é sinônimo de confiança. Sentado em sua cama, ele acha que quer chorar, mas não chora, porque senão seria um perdedor, de chorar por uma mulher que ele abandonou e que ainda o procura. Ele lamenta a perda de alguém que ainda não está perdido. Desnorteado em um lugar familiar, ele acha que a separação foi culpa dela, mas sabe bem que foi por causa dele. Olhando o chão escuro, ele sente os olhos se umedecerem.

O telefone toca pela última vez. Ele espera que ela desista, que siga em frente e seja feliz sem ele, mas ao mesmo tempo, prefere não pensar no que vai acontecer. Sua garganta incha, os pulmões esvaziam e tudo o que ele sente é uma angústia não correspondida. Ele não sabe o que ela está pensando, não sabe se está sendo odiado ou amado, se ainda é querido ou se apenas vai ouvir o encerramento de uma vida. Ele acha que o melhor é deixar assim, terminando sem acabar, porque ele não é homem de dizer que é o fim, porque se ela pedir mais uma chance, ele vai dar. Ele se deita na cama, olhando para o teto, e espera que ela ligue mais uma vez. Só mais uma e tem que ser agora, porque amanhã, ele já vai ter pensado em outra coisa e toda a sua determinação terá minguado e ele será o mesmo tolo que a deixou, o mesmo tolo que agora adormece, sonhando com o que já não pode ter.

quarta-feira, 16 de julho de 2008

Sangue e vinho tinto


A cabeça pesava mais que todo o resto do corpo. No banheiro do escritório, com o rosto enfiado na latrina, Hugo se arrependia de ter bebido na última noite. Enquanto segurava a gravata para não sujar ou molhar, o advogado se lembrava de que não lembrava de nada. A última recordação era o garçom enchendo seu copo com uma dose de Johnny Walker Red Label, a terceira da noite. Foi cowboy, mesmo, para que fizesse efeito mais rápido.

Fazer festas no escritório era comum na última sexta-feira do mês, quando o chefe saía para viajar. As secretárias traziam petiscos, os estagiários ficavam responsáveis pelas músicas e os advogados acabavam trazendo uma cervejinha. Mas esta festa foi especial. Para comemorar a vitória em um grande caso - um político inocentado das acusações de desvio de verba pública - ele e seus colegas contrataram o buffet de um hotel da orla e compraram todos os tipos de bebida possíveis. De cachaça a licor, de cerveja a scotch, se o teor alcoólico não fosse neutro, eles estavam aceitando.

Para a esposa, Hugo alegou que teria que terminar a papelada do caso e por isso deixou de assistir a uma peça, em que os filhos interpretariam tartarugas, no colégio. Vendo o vômito vermelho, que ele supõe ter sido causado por vinho, Hugo lembra que ainda não falou com a esposa hoje. A barba por fazer pode ser facilmente notada, mas ficará imperceptível quando comparada à dos colegas.
Hugo amanheceu deitado na mesa de sua secretária. Ela, calçando os sapatos, alertava-lhe para as marcas de batom no colarinho.

- Batom no colarinho não tem explicação, ela dizia; foi assim que o meu primeiro casamento acabou.

Dona Catarina, a secretária, havia sido indicada para o posto pela própria mulher de Hugo. Era sobrinha de uma velha amiga, e precisava de um trabalho para começar a vida. Já estava há mais de treze anos no escritório. Foi um caso fácil de esconder desde o começo. Dormir com a secretária é tão óbvio, que chega a não deixar pistas. Além disso, os cabelos curtos de Catarina, castanhos como os do patrão, não deixavam margem para desconfiança.

Quando um respingo de água atingiu a lente esquerda dos óculos de Hugo, ele se deu conta das conseqüências da última noitada. Fora terminantemente proibido de beber pelo médico, após o surgimento de uma suspeita de câncer no fígado e no pâncreas. A dor que ele sentia tinha explicação. Beberrão desde a mais tenra idade, nunca dispensou um trago no bar da esquina ou um aperitivo com os amigos. Hugo não fazia o tipo violento, nunca fez escândalo, nunca fez a família passar vergonha. Mesmo assim, o álcool lhe corroia as entranhas.

No jato seguinte de vômito, sangue e vinho tinto se misturavam, num amálgama de incredulidade e sofrimento. No bolso do paletó, pendurado na fechadura da porta, o pager vibrava. Era uma mensagem da esposa, preocupada com o que teria acontecido. Hugo não tinha condições de ligar para ela. A fala arrastada denunciaria a noite de extravagâncias. Bebedeira na sala de reuniões, orgia no escritório e uma notícia amarga como anis – Catarina estava grávida. Não era para menos. Tantos anos de sexo irresponsável, sem camisinha, sem pílula, sem preocupação com o dia em que a esposa descobrisse. Dona Janete, filha de um barão das telecomunicações, nunca preocupou-se com os plantões na firma, com as viagens marcadas em cima da hora, com os presentes que Hugo recebia. Afinal, para que esquentar a cabeça; ele era um bom profissional e merecia o trabalho e as recompensas.

Com as mãos e punhos sujos de bile, Hugo tentava se livrar do que o prendia. Arrancou o cordão, de onde pendia um crucifixo, presente da avó, tirou o relógio e colocou na beira da privada, mesmo local onde depositou a aliança dourada e o anel de formatura. Afrouxou a gravata e desabotoou o colarinho enquanto se controlava para não vomitar novamente. Num impulso incontido, deixou que mais sangue descesse pela garganta. Não havia sinal de comida, o que justificava a intensidade da ressaca. O som da própria respiração ecoando no banheiro lhe perturbava.

Dona Catarina batia na porta, chamando-o para uma reunião imaginária; Dona Janete ligava para sua sala, para seu celular, para seu pager e não obtinha respostas. Mas que tipo de respostas ele daria? Não podia comentar os acontecimentos da última noite, da madrugada daquela sexta-feira, que virava um sábado, seu dia de folga. Agarrando-se à beirada da pia, Hugo ergueu seu corpo, encarando o espelho embaçado pelo vapor que subia. A torneira estava aberta, desperdiçando água quente. Com uma toalha molhada, o advogado limpava o rosto, as mãos e os braços. A camisa de botões, imunda pela bebida e pelo vômito, foi jogada num canto qualquer. De calças e camiseta, Hugo tentava, sem apetite, digerir a última noite.

Eram quase onze horas e havia um almoço no clube, para comemorar os quarenta anos de Dona Janete. Disso Hugo se lembrava bem. A esposa só falava da tal festa nos últimos dias. Lá estariam seus familiares, amigos e até uns jornalistas de coluna social. Se ele não desse sinal de vida, Janete e as crianças apareceriam, e aí seria muito pior. Do lado de fora, Catarina esperava, com roupas limpas nas mãos. Do lado de dentro, Hugo voava para a latrina, vomitando novamente. Havia algo ali que ele não sabia identificar. Um pedaço dele, talvez. O simples pensamento lhe trouxe a ânsia novamente e, antes que percebesse, voltou a vomitar e chorar.

Não havia mais nada para pôr para fora. Encheu a boca de água, bochechou, penteou os cabelos e abriu a porta. Dona Catarina lhe passou as mudas de roupa e disse que tão logo ele saísse, ela mesma limparia o banheiro. Em alguns minutos, Hugo vestiu o terno verde, presente da secretária, calçou os sapatos e fez o nó windsor, que o pai lhe ensinara, na gravata de seda. Apertou o botão da descarga, catou o cordão, o relógio e os anéis. Enquanto o banheiro rodava diante de seus olhos, o advogado tentava fixar um ponto para começar a procura. A aliança não estava mais ali. O símbolo da união com a esposa estafa perdido, bem como a união propriamente dita. Na certa, descera pelo cano, com a água, o vômito, o vinho e as aparências. Não fazia diferença. Havia coisas demais para explicar, afinal de contas.

terça-feira, 15 de julho de 2008

O joelho de Rosana


Primeiro foi o susto, depois uma sensação de conforto. Quando o marido pôs a mão em seu joelho, descoberto pela saia preta, Rosana quase pulou. Estava olhando pela janela, distraída com os letreiros da Nossa Senhora de Copacabana. Aquela ação tirou-a do lugar. O que é que João Paulo queria? Com certeza não havia de ser algo em troca, afinal, em um ônibus lotado, nem um beijo fica bem. Em seguida, Rosana relaxou. Passando os dedos calmamente pelo joelho, num movimento de idas e voltas, João Paulo proporcionou à mulher um segundo de total desprendimento, quase um orgasmo espiritual. Rosana sentiu algo inexplicável. Mas é só um carinho, pensava contente. Depois, pálida, voltou a pensar: é só um carinho.

Por mais prazeroso e reconfortante que fosse o gesto, uma coisa tinha de ser levada em conta. Rosana não tinha idéia de quando fora a última vez que o marido lhe fizera um carinho. Correção: qual fora a última vez que ele lhe fizera um agrado altruísta. Geralmente os elogios vinham acompanhados de um predicado interesseiro. As "belas roupas" eram pretextos para tirá-las. Os "cabelos bem cortados" eram o melhor caminho para tocá-los, uma parada antes de um beijo. A "comida deliciosa", por mais de uma vez, foi um convite para jantar fora, no dia seguinte.

Com o joelho repousado na mão do marido, Rosana tentava imaginar o que estaria acontecendo. Naquele coletivo lotado, o conforto cedeu seu acento à preocupação, já que essa era muito mais velha. Um imenso tráfego de pensamentos congestionava o raciocínio da mulher.

Chegou a mover a mão, para tirar de seu joelho as intenções duvidosas do marido, mas desistiu. Afinal, já era tão raro um carinho. Os olhos seguiam as mãos e buscavam uma expressão mais forte daquele ato. Entre a Siqueira Campos e a Hilário de Golveia, disfarçando que estava olhando para um relógio, destes grandes que ficam nas calçadas, Rosana encarou o marido. Qual foi a surpresa, quando descobriu-se que ele nem sequer estava prestando atenção no que fazia. Simplesmente fazia, como se fosse normal fazê-lo.

Disto, Rosana tinha certeza. Um carinho era a coisa mais normal do mundo. Não era porque o marido não estava acostumado a fazê-lo que havia de ser algo suspeito. Voltou os olhos para o joelho e viu, timidamente, a mão de João Paulo se distanciar e voltar para o colo. O que acontecia? Porque ele tinha parado? Depois do susto, do agrado e da suspeita, pairava sobre aquele joelho direito o vazio, uma imensa lacuna deixada pelos dedos fortes e ao mesmo tempo delicados do marido distraído. Olhando para os carros, imaginando qualquer coisa, João Paulo se perdia em esquinas e pessoas, enquanto aquele joelho chamava de volta a manopla que lhe afagara.

Rosana chegou a perna mais para o lado e deixou aparecer um pedaço da coxa, mas o joelho ainda se encontrava em lugar de destaque. O marido nem sequer percebia. Rosana buscou a mão de João Paulo, fez um carinho e a colocou sobre seu joelho. Lá ela ficou, estática, depositada, sem ação. Em algum tempo, de pouquinho e pouquinho, voltou para o colo, onde descansou. O vazio deu lugar à preocupação, que estava de volta, mas com uma roupa diferente. Vestida de incompreensão, a dúvida de Rosana chamava a mão de João Paulo para o joelho solitário. A mulher chegou mais para o lado e se aconchegou no ombro do marido. Deu um beijo em seu rosto e procurou retribuição. Mas aquela mão já não queria saber mais de joelho. Achou no chaveiro uma boa distração para a larga avenida engarrafada.

Foi então que, numa colisão elástica, algo se aproximou do joelho de Rosana. Num esbarrão desastrado o empurrou um pouco para o lado e sentiu o impacto quando voltou. Era o joelho de João Paulo, que perdera o apoio da cadeira da frente quando uma gorda senhora se levantou. Ficaram lá, os dois joelhos, direito dela, esquerdo dele, lado a lado, encostados, como que namorando. João Paulo, impaciente com a demora do trânsito, começou a balançar as pernas, o que fez com que seu joelho roçasse no da mulher, num vaivém estranho, mas que de certa forma lembrava um afago. Rosana sorriu, por um breve momento, e deixou-se levar por aquela carícia involuntária. Não era a mão carinhosa, mas, vá lá, era melhor que um solitário joelho descoberto.

segunda-feira, 14 de julho de 2008

O velho


O garoto caminhava na praça satisfeito. Voltava do colégio em um dia especial. A menina mais bonita da turma havia topado ir ao cinema com ele no final de semana. Já fazia planos para o futuro, quando tentaria o primeiro beijo, quando investiria em algo mais sério. Tinha apenas quinze anos, mas quem já teve esta idade sabe que ela nunca é limite para imaginar-se adulto.

Passou por alguns vizinhos no caminho, que o convidaram para uma partida de futebol na rua do meio. Recusou. Precisava ensaiar cada detalhe do encontro. Que filme veriam? Em que cinema? Onde comeriam depois? Que horas a buscaria? E que horas a levaria em casa? De ônibus ou de taxi? Era melhor pedir carona ao pai? O que falaria se o pai dela a levasse à porta?

Ainda na praça, pensativo, sentou num banco qualquer. Olhou para longe e qual foi sua surpresa quando viu um velho sentado dois bancos à sua direita. Os cabelos muito brancos já rareavam na cabeça. A barba cobria a face e ressaltavam as rugas ao redor dos olhos. A roupa já era muito antiga, com os punhos puídos, quase rasgando. Nos pés as unhas eram grossas e escuras e nas mãos as veias desenhavam acidentes geográficos diversos. Apoiado numa bengala, o velho sustentava seu corpo, já marcado por uma pequena corcunda. Ao olhar, o garoto não teve dúvidas: era ele mais velho.

Sabia que não poderia contar aquilo para ninguém. Parente ou amigo nenhum acreditaria que ele acabara de esbarrar consigo mesmo em idade avançada na pracinha perto de casa. O próprio menino duvidava. Tentava entender como que passado e futuro se uniram naquela vizinhança em que nada fugia ao ordinário.
Quando desistiu de achar o como, tentou descobrir o por quê. Seria um aviso, uma premonição, um sonho acordado? Qual seria o sentido da visão de seu eu idoso? O velho, em seu banco, coçava a cabeça e apreciava o sol da tarde.

O menino ficou triste. O velho sozinho, a péssima aparência, as roupas se desfazendo. Aquele era irremediavelmente o seu futuro e nada do que ele fizesse poderia mudar. De nada adiantaria o encontro do fim de semana, estudar para ir a uma boa faculdade, arranjar um emprego que pagasse bem, se no final da vida ele terminaria roto em uma praça. Enfurecido, levantou e foi para casa, jurando que mudaria seu destino.

De seu banco, o velho viu o menino passar. Os longos cabelos castanhos, o uniforme do colégio, os sapatos sujos de lama, as canelas finas. Mesmo muitos anos depois, ele sabia: aquele era ele mais novo. Lembrou da infância, do amor da família, dos amigos da rua, do encontro com a menina da turma. Na certa, não poderia contar o episódio a ninguém. Jamais acreditariam em um velho que diz ter se visto garoto na praça. Teria ficado horas pensando no passado, mas foi tirado de suas lembranças. Pouco minutos depois do menino passar correndo, sua filha e seus netos chegaram.