“Era a segunda vez que Giovana se encontrava com Paolo. Desde que se esbarraram no estábulo do pai dela, a bela jovem não parava de pensar no capataz. As feições do rosto haviam se perdido, mas ela não conseguia se esquecer do maxilar forte, dos cabelos negros ondulados que caíam sobre os ombros e dos tórax peludo. Quando novamente se esbarraram, desta vez na casa de uma das criadas da fazenda, Giovana ficou admirando as sobrancelhas grossas, o nariz adunco e os lábios carnudos do napolitano. ‘Ele é um anjo em um corpo de demônio’, ela deixou escapar.”
Aquilo era um lixo. Mesmo não sendo um bom leitor, Bruno conseguia perceber que faltava talento ao ghost writer de Sandro Pestana. Pela segunda vez ele ia ao tal bar da lapa que era frequentado por escritores. No primeiro dia, deu uma gorda gorjeta ao garçom e pediu que o homem lhe indicasse quem era o Giovana. Ele não está aqui hoje, disse o português. Não é todo dia que vem. Mas quando estiver aqui você saberá quem é. Os amigos fazem questão de gritar alto seu apelido, apenas para envergonhá-lo.
Naquele segundo dia, o bar ainda estava vazio. Notou de cara que o português não se lembrava dele. Melhor assim. Queria ser discreto. Aos poucos, os clientes foram chegando. Eram assíduos, já que os garçons os chamavam pelo nome. Quando um sujeito alto, um pouco calvo e com um belo bigode que lhe cobria os lábios quando estava quieto chegou, o gerente fez questão de juntar algumas mesas, deixando-o na cabeceira. Ele carregava uma maleta com uma máquina de escrever; provavelmente um dos escritores.
No decorrer das duas horas seguintes, a grande mesa ficou cheia. Eram nove escritores discutindo Baudelaire, Piñon ou Bukowski, dependendo do momento. Ainda havia uma cadeira vaga na mesa e um tipo baixinho de barba deixou claro para o garçom que ainda esperavam alguém, quando o português perguntou se podia tirar a cadeira.
Lá pelas tantas, Giovana chegou, saudado pelos gritos dos colegas. Ele chacoalhou as mãos de todos e deu dois beijos no rosto do mais velho entre os escritores presentes. Jogou o casaco na cadeira vaga e pediu que o português lhe trouxesse um chope. Estava animado, de pé, batendo papo com os amigos quando o viu. Foi só por um momento, mas Bruno teve certeza de ter sido reconhecido. Que bobagem, ele pensou. É lógico que ele me conhece. O maldito escreveu um livro sobre mim.
A noite avançou e Giovana não voltou a olhá-lo. Da mesma forma, toda vez que alguém comentava sobre “Não fui sincero com você”, ele desconversava. Dizia que não tinha lido o livro, que era literatura barata. Pelo visto, os amigos não sabiam que ele era o verdadeiro autor. Bruno observava o homem obsessivamente. Não o achava familiar, não sabia se o conhecia. Parecia um sujeito pacato, não alguém que escreve algo para expor a vida de uma pessoa que nunca lhe fez mal.
Quando já começava a se desinteressar pelo Giovana, pediu a conta e foi ao banheiro, enquanto o português fazia os cálculos. Demorou um pouco, pois notou poemas depravados escritos nas paredes. Alguns levemente homossexuais, nada que o incomodasse. Um homem bateu na porta dizendo que precisava mijar, fazendo com que Bruno saísse do banheiro. Ao abrir a porta, percebeu que sua mesa já estava ocupada. Era Giovana que o esperava.
– Não vai dar um abraço em um velho amigo? – Giovana se levantou de braços abertos. Bruno simplesmente se sentou. – Pelo visto, você está chateado comigo – Giovana passou a mão pelo rosto, simulando uma lágrima escorrendo do olho direito. – Tomei a liberdade de mexer na sua pasta enquanto você estava na casinha. Notei um livro cor de rosa. Péssima literatura. Mas, pelo visto, você já conversou com o Pestana, que me dedurou.
O garçom se aproximou para entregar a conta, mas Giovana indicou que eles ainda iam demorar mais um pouco. Pediu mais um chope e perguntou se Bruno queria alguma coisa também. Ele não respondeu.
– Eu só quero saber quem é você e por que escreveu sobre a minha vida.
– Você... Você não sabe quem sou eu? – Giovana riu. Virou-se para trás, como se fosse repetir a história para alguém, mas ninguém estava prestando atenção à conversa. – Você realmente não sabe?
– Não.
– Nossa, isso está mais divertido do que eu imaginava. Mal posso esperar para acrescentar um epílogo à segunda edição com esta conversa – Giovana aplaudiu a própria ideia. – Eu sempre soube que esta conversa aconteceria, mas na minha cabeça ela funcionaria diferente. Você já chegaria cheio de acusações. Não seria um banana perguntando quem sou eu.
– Giovana, escute...
– Não. Nada disso. Você não é meu amigo, você não me chama de Giovana. Meu nome é Ricardo Cruz. Isso te diz algo?
Como se alguém tivesse girado engrenagens há muito enferrujadas, o cérebro de Bruno começou a funcionar com um pouco de dificuldade. Ricardo Cruz. Sabia que conhecia o nome, mas não sabia exatamente de onde.
– Capítulo cinco – disse Giovana, como se aquilo significasse algo para Bruno.
Bruno tentou puxar pela memória o que acontecia no capítulo cinco. Como pulou algumas partes, não sabia tudo o que tinha sido escrito. Mas, por algum motivo, guardou que era o capítulo em que o irmão mais velho tinha ido para o exército. Nesse período, ele estava na sétima série.
– Sétima série... – ele balbuciou.
– Ah, você se lembra? Estou emocionado agora.
Ricardo Cruz era um colega de turma do Pedro II. Estudaram juntos da quinta à sétima série. Nunca foram exatamente amigos, mas conversavam bastante. Os dois eram os mais novos da turma e, enquanto os colegas já se vangloriavam de ter enfiado a mão debaixo da blusa daquela menina na festa do final de semana, os dois ainda trocavam figurinhas escondidos.
– Lá pela metade da sétima série, nós fomos humilhados pelos outros – contou Giovana. – Eles eram maiores e mais fortes. Nós sempre tivemos um pouco de medo. Então nós fizemos um pacto. Nos uniríamos para evitar surras e outras agressões. Um dia, você cismou que eles estavam olhando estranho para você. Corremos e nos trancamos no banheiro. Eles não estavam atrás de você, mas entraram no banheiro e perceberam que duas pessoas estavam dentro da mesma cabine. Eles forçaram a porta até que abrisse. “Me ajuda”, você disse. Eles riram e nos chamaram de viadinhos. Mandaram você explicar porque estávamos lá. Você lembra o que disse?
– Lembro...
– O que você disse? – Giovana exigiu que ele falasse. Bruno estava envergonhado, então o ghost writer gritou de um jeito que silenciou todo o bar. – O que você disse?!
– Eu disse que viadinho era você. Eu disse que você tinha me arrastado pro banheiro e tentado me beijar.
– E depois disso.
– Depois disso eles riram. E eu ri também. E você passou a ser chamado de viado por toda a turma.
Giovana estava transtornado. O silêncio na mesa de Bruno fez com que todos voltassem a conversar. Alguns comentavam o que tinha acabado de acontecer. Outros, mais discretos, voltavam-se para outros assuntos. O português finalmente levou o chope pedido por Giovana.
– Eu tenho certeza que você está se perguntando agora se este episódio é motivo suficiente para escrever um livro sobre a vida de alguém. É, sim. Eu passei o resto do ano tendo que me trancar no banheiro na hora do recreio para não apanhar. Um dia, meus pais foram chamados ao colégio para saber o que estava acontecendo. Quando voltaram para casa, brigaram. Começou por minha causa, mas acabou crescendo. Meu pai espancou a minha mãe e foi embora. Nunca mais voltou. Ela optou por se mudar, me colocar em outro colégio. Para meu azar, um dos nossos colegas foi estudar no mesmo lugar e espalhou a tal história. Passei o resto da vida sendo chamado de viado. Nenhuma garota chegava perto de mim. Só fui perder a virgindade aos vinte anos, em um puteiro. De viado para Giovana foi um pulo, mas pelo menos estas pessoas na mesa de trás me respeitam.
– E como você sabe tanto sobre a minha vida?
– Quando conheci o Pestana e ele me disse que queria que eu escrevesse um livro sobre uma pessoa medíocre com uma vida medíocre, pensei em escrever sobre a minha própria vida. Afinal, quem seria mais medíocre que eu? Foi aí que eu lembrei de você. Te segui por um tempo. Puxei papo com seus colegas. Com seus amigos. Com seus irmãos. Com sua namorada. Com todo mundo que já passou pela sua vida. Eu dizia “Oi, lembra de mim? Sou o fulano, amigo do Bruno, tá lembrado?” e as pessoas contavam tudo sobre você, como se fossemos íntimos. Eu me diverti um bocado reunindo essas informações. Aposto que sei mais sobre sua vida do que você mesmo.
Giovana virou a tulipa de uma vez só. Colocou uma nota de cinco reais na mesa, para cobrir sua parte. Sem se despedir, pegou seu casaco na outra mesa e deixou o bar. Bruno pagou a conta correndo o foi atrás do antigo colega. Alcançou-o na esquina.
– Valeu a pena? – ele perguntou, segurando o braço de Giovana.
– Se valeu a pena? Eu expus os podres do maior covarde de todos os tempos. Agora todo mundo sabe o merda que você é. Valeu muito a pena. Valeu a pena ser chamado de viado por tantos anos só para ver a sua cara de desespero agora.
O escritor acenou para um taxi e entrou. Bruno se sentiu perdido por um momento. Nem sabia para que lado ir, então ficou parado no meio da Mem de Sá. Um garotão lhe deu uma ombrada e um travesti gritava obscenidades do outro lado da rua. Ele não sentia ou ouvia nada. O celular tocava insistentemente. Ele só percebeu quando um mendigo o tocou no ombro.
– Está tocando, cavalheiro – disse o homem barbudo e malcheiroso. – Se for para mim, diga que ligo de volta amanhã – e saiu andando, arrastando um saco cheio de latas amassadas pelo chão.
Era Camila. Provavelmente queria saber onde ele estava, já que não voltara para casa. Ele esperava poder ir para a casa dela e deitar-se com a cabeça em seu colo enquanto ela acariciava seus cabelos. Atendeu com a voz embargada.
– Camila?
– Onde você está, cachorro? – a namorada estava furiosa. – Está com a piranha da Suzana?
– Suzana...? Camila, eu...
– Não interessa, Bruno. Venha para cá agora! Nós precisamos conversar!
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