quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Biografia – Capítulo 12 (4 de 6)


Cinco anos depois da formatura, a turma da faculdade se reuniu. Estavam em um botequim que frequentaram na época das aulas. Era um desses pés-sujos onde pedreiros almoçam às onze da manhã e os universitários dominam desde o início da noite até a madrugada. Um gol da década de noventa com potente sistema de som ditava a música de fundo da conversa do grupo.

Apesar do grande apreço que tinha pelos amigos, Bruno demorou a se decidir se ia ou não no encontro. Guardava uma ponta de vergonha por trabalhar como caixa de banco enquanto a maior parte dos amigos se sentava em belos escritórios de empresas bem-sucedidas. Acabou sendo convencido pela irmã, que também estudara na mesma faculdade alguns anos depois. A Suzana estará lá, você sabe, ela disse.

Suzana. Na época da faculdade ela fazia os corações dos rapazes baterem mais forte. Tinha um jeito rebelde que encantava, mas nunca deu bola para o pessoal da própria turma. Preferia andar com os veteranos ou com a turminha da maconha, que sempre oferecia um tapa quando ela estava sem grana para comprar o próprio baseado. Para ela, Bruno sempre foi apenas um amigo. Um amigo com quem ela podia se abrir. Um amigo em quem podia confiar. Nunca rolou nada, exceto por um beijo que ela não se lembra, mas que Bruno contou para alguns colegas. Ela estava muito bêbada e se insinuava para ela, mas Bruno apenas cuidou para que ficasse tudo bem enquanto ela dormir no banco de trás de seu carro.

Se na faculdade, quando eram grandes amigos, ele nunca teve chance, talvez agora, quando a amizade remetia a um passado quase utópico, o pensamento dela fosse diferente. De fato, ela estava diferente. Mais refinada, mais elegante. A paixão platônica se reacendeu assim que Bruno a viu na frente do bar. Ela era a única que não estava bebendo. Tive uns problemas com bebida, então estou só na água com gás, ela brincou, apontando para o copo com gelo e uma rodela de limão.

Além de Suzana, compareceram ao reencontro Marcos, Fabrício, Renara e Camila. A primeira conversa com Marcos fez com que Bruno imediatamente esquecesse a vergonha por ser bancário. O colega, um dos mais inteligentes da turma, estava desempregado há mais de um ano, vivendo às custas de uma magra pensão da ex-mulher. Sua vida se resumia a carregar o filho para a escola, para o curso de inglês, para o caratê, para o futebol. Fabrício, que nunca foi exatamente da turma, mas estava namorando com Renara, era gerente de projeto avançado de uma multinacional. Ele explicou exatamente o que fazia, mas ninguém entendeu. Já ela, tinha cursado uma segunda faculdade e agora trabalhava no departamento de marketing da mesma empresa. Camila trabalhava em uma franquia de agências de viagens e se dizia muito empolgada com a meditação transcendental, que tinha descoberto há poucos meses.

Não importava quem estivesse falando, os olhos de Bruno acompanhavam Suzana para onde ela fosse. Sentia-se enciumado quando Marcos ou o garçom ou um conhecido que passou pela rua conversavam com ela. Chegou a dar um esbarrão “acidental” em um abusado que a abordou sem qualquer cavalheirismo.
Quando Suzana finalmente se afastou ele foi atrás. Ela entrou no banheiro do boteco e ele ficou esperando próximo ao balcão. Assim que ela saiu, ele tomou coragem para se aproximar, mas sentiu uma mão fazendo carinho em suas costas. Era Camila.

Camila era bonita, mas não tanto quanto Suzana. Muito atraente, mas discreta se comparada à colega. Simpática, mas sem metade do carisma da outra. E, diferente de Suzana, estava interessada em Bruno. Enquanto Suzana ia para a parte de fora do bar, Camila segurava o rapaz lá dentro. Perguntava se ele estava solteiro, se tinha planos para mais tarde, se ele tinha uma queda por ela na época da faculdade. Sim, não e não, ele respondeu. Nem um pouquinho? Eu era gamada em você. E aí, ele confessou, meio da boca para fora, que sempre achou ela muito interessante. Encurralado pela moça, Bruno deixou-se beijar. O beijo durou mais de dez minutos. E durante todo esse tempo, ele não conseguiu parar de olhar para Suzana.

***

– Você estava pensando na Suzana enquanto me beijava? – as palavras de Camila saíam alguns decibéis abaixo do que poderia ser considerado um grito.

Camila sacudia o livro de capa branca com letras vermelhas como se com aquele movimento Bruno fosse capaz de saber do que ela estava falando. Diante da falta de reação do namorado, ela atirou o livro nele, atingindo-o no ombro.

– Camila, você não deveria considerar o que está escrito neste livro. Ele foi escrito por alguém que me odeia e quer me prejudicar.
– Então isso nunca aconteceu?
– Eu não sei se aconteceu... Mas se aconteceu, não teve nenhuma importância.
– Talvez não tenha importância para você, mas para mim aquele era um momento mágico. O momento em que ficamos juntos. E saber que nem tudo foi como eu imaginei está partindo meu coração.
– Camila, eu... – Bruno tentou se aproximar, mas ela deu um passo atrás e fechou os braços sobre o peito, protegendo-se.
– Eu só preciso saber de uma coisa. No dia do reencontro da nossa turma, no dia em que nos beijamos pela primeira vez, a sua intenção era ficar com a Suzana e você acabou tendo que se contentar comigo?

Bruno não negou. Não respondeu. Não havia resposta certa ou, pelo menos, satisfatória para aquela pergunta. Camila cruzou a sala, abriu a porta de seu apartamento e baixou a cabeça, esperando que ele fosse embora. Ele foi.

Pela rua, voltando para casa, ele não conseguia parar de pensar no livro. Algumas páginas escritas por vingança e a vida dele havia mudado completamente. E o que o Giovana ganha com isso?, ele pensava. Nunca saberia.

Na porta do prédio de Bruno, um homem aguardava apoiado no muro. Tinha um bloco na mão e tentava puxar assunto com quem passasse. Ao ver Bruno dobrando a esquina, puxou do bolso um papel com uma foto impressa e comparou com o rosto do bancário.

– Você... Bruno? Bruno Castro? Meu nome é Cosme, eu trabalho para o jornal Primeira Página. Estou fazendo uma matéria sobre o seu livro...
– Não é meu livro.
– Bom, estou fazendo uma matéria sobre o livro “Não fui sincero com você” e gostaria de conversar um pouco contigo, saber o que você achou...
– Nada a declarar!

Bruno abriu o portão, subiu as escadas e se trancou em seu apartamento, como se aquela porta de madeira pudesse isolá-lo do resto do mundo. Por uma fresta na persiana, viu que o repórter ainda abordava os vizinhos. Não via como sua vida medíocre podia piorar ainda mais e acabou se lembrando de uma frase de Sandro Pestana. Em vez de ficar com raiva, aproveite a pequena imortalidade. O bancário desceu as escadas correndo e chamou o repórter.

– Cosme, não é? Pois bem, eu teria prazer em falar sobre o livro com você.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Biografia – Giovana (3 de 6)


“Era a segunda vez que Giovana se encontrava com Paolo. Desde que se esbarraram no estábulo do pai dela, a bela jovem não parava de pensar no capataz. As feições do rosto haviam se perdido, mas ela não conseguia se esquecer do maxilar forte, dos cabelos negros ondulados que caíam sobre os ombros e dos tórax peludo. Quando novamente se esbarraram, desta vez na casa de uma das criadas da fazenda, Giovana ficou admirando as sobrancelhas grossas, o nariz adunco e os lábios carnudos do napolitano. ‘Ele é um anjo em um corpo de demônio’, ela deixou escapar.”

Aquilo era um lixo. Mesmo não sendo um bom leitor, Bruno conseguia perceber que faltava talento ao ghost writer de Sandro Pestana. Pela segunda vez ele ia ao tal bar da lapa que era frequentado por escritores. No primeiro dia, deu uma gorda gorjeta ao garçom e pediu que o homem lhe indicasse quem era o Giovana. Ele não está aqui hoje, disse o português. Não é todo dia que vem. Mas quando estiver aqui você saberá quem é. Os amigos fazem questão de gritar alto seu apelido, apenas para envergonhá-lo.

Naquele segundo dia, o bar ainda estava vazio. Notou de cara que o português não se lembrava dele. Melhor assim. Queria ser discreto. Aos poucos, os clientes foram chegando. Eram assíduos, já que os garçons os chamavam pelo nome. Quando um sujeito alto, um pouco calvo e com um belo bigode que lhe cobria os lábios quando estava quieto chegou, o gerente fez questão de juntar algumas mesas, deixando-o na cabeceira. Ele carregava uma maleta com uma máquina de escrever; provavelmente um dos escritores.

No decorrer das duas horas seguintes, a grande mesa ficou cheia. Eram nove escritores discutindo Baudelaire, Piñon ou Bukowski, dependendo do momento. Ainda havia uma cadeira vaga na mesa e um tipo baixinho de barba deixou claro para o garçom que ainda esperavam alguém, quando o português perguntou se podia tirar a cadeira.

Lá pelas tantas, Giovana chegou, saudado pelos gritos dos colegas. Ele chacoalhou as mãos de todos e deu dois beijos no rosto do mais velho entre os escritores presentes. Jogou o casaco na cadeira vaga e pediu que o português lhe trouxesse um chope. Estava animado, de pé, batendo papo com os amigos quando o viu. Foi só por um momento, mas Bruno teve certeza de ter sido reconhecido. Que bobagem, ele pensou. É lógico que ele me conhece. O maldito escreveu um livro sobre mim.

A noite avançou e Giovana não voltou a olhá-lo. Da mesma forma, toda vez que alguém comentava sobre “Não fui sincero com você”, ele desconversava. Dizia que não tinha lido o livro, que era literatura barata. Pelo visto, os amigos não sabiam que ele era o verdadeiro autor. Bruno observava o homem obsessivamente. Não o achava familiar, não sabia se o conhecia. Parecia um sujeito pacato, não alguém que escreve algo para expor a vida de uma pessoa que nunca lhe fez mal.

Quando já começava a se desinteressar pelo Giovana, pediu a conta e foi ao banheiro, enquanto o português fazia os cálculos. Demorou um pouco, pois notou poemas depravados escritos nas paredes. Alguns levemente homossexuais, nada que o incomodasse. Um homem bateu na porta dizendo que precisava mijar, fazendo com que Bruno saísse do banheiro. Ao abrir a porta, percebeu que sua mesa já estava ocupada. Era Giovana que o esperava.

– Não vai dar um abraço em um velho amigo? – Giovana se levantou de braços abertos. Bruno simplesmente se sentou. – Pelo visto, você está chateado comigo – Giovana passou a mão pelo rosto, simulando uma lágrima escorrendo do olho direito. – Tomei a liberdade de mexer na sua pasta enquanto você estava na casinha. Notei um livro cor de rosa. Péssima literatura. Mas, pelo visto, você já conversou com o Pestana, que me dedurou.

O garçom se aproximou para entregar a conta, mas Giovana indicou que eles ainda iam demorar mais um pouco. Pediu mais um chope e perguntou se Bruno queria alguma coisa também. Ele não respondeu.

– Eu só quero saber quem é você e por que escreveu sobre a minha vida.
– Você... Você não sabe quem sou eu? – Giovana riu. Virou-se para trás, como se fosse repetir a história para alguém, mas ninguém estava prestando atenção à conversa. – Você realmente não sabe?
– Não.
– Nossa, isso está mais divertido do que eu imaginava. Mal posso esperar para acrescentar um epílogo à segunda edição com esta conversa – Giovana aplaudiu a própria ideia. – Eu sempre soube que esta conversa aconteceria, mas na minha cabeça ela funcionaria diferente. Você já chegaria cheio de acusações. Não seria um banana perguntando quem sou eu.
– Giovana, escute...
– Não. Nada disso. Você não é meu amigo, você não me chama de Giovana. Meu nome é Ricardo Cruz. Isso te diz algo?

Como se alguém tivesse girado engrenagens há muito enferrujadas, o cérebro de Bruno começou a funcionar com um pouco de dificuldade. Ricardo Cruz. Sabia que conhecia o nome, mas não sabia exatamente de onde.

– Capítulo cinco – disse Giovana, como se aquilo significasse algo para Bruno.

Bruno tentou puxar pela memória o que acontecia no capítulo cinco. Como pulou algumas partes, não sabia tudo o que tinha sido escrito. Mas, por algum motivo, guardou que era o capítulo em que o irmão mais velho tinha ido para o exército. Nesse período, ele estava na sétima série.

– Sétima série... – ele balbuciou.
– Ah, você se lembra? Estou emocionado agora.
Ricardo Cruz era um colega de turma do Pedro II. Estudaram juntos da quinta à sétima série. Nunca foram exatamente amigos, mas conversavam bastante. Os dois eram os mais novos da turma e, enquanto os colegas já se vangloriavam de ter enfiado a mão debaixo da blusa daquela menina na festa do final de semana, os dois ainda trocavam figurinhas escondidos.

– Lá pela metade da sétima série, nós fomos humilhados pelos outros – contou Giovana. – Eles eram maiores e mais fortes. Nós sempre tivemos um pouco de medo. Então nós fizemos um pacto. Nos uniríamos para evitar surras e outras agressões. Um dia, você cismou que eles estavam olhando estranho para você. Corremos e nos trancamos no banheiro. Eles não estavam atrás de você, mas entraram no banheiro e perceberam que duas pessoas estavam dentro da mesma cabine. Eles forçaram a porta até que abrisse. “Me ajuda”, você disse. Eles riram e nos chamaram de viadinhos. Mandaram você explicar porque estávamos lá. Você lembra o que disse?

– Lembro...
– O que você disse? – Giovana exigiu que ele falasse. Bruno estava envergonhado, então o ghost writer gritou de um jeito que silenciou todo o bar. – O que você disse?!
– Eu disse que viadinho era você. Eu disse que você tinha me arrastado pro banheiro e tentado me beijar.
– E depois disso.
– Depois disso eles riram. E eu ri também. E você passou a ser chamado de viado por toda a turma.
Giovana estava transtornado. O silêncio na mesa de Bruno fez com que todos voltassem a conversar. Alguns comentavam o que tinha acabado de acontecer. Outros, mais discretos, voltavam-se para outros assuntos. O português finalmente levou o chope pedido por Giovana.

– Eu tenho certeza que você está se perguntando agora se este episódio é motivo suficiente para escrever um livro sobre a vida de alguém. É, sim. Eu passei o resto do ano tendo que me trancar no banheiro na hora do recreio para não apanhar. Um dia, meus pais foram chamados ao colégio para saber o que estava acontecendo. Quando voltaram para casa, brigaram. Começou por minha causa, mas acabou crescendo. Meu pai espancou a minha mãe e foi embora. Nunca mais voltou. Ela optou por se mudar, me colocar em outro colégio. Para meu azar, um dos nossos colegas foi estudar no mesmo lugar e espalhou a tal história. Passei o resto da vida sendo chamado de viado. Nenhuma garota chegava perto de mim. Só fui perder a virgindade aos vinte anos, em um puteiro. De viado para Giovana foi um pulo, mas pelo menos estas pessoas na mesa de trás me respeitam.

– E como você sabe tanto sobre a minha vida?
– Quando conheci o Pestana e ele me disse que queria que eu escrevesse um livro sobre uma pessoa medíocre com uma vida medíocre, pensei em escrever sobre a minha própria vida. Afinal, quem seria mais medíocre que eu? Foi aí que eu lembrei de você. Te segui por um tempo. Puxei papo com seus colegas. Com seus amigos. Com seus irmãos. Com sua namorada. Com todo mundo que já passou pela sua vida. Eu dizia “Oi, lembra de mim? Sou o fulano, amigo do Bruno, tá lembrado?” e as pessoas contavam tudo sobre você, como se fossemos íntimos. Eu me diverti um bocado reunindo essas informações. Aposto que sei mais sobre sua vida do que você mesmo.

Giovana virou a tulipa de uma vez só. Colocou uma nota de cinco reais na mesa, para cobrir sua parte. Sem se despedir, pegou seu casaco na outra mesa e deixou o bar. Bruno pagou a conta correndo o foi atrás do antigo colega. Alcançou-o na esquina.

– Valeu a pena? – ele perguntou, segurando o braço de Giovana.
– Se valeu a pena? Eu expus os podres do maior covarde de todos os tempos. Agora todo mundo sabe o merda que você é. Valeu muito a pena. Valeu a pena ser chamado de viado por tantos anos só para ver a sua cara de desespero agora.

O escritor acenou para um taxi e entrou. Bruno se sentiu perdido por um momento. Nem sabia para que lado ir, então ficou parado no meio da Mem de Sá. Um garotão lhe deu uma ombrada e um travesti gritava obscenidades do outro lado da rua. Ele não sentia ou ouvia nada. O celular tocava insistentemente. Ele só percebeu quando um mendigo o tocou no ombro.

– Está tocando, cavalheiro – disse o homem barbudo e malcheiroso. – Se for para mim, diga que ligo de volta amanhã – e saiu andando, arrastando um saco cheio de latas amassadas pelo chão.

Era Camila. Provavelmente queria saber onde ele estava, já que não voltara para casa. Ele esperava poder ir para a casa dela e deitar-se com a cabeça em seu colo enquanto ela acariciava seus cabelos. Atendeu com a voz embargada.

– Camila?
– Onde você está, cachorro? – a namorada estava furiosa. – Está com a piranha da Suzana?
– Suzana...? Camila, eu...
– Não interessa, Bruno. Venha para cá agora! Nós precisamos conversar!

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Biografia – Personagem medíocre (2 de 6)


Sandro Pestana. As pequenas letras pretas sobre as grandes letras vermelhas do título, estampadas na capa branca, indicavam o autor do livro. Sandro Pestana. Quem é Sandro Pestana?, pensava Bruno. E, principalmente, qual a motivação de Sandro Pestana para escrever um livro sobre a sua vida?

Provavelmente, o caminho mais fácil era descobrir quem ele era. Em uma busca rápida na internet, tudo o que Bruno descobriu era que Sandro Pestana havia escrito o livro Não fui sincero com você. Nenhuma foto. Nenhum perfil em rede social. Nenhuma menção em parte alguma. Já quando o bancário pesquisou sobre o livro descobriu que a biografia – biografia era mesmo a melhor forma de chamar? – estava entre os dez mais vendidos no país no último mês. O link de uma resenha chamou a atenção de Bruno. “Não fui sincero com você não é um livro comum. Não abra suas páginas procurando por uma história de ritmo frenético ou com grande apuro literário. O que faz o livro ser único é a mesmice. Bruno Castro, o protagonista, é um personagem medíocre que vive uma vida medíocre. Não conseguiu conquistar nada em sua vida e usa todas as suas forças para diminuir a importância das ações dos que estão ao seu redor. No fundo, é um livro de autoajuda, no sentido que qualquer pessoa que leia a obra se sentirá melhor com as escolhas da própria vida.”

Medíocre. Se alguém pedisse para que Bruno se descrevesse, ele jamais usaria esta palavra. Mas, após ler o livro e refletir a respeito, ele realmente parecia um personagem plano, sem graça. Vazio.

Ainda na busca pela identidade do autor, Bruno decidiu revirar todos os papéis que tinha em casa. Alguém que explorara tão bem a sua vida a ponto de escrever sua biografia provavelmente o conhecia de algum passado remoto. Da parte de cima do armário, o bancário puxou uma caixa de papelão empoeirada e ligeiramente amassada. Dentro delas, relíquias de seus primeiros anos. As cadernetas do Colégio Pedro II, fotos das turmas desde a pré-escola, a escalação do time de futebol dente de leite que disputou um campeonato em um campinho de terra, os colegas de catecismo da Igreja de São Judas Tadeu, fotos da festinha de uma amiga com as crianças que moravam no mesmo prédio – tudo armazenado em um mínimo espaço. Bruno gastou horas pesquisando. Achou um Sandro aqui, outro Sandro ali, alguém com sobrenome Pestana. E só. Nenhum Sandro Pestana em seu passado.

Talvez a única saída fosse recorrer a quem efetivamente divulgou sua história. Na última página do livro, achou o endereço da editora e para lá foi tentar descobrir quem havia perdido tempo documentando cada passo e pensamento seu.

– Em que posso ajudar? – perguntou a recepcionista, uma moça morena muito gorda que mesmo conversando com ele não tirava os olhos de uma revista de fofoca.
– Eu procuro por Sandro Pestana. Ele é autor de um livro que vocês publicaram.
– Qual é o assunto? – ela virava as páginas da revista.
– Gostaria de discutir com ele alguns pontos do livro que ele escreveu.
– Senhor, muita gente quer falar com os autores. Eles querem elogiar, criticar e, às vezes, até ameaçar de morte. Acredite em mim, senhor, sua opinião não faz diferença para quem escreveu o livro. Bem... desde que você tenha comprado o livro.
– Digamos então, minha querida, que eu queira processar o autor e, consequentemente, a editora por conta do livro. Neste caso, eu conseguiria um pouco mais de atenção?
– Senhor – ela finalmente tirou os olhos da revista, – o livro custa, sei lá, quarenta reais. Se o senhor não gostou, bola pra frente. Não precisa processar ninguém por isso. Quem sabe vendendo para um sebo o senhor consegue recuperar parte do investimento.
– Acredite em mim, minha cara, eu não pretendo me desfazer do livro. Provavelmente comprarei até mais exemplares. Esse livro conta a minha história. Minha vida. E eu não autorizei ninguém, nem este autor, nem esta editora, a falar sobre a minha vida. Por isso, acho que caberia um bom processo.
– O senhor é Bruno Castro? – a recepcionista deixou a revista de lado. Bruno concordou com a cabeça. – Senhor Bruno, mil desculpas, não era minha intenção. Eu li o livro. Fiquei fascinada. Ele me fez pensar muito sobre a minha vida e...
– E ver o quanto a sua vida é incrível em comparação com a minha. Eu sei.
– Olha... Nós não temos autorização para passar informações sobre os autores. Mas, se o senhor não contar para ninguém, posso ajuda-lo.

A mulher anotou um endereço em um pedaço de papel. Era tudo o que ele tinha em mãos e já era um lugar por onde ele poderia começar. Antes de Bruno sair, ela pediu que ele autografasse seu livro. Ele fingiu que não ouviu e partiu.

Sandro Pestana, o autor, morava em um prédio antigo em Laranjeiras. Segundo o porteiro, morava sozinho. Era um senhor de mais de setenta anos e Bruno não imaginava de onde poderia conhecê-lo. O velho abriu a porta. A casa fedia a urina e Sandro andava arrastando os pés e carregando uma bolsa coletora de fezes. Ele indicou uma cadeira para que o bancário sentasse, mas Bruno preferiu ficar em pé.

– O porteiro me disse que é sobre o meu livro?
– Sobre o que mais seria?
– Recebo muitas visitas. Em geral, são oficiais de justiça. É a primeira vez que alguém me procura sobre o livro.
– Vamos parar de palhaçada, por favor!  – Bruno estava irritado, mas logo foi dominado pela desconfiança quando percebeu que o velho se assuntou. – Você não sabe mesmo quem eu sou?
– Não, meu jovem. Me desculpe, mas eu não sei.
– Eu sou o Bruno Castro.
– O protagonista?
– O verdadeiro Bruno Castro. Eu quero saber como você sabe tanto sobre a minha vida.
– Ai, meu filho... Eu lamento... Eu não sabia.
– Não sabia o que? – Bruno voltou a levantar a voz.
– Eu não sabia que você existia. Veja bem... Eu amo literatura. Sempre gostei. E sempre tentei escrever. Posso dizer que tenho mais de dez livros pela metade e outros tantos rejeitados. Já ouvi de tudo. Que eu não sabia escrever, que minhas ideias eram fracas, que nada era original. Acabei desistindo. Quer dizer, desisti temporariamente, até descobrir que estava morrendo. Eu tenho câncer no intestino. Sei que não vou viver muito mais. Se eu durar mais dois anos já será muito. Minha mulher já morreu. Alzheimer. E não tivemos filhos. Quando eu morrer, acabou. Não vai restar nada de mim. Minha única chance de conseguir sobreviver, uma imortalidade momentânea, você sabe, seria conseguindo escrever um livro que se destacasse. Foi assim que “Eu não fui sincero com você” surgiu.
– Eu ainda não entendi como eu me encaixo nesta história.
– É muito simples. Eu estou velho e morrendo, arriscando todas as minhas fichas em um livro. Se ele for um fracasso, como todos os outros, acabou. Só tenho uma chance, entende? Foi por isso que eu contratei um... como se chama? É um escritor anônimo.
– Ghost writer.
– Isso exatamente. Conheci um rapaz. Li umas coisas dele e achei muito bom. Durante um tempo, ele me deu dicas para tentar escrever melhor. Antes de eu desistir, você sabe. Eu sabia que ele fazia uns bicos escrevendo pelos outros ou com pseudônimo. Ele escrevia essas histórias semieróticas de banca de jornal para meninas na puberdade. Esses livros de capa rosa com desenhos de mulheres ao lado de homens cabeludos sem camisa sobre cavalos. Perguntei se ele queria escrever para mim um livro de sucesso. Expliquei para ele que não estava atrás de dinheiro, ele poderia ficar com tudo. Me passando o dinheiro dos remédios, o resto era dele. Eu só queria meu nome na capa e o livro em todas as lojas. Ele topou e perguntou como eu queria a história. Disse para ele que eu sempre fui uma pessoa medíocre. Eu queria um personagem medíocre, sabe? Ele me disse que tinha uma história excelente sobre a pessoa mais medíocre que ele já conheceu.
– No caso, eu.
– Eu não sabia que ele escreveria exatamente a vida da pessoa. Nem que usaria o nome da pessoa. Achei que ele só ia se inspirar.
– Não tem problema. Não acho que o senhor tenha culpa. Mas eu gostaria de encontrar este ghost writer. Quem é ele?
– Eu não sei o nome... Que bobagem a minha. Como não saber o nome do homem que me deu a imortalidade? É um sujeito baixinho, deve ter a sua idade. Eu só o conheço por um apelido. O chamam de Giovana, por causa dos livros para meninas.
– E onde posso encontrá-lo?
– Ele frequenta um bar da lapa. Foi lá que eu o conheci. Muitos escritores vão lá, sempre durante a semana. Nos finais de semana, quando a molecada domina o lugar não é tão bom, não dá para conversar. Lá eles vão te dizer quem é. É só procurar o Giovana. Agora, se você me der licença, eu preciso esvaziar meu saco – disse o velho apontando para as fezes no saquinho.

Bruno se despediu. Ficou com pena do velho. Pena e um pouco de nojo. Quando já estava na rua, viu que o velho estava na janela, esperando que ele passasse.

– Ele me tornou imortal – o velho gritava da janela – e a você também. Em vez de ficar com raiva dele, aproveita esta pequena imortalidade. Quem sabe você não se torna menos medíocre?

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Biografia – Não fui sincero com você (1 de 6)



Ao longo de seus trinta e seis anos (trinta e nove, mas ela insistia em mentir a idade), Camila tinha acumulado um interessante rol de relacionamentos. Contando apenas os que duraram mais de dois meses, foram quatorze. Quatorze namorados ou quase namorados que por um certo tempo a amaram loucamente. Camila era uma mulher intensa, em todos os sentidos. Amava às últimas consequências, brigava como se fosse o fim do mundo. Nos tons de cinza entre um e outro, era uma boa confidente, sabia guardar segredos, era extremamente atenciosa e fazia valer sua vontade. Tinha muitas qualidades, mas entre elas não estava o talento para escolher presentes. Quando começou a namorar Bruno, há cinco anos, deu de presente um CD com uma coletânea do melhor da Bossa Nova, sem se tocar que o namorado só escutava músicas estrangeiras contemporâneas. Depois disso deu um perfume que Bruno nunca usou por ser alérgico e camisas menores do que ele costumava vestir. Para não errar, no último Natal ela deu um simples vale-presente de uma livraria.

Bruno não gostou. Por mais que os presentes fossem sempre tiros n’água, pelo menos eles representavam o esforço da namorada em agradá-lo. Sempre houve nele uma pontada de esperança de que um dia ela fosse acertar em cheio. Dessa vez, parecia que ela tinha escolhido a opção mais preguiçosa. E menos carinhosa. O vale-presente ficou rolando na carteira de Bruno por algumas semanas, até que Camila decidiu se distrair mexendo em seus pertences. Achou o vale, já um pouco amassado, entre a carteira do plano de saúde e o cartão do banco. A data de expiração mostrava que dois dias depois o presente seria só um vale mesmo, não podendo ser trocado por um livro.

No sábado, com o shopping cheio, Bruno foi tentar trocar o vale-presente. Não era acostumado a leitura e tinha o péssimo hábito de dificilmente passar da metade dos livros que comprava. Sem saber ao certo o que queria, percorreu os corredores da livraria em busca de algo interessante. Viu um exemplar de capa bonita, mas que a contracapa indicava que era uma leitura muito densa; não era para ele. Tinha aquele clássico da literatura francesa, mas recentemente lançaram aquele filme com aquela atriz famosa que adaptava a história. Ele esbarrou em um livro sobre sua série de TV favorita, mas era uma dessas obras que analisa a cultura pop do ponto de vista da filosofia. Talvez levasse um livro espírita qualquer, afinal estava precisando se encontrar consigo mesmo, se entender melhor. No caminho para a seção de livros religiosos, passou pela bancada dos best-sellers. Ali, viu que umas oito pessoas se empurravam, ombros com ombros, na tentativa de pegar um livro de capa branca com letras vermelhas.

Aparentemente, não era o novo capítulo daquela série medieval com dragões e feiticeiros. Nem um desses livros que misturam crimes com conspirações de sociedades secretas. Também não parecia dessas histórias que estavam mais para cartas dos leitores de revistas de mulher pelada do que para algo que deveria ser vendido em uma livraria. “Não fui sincero com você” era o título do livro. Bruno enfrentou a pequena aglomeração e conseguiu puxar um exemplar da pilha. O livro não era grosso; tinha menos de duzentas e cinquenta páginas, com letras grandes e linhas espaçadas. A orelha dizia que era “uma história de um homem real que não mede esforços para conseguir o que quer e pode passar por cima dos que o amam para conseguir o que quer”. Parecia chato e simplório, mas um detalhe chamou a atenção de Bruno: o protagonista da obra era um homônimo. Bruno Castro encarava um livro cujo personagem principal também se chamava Bruno Castro. Pela curiosidade, ele levou o exemplar.

Camilo ficou bastante satisfeita com a aquisição do namorado. Apesar da impessoalidade do vale-presente, ela agora sentia como se tivesse escolhido o próprio livro de capa branca. Bruno estava empolgado com o pequeno resumo que tinha lido, já que o personagem, como ele, era bancário, tinha quarenta anos, era solteiro, nascera no Catete e morava atualmente no Leme.

– Até uma Camila ele namora! – Bruno falava mais alto do que de costume. Durante todo o jantar, ele só conseguia falar do livro, do qual ainda não tinha lido um parágrafo sequer. Era tanto entusiasmo que ela dispensou o namorado para que ele pudesse se dedicar à leitura. Antes disso, eles mal conseguiriam conversar sobre qualquer outro assunto.

Normalmente, o livro passaria dias, quiçá semanas, jogado sobre a mesa da sala, ainda dentro do saco plástico, antes que Bruno sequer o folheasse. A coincidência de nomes, porém, fez com que ele se acomodasse no sofá para iniciar a leitura. Ele atravessou a madrugada, sem conseguir parar. Às vezes, pulava algumas páginas só para saber o que aconteceria na história mais adiante. Estava perplexo com o que lia. Havia uma boa dose de familiaridade no que ele lia. Quando finalmente virou a última página, não sabia ao certo o que fazer, não sabia como encarar aquelas palavras. Puxou o celular do bolso e ligou para Camila, que àquela hora ainda não estava acordada.

– O que foi, Bruno? Você está bem? Por que me ligou a essa hora?
– O livro, Camila... O livro é uma biografia. A minha biografia