segunda-feira, 21 de julho de 2008

Ainda um menino


Ainda ontem achei debaixo da cama algo que tinha perdido há muito tempo. Já nem me lembrava direito que era meu; poderia ser de qualquer um. Estava empoeirado, meio amassado e até cheirava mal. Era o meu medo de escuro. Decidi usá-lo outra vez, afinal no passado ele teve certa utilidade. Me lembro que minha mãe ficava do meu lado, sentada na beirada da cama, cantando e lendo enquanto eu não adormecia.

Quando minha mulher viu, pôs-se a rir. “O que um homem deste tamanho vai fazer com medo de escuro? Você vai ser a piada da repartição.” A verdade é que quando a noite veio e eu precisei de um abraço apertado para me acalmar e dormir, ela não achou tão ruim assim.

No dia seguinte, vasculhei armários, gavetas velhas, malas de viagem, qualquer canto em busca de um fragmento perdido de minha inocência. Entre algumas roupas antigas, achei a capacidade de fantasiar que havia perdido na adolescência. Meus filhos riram de mim, com o lençol amarrado no pescoço e a cueca por cima da calça, gritando que era um super-herói e podia voar. Mas logo, lá estavam eles, rolando na grama do jardim comigo, num duelo mortal entre piratas e alienígenas.

Numa prateleira da sala, achei minha curiosidade. Estava achatada, apertada dentro de um livro antigo, mas ainda dava para usar. Vesti e fui correndo para a casa da minha mãe. Perguntei como ela tem passado, o que tem feito de bom, como andam suas amigas, a quantas anda sua saúde. Mesmo surpresa, ela não perdeu tempo; passou toda uma tarde me contando cada detalhe de seus dias mais recentes.

Foi então que eu me lembrei de uma caixa. Uma velha caixa que eu guardava no alto do armário. Ela estava vazia há muitos anos. Foi dentro dela, ainda um menino, que encontrei a maturidade. Foi dentro dela que consegui a coragem para procurar emprego, que achei a responsabilidade para me casar, de onde tirei a força para criar dois filhos. Olhando para a caixa, tirei meu medo de escuro, minha capacidade de fantasiar, minha curiosidade infantil. Tampei e guardei de volta em cima do armário. Minha família nunca notou a diferença e nunca vai notar. Se algum dia eu precisar, minhas relíquias estarão me esperando muito bem guardadas, mas por enquanto eu tenho tudo o que preciso.

3 comentários:

Naila Soares disse...

Daniel, acho que vc se superou com este conto... Lindo!

Lúcia Cúrio disse...

Este texto esta ótimo. Muito lindo

Unknown disse...

Parabens, o conto é extraordinário, queremos mais, muito mais.