sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Triunfo – Não morra de amores (5 de 5)



O sol já tinha nascido há três horas e Linda Grant ainda não atendera o telefone. O sargento Alex Drake já havia procurado pela parceira no apartamento dela, na delegacia e em um restaurante onde ela tomava café da manhã todos os dias. Nada. Não se sabia nada da detetive desde que ela e Drake trocaram olhares na noite anterior.

O policial decidiu refazer os passos da mulher por quem se apaixonara. Foi até o Single’s Pub e procurou por Gary, o gerente. Ele disse não se lembrar a que horas ela partiu, mas garantiu que muitos vão embora sem esperar pelo resultado das fichas. “Talvez ela tenha ido atrás de uma dessas pessoas assim que os encontros-relâmpago acabaram”, disse o homem de trejeitos afeminados. Drake sabia que era exatamente isso o que tinha acontecido e perguntou pelo homem louro, magro e alto com o corte na mão. “O nome dele é Paul”, comentou o gerente. “Isso é praticamente tudo o que eu sei. Sempre toma um drinque depois dos encontros e vai embora sem saber dos resultados. Ele devia ficar mais. Sou um gênio em unir pessoas, sabe? Sem muita dificuldade poderia dizer que você e sua parceira têm um futuro interessante à frente. E vocês nem preencheram as fichas”, Gary sorria maliciosamente.

Em um computador, Gary puxou o cadastro do suspeito. Havia nome completo, endereço e mais alguns detalhes pessoais. Drake tinha tanta certeza de que nada daquilo era verdade que nem se deu ao trabalho de investigar pessoalmente. Pelo telefone, pediu ajuda para o perito Ted. Em poucos minutos, recebeu a confirmação que o único com o nome era um garoto de sete anos e o endereço correspondia a um terreno baldio. O sargento então pediu para que o gerente imprimisse a foto do suspeito.

Em um banco de praça, acompanhado de um café, Drake tentou organizar os pensamentos. “Seria bom ser como o Major Triunfo e poder voar por toda a cidade até achar Linda”, o sargento disse para si mesmo. A única coisa que ele sabia sobre o assassino era sua assinatura: flechas de balestra. Alex julgou que este era um bom ponto para começar.

Com a foto na mão, ele foi a três lojas que vendiam artigos esportivos, entre eles arcos, flechas e balestras. Nos dois primeiros não deu sorte, mas no terceiro encontrou alguém que parecia conhecer o suspeito. “O nome dele é Andrew, acho”, disse o vendedor, que não tinha mais do que vinte anos. “Já faz um bom tempo que não o vejo, mas tenho certeza que ele esteve aqui algumas vezes. Procurava flechas, equipamentos de caça esportiva, coisas do tipo. Me lembro que ele comprou muitos alvos e cavaletes, coisa grande, e pediu para entregar na casa dele. Eu trabalhava nas entregas nessa época. A loja é do meu pai, então já fiz de tudo por aqui. Se eu não me engano, ele morava em uma cabana na beira do Blue Lake, perto dos centros gastronômicos.”

Aquilo fazia sentido. Estava diferente da descrição de Ted, mas era aceitável. Em uma região turística, são poucos os frequentadores constantes que conseguem reparar padrões de comportamento suspeitos. Além disso, o barulho constante dos restaurantes e bares poderia ocultar qualquer grito e o sangue jogado no lago se dissolveria rapidamente, sem chamar atenção.

Alex pediu ajuda ao comissário Fisk para invadir a cabana e resgatar Linda, mas como o caso do Cupido não estava oficialmente aberto não havia nada o que ele pudesse fazer. “Mande o cretino do Major Triunfo com a imprensa então!”, gritou o sargento antes de desligar na cara de seu superior. Sozinho, ele foi para o lago procurar a cabana.

Não foi difícil deduzir o local. Havia cerca de dez cabanas na região mais turística, mas a maioria tinha as portas e janelas abertas, deixando claro que ninguém era mantido cativo dentro. Um dos imóveis, porém, estava totalmente lacrado, sem qualquer luz escapando pelas frestas. Drake tinha certeza que aquele era o lugar.

Com um chute, foi fácil para o sargento arrombar a porta. O lugar não oferecia grande resistência para alguém que tentasse invadi-lo. No escuro e com arma em punho, Drake explorou a cabana em busca de alguma dica de onde Linda e o Cupido pudessem estar. Não achou muito. Mas notou que uma porta dos fundos estava entreaberta. Pelo vão, viu o homem louro, magro e alto do dia anterior mexendo no porta-malas de um carro parado na beira do lago. O policial precisava achar rapidamente a parceira.

Toda a cabana estava muito empoeirada. Provavelmente o assassino não morava ali, só usava o lugar para matar suas vítimas. Um detalhe despertou a atenção de Drake. Um tapete na sala não tinha qualquer sinal de poeira e parecia ter sido desenrolado há pouco tempo. Alex afastou o tapete e achou uma espécie de alçapão que dava para uma sala escura. A Nona Sinfonia de Beethoven tocava bem alto.

Quando desceu a frágil escada para o porão, viu Linda Grant iluminada por algumas velas. Seu coração tropeçou de repente. Ela estava desacordada, amordaçada, com os pés amarrados e as mãos presas em um gancho no teto. O sargento correu para libertá-la e começou soltando suas mãos. Linda despertou sobressaltada, achando que era o Cupido, mas se acalmou ao ver Alex. Seus olhos quase sorriam. Drake ficou feliz com a reação da mulher, mas logo se surpreendeu com os olhos arregalados dela.

Som de alguém descendo a escada. Drake se vira, apontando a arma, mas é surpreendido. Uma flecha voa em sua direção e fica cravada em seu ombro direito. A arma escapa de sua mão e seu corpo é projetado para trás. A cabeça de Alex se choca contra uma parede. A visão fica turva. Fica escura. Ele apaga.
As mãos livres eram tudo o que linda precisava desde o começo. Mesmo com os braços fracos e dormentes, ela consegue arrancar a mordaça e as cordas dos pés. O Cupido demora a atacar. Está tentando encaixar uma nova flecha na balestra. Grande erro. Uma das primeiras lições do Cavaleiro Prateado foi sobre armas. Nunca use nada que precise ser recarregado. Evite coisas que vão te deixar na mão. Espadas, punhais e os próprios punhos são os melhores instrumentos em uma batalha.

Quando a flecha finalmente está no lugar certo, Linda já está muito perto do assassino. O Cupido podia parecer ameaçador para uma pessoa comum. Mas ela foi a Garota-Lebre. Passou anos enfrentando gente como o Doutor Destruição e a Serpente Humana. O homem louro só conseguiu captura-la porque ela realmente não esperava que ele a abordasse de maneira tão rápida. Ficou atônita na saída do Single’s Pub, deixando espaço para que o assassino a derrubasse com um lenço molhado em clorofórmio. Ele não teria outra chance como aquela.

O Cupido atirou em Linda, mas ela conseguiu desviar. O golpeou duas vezes no peito e nas costas, até que um chute no pescoço o deixou desacordado, caindo sobre a vitrola. A cabana voltou a ficar silenciosa.
Drake acordou quando os paramédicos chegaram para cuidar de seus ferimentos. Encontrou Linda muito forte, bem diferente da mulher amarrada que estava naquela cabana quando ele entrou. O Cupido, que todos chamavam naquele momento de James Cobb, estava desmaiado e algemado no banco de trás de uma viatura. O comissário Fisk dava entrevista a uma jornalista, falando sobre o importante trabalho da polícia de Blue Lake City na captura de Cobb.

Na ambulância, o sargento se esforçava para permanecer consciente. A dor da flechada no ombro era muito grande, mas o pior era a pancada na cabeça. Com dois paramédicos na traseira, o veículo partiu. Mas logo parou. As portas de trás se abriram e a policial Grant entrou sorrindo. “Você ia me abandonar nessa festa?”, ela segurava a mão do parceiro. "Vamos tentar não morrer de amores um pelo outro, está bem?"

"Acho que já é tarde demais para isso", disse Drake. Com ela por perto, ele se permitiu dormir novamente.

Na manhã seguinte, Linda levou o Blue Lake Chronicle para o quarto de Alex no hospital. Deitados juntos na cama, eles folheavam as páginas. Havia apenas uma pequena nota sobre a captura do Cupido, na página doze, que não citava o nome de nenhum dos dois. Eles não se importavam. Na capa, uma foto do Major Triunfo enfrentando uma pantera verde gigante.

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Triunfo – A flecha do Cupido (4 de 5)


Gary era um homem bonito, com cabelo bem cortado, barba de fios finos e trejeitos femininos. Era o responsável por organizar os encontros-relâmpago do Single’s Pub e estava assustado com a morte de seus clientes. “Fiquem à vontade, falem com quem quiserem”, dizia o gerente do estabelecimento. “Só, por favor, não falem dos assassinatos. Não queremos assustar os clientes. Já perdemos muitos que eram assíduos.”

O Single’s Pub era um bar muito bem decorado. Durante o dia funcionava como um pub comum, mas no início da noite se transformava. Um grande círculo era feito com vinte mesas, que receberiam vinte casais. Cada casal tinha três minutos para se conhecer. Então, soava uma campainha indicando que os homens deveria ir para a mesa à sua direita. Ao final, todos preenchiam fichas dizendo quais pessoas mais tinham impressionado e porque. Enquanto os participantes tinham liberdade para continuar no bar, Gary analisava as fichas, tentando juntar os casais que tinham se entrosado mais. Fora ele que juntou Leo e Jenny na semana anterior e Mike e Ruth há poucos dias.

“O senhor já notou alguém estranho nesses encontros?”, Linda Grant perguntou. O homem sorriu. “Minha querida, são encontros-relâmpagos. Se essas pessoas não fossem estranhas, não precisariam estar aqui.”
Alex e Linda decidiram participar do encontro naquela noite. Talvez assim poderiam se aproximar do assassino sem levantar suspeita. Para passarem despercebidos, os dois foram vestidos como se realmente investissem no encontro. Quando a detetive chegou, no horário combinado, Drake ficou boquiaberto. A ex-ginasta tinha braços muito fortes, sem perder a feminilidade Ela usava um vestido exageradamente curto que ressaltava suas pernas e havia trocado os tradicionais óculos escuros por uma sombra escura. Se havia um assassino naquele bar, ele estaria de olho nela.

O sargento Drake estava apaixonado. Conhecia Linda há apenas um dia, mas não imaginava sua vida sem ela. Em alguns momentos do dia até se esquecia da morte de seu antigo parceiro. “Você está linda”, ele disse. Grant corou. “E você terá seus três minutos para me convencer de que é o cara certo, como todos os outros!”

Os policiais se posicionaram nas mesas de forma a só se encontrar no último momento. Assim, poderiam trocar suas impressões antes que o assassino pudesse deixar o bar. Alex Drake conversou com muitas mulheres. Algumas pareciam psicopatas, mas ele estava convencido de que só um homem seria capaz de subjugar duas pessoas ao mesmo tempo, carregar seus corpos e ainda elaborar uma cena amarrando-os. Ele deixava as mulheres falarem e aproveitava para observar os homens mais próximos. Um deles se destacou. Usava camisa de flanela, tinha cabelos crespos e o tamanho certo para derrubar uma pessoa com um simples golpe.

Neste mesmo tempo, de três em três minutos, Linda Grant conversava com os homens, usando sua experiência de tantos anos enfrentando os piores tipos de criminosos para traçar um perfil de cada um dos potenciais suspeitos. Em geral, os homens pareciam amedrontados e incapazes de fazer qualquer mal, mas ela sabia o quanto um assassino podia esconder sua verdadeira face.

Quando, enfim, chegaram os três minutos finais, duas horas depois de os encontros começarem, Alex e Linda ficaram cara a cara. “O sujeito de camisa xadrez é o meu suspeito. Ele é forte e tenho quase certeza que há uma corda na bolsa que ele carrega. O que acha?”, o sargento questionou. A detetive não concordava. “Prefiro ir atrás do número sete”, ela apontava para um homem magro, alto e louro. “Ele estava com um corte na palma da mão esquerda. Acho que pode ser por manusear flechas.”

“Aquele magrelo?”, a voz de Drake saiu mais alta do que ele esperava. “Certamente se cortou fazendo uma salada. Ele não teria força para matar um homem como Mike Porter. De qualquer forma, siga seus instintos. Quando acabar eu vou atrás do grandão e você segue o magrelo. Nos ligamos mais tarde, ok?”

A campainha tocou e Gary passou para recolher as fichas de todos. O grandão foi o primeiro a ir embora, sem esperar o resultado das combinações de Gary. Provavelmente já tinha escolhido seus alvos. De longe, Alex piscou para Linda e foi atrás do homem de camisa de flanela. Ela continuava no bar, de olho no magrelo com o corte na mão.

O suspeito morava longe. Pegou um ônibus que ia para um subúrbio da cidade. Drake, em seu carro, o seguiu. O grandão desceu em um ponto escuro, perto de um bosque. Um lugar perfeito, na opinião do sargento, para matar pessoas sem ser visto ou ouvido. Com o carro estacionado, o policial seguiu o sujeito a pé.

O homem de camisa de flanela acidentalmente derrubou a sacola que carregava e Drake pode dar uma boa olhada no conteúdo. Havia um bom pedaço de corda, de espessura semelhante à usada para unir os corpos das vítimas, além de um pedaço de meio metro de cano, que poderia ser usado para golpear alguém, e umas poucas ferramentas.

Drake estava determinado a ver onde o homem morava. Ele já tinha investigado dois ou três serial killers e sabia que casas com porões, sem vizinhos próximos e com garagens fechadas eram espaços perfeitos para matar. Se o cara tivesse ainda uma van ou caminhonete para transportar os corpos, estaria praticamente assinando a confissão de culpa.

Quando o homem finalmente chegou em casa, após caminhar por cerca de quinze minutos em uma estrada que cortava o bosque, o sargento ficou morbidamente satisfeito com o que viu. A casa era isolada por muros, o que dificultaria uma fuga do terreno, caso uma das vítimas conseguisse escapar. A iluminação era extremamente precária e, fora algumas corujas, não havia viva alma nas redondezas. Drake esperou o homem entrar e depois pulou o muro para ver a casa mais de perto.

Por uma das janelas, o policial reparou que o grandão tinha equipamentos de caça e uma cabeça de veado na parede, ou seja, ele sabia como matar um ser de grande porte e já havia feito isso antes. Não seria complicado para ele exterminar um empresário ou um vendedora de discos usados. Alex viu ainda o homem abrir a porta que dava acesso ao porão e descer com a sacola na mão.

O sargento deu a volta na casa, em busca de algum acesso externo ao subsolo. Se ouvisse algum grito ou barulho estranho, invadiria imediatamente. Em vez disso, ao chegar aos fundos, encontrou muitas cordas, que desciam do telhado da casa. Apoiados na parede, alguns canos e telhas. O sujeito estava fazendo uma reforma na casa, o que explicaria o conteúdo da sacola.

Alguns passos em uma escada de madeira indicaram que o cara de camisa de flanela estava voltando para o térreo. Pelas janelas da casa, Drake acompanhava a movimentação. Além dele, havia outra pessoa na casa. Uma adolescente de cerca de 16 anos. Ela não parecia amedrontada. O homem deu alguns dólares para ela, que se despediu e saiu da casa.

Era uma babá. Na mesa da cozinha, duas crianças tomavam sorvete. Tinham menos de dez anos, Alex não conseguia precisar. Sob a lareira, uma foto do grandão com uma mulher morena e uma urna. Provavelmente as cinzas da esposa. O sujeito era viúvo, se dividia entre o trabalho, a reforma da casa e a criação dos filhos. Ia ao Single’s Pub para tentar conhecer novas pessoas, mas sua saída antes que Gary computasse os resultados das fichas mostravam que ele ainda não estava preparado para um novo relacionamento. Aquele homem nunca seria o assassino.

O sargento Alex Drake pulou o muro de volta e seguiu na estrada até onde tinha estacionado o carro. Tentava ligar para o celular de Linda, mas ela não atendia. Provavelmente estava com o telefone no modo silencioso enquanto seguia o outro suspeito. O policial esperava que sua parceira tivesse mais sorte que ele.

Às margens do Blue Lake, alguns remadores amadores guardavam seus barcos após uma agitada noite de treino. Os bares que atraíam os turistas estavam com o movimento fraco, por conta do vento frio que soprava. Um adolescente passeava com seus cachorros enquanto fumava escondido dos pais.

Em uma cabana à beira do lago, a música alta impedia que Linda ouvisse seu telefone tocar. Era o Allegro da Primavera. As Quatro Estações de Vivaldi. A detetive gostava muito de música clássica, mas naquele momento ela mal conseguia prestar atenção no que estava tocando. Estava focada no homem alto e magro, com o corte na mão, que ela vira no encontro-relâmpago. Ele conferia se uma flecha estava afiada e a colocava em sua balestra. Linda queria correr dali, avisar seu parceiro, mas estava amarrada, amordaçada e na mira do Cupido.

terça-feira, 27 de novembro de 2012

Triunfo – Garota-Lebre (3 de 5)


Do centésimo andar do Kane Building, Linda Grant observava os carros passando pelas ruas de Blue Lake City. Se ela olhasse com atenção para o horizonte era possível até ver o grande lago que batizava a cidade. Ela se lembrava de sua juventude em Moonlight City, quando costumava ver a cidade do alto.

Quando Linda foi dispensada da equipe de ginástica olímpica, seu futuro parecia incerto. Em meio à adolescência e com pais frustrados pelo fim da vida esportiva, ela acabava ficando pela rua após as aulas. Se envolveu com as pessoas erradas. Muito erradas.

Numa noite, após beber demais e consumir algumas variedades de entorpecentes, Linda tentou voltar para casa. Desnorteada, ela acabou se perdendo na região mais perigosa da cidade. Dois homens surgiram de um beco e tentaram violentá-la. Ainda que estivesse bêbada e drogada, a ex-ginasta conseguiu derrubar os dois. Isso foi o suficiente para que sua vida mudasse.

Linda já estava sendo observada há algumas semanas. Dos telhados, o Cavaleiro Prateado, protetor de Moonlight City, analisava se deveria acolher a menina. Naquela noite, ele tomou a decisão. Afastou Linda das más influências e a treinou. Deu a ela um propósito. Ao lado do herói com a armadura e a espada, ela se tornou a Garota-Lebre.

Hoje, esses dias pareciam distantes, mas serviam para lembrá-la que o mundo era um lugar estranho. No escritório de Mike Porter, ela e seu parceiro, o sargento Alex Drake, acompanhavam enquanto o perito Ted tirava fotos do empresário amarrado a uma jovem. Ela de pernas abertas e ele no meio, simulando uma posição sexual. Não restava dúvidas que era o mesmo assassino do caso da semana anterior, eliminando a possibilidade improvável de crime passional seguido de suicídio.

“Como eu suspeitava, eles foram mortos por flechas”, disse Ted, alinhando a longa barba e prendendo o cabelo em um rabo de cavalo. “Mas não são flechas de um arco como Robin Hood. As lâminas são menores. Acredito que a arma do crime seja uma balestra. Os corpos estão totalmente sem sangue, o que deixa claro que eles não foram mortos aqui. Mas acho que os corpos foram amarrados nesta sala mesmo. Há algumas fibras de corda naquele tapete, mostrando que o assassino manuseou o material aqui. Para mim é só um assassino e ele carregou os corpos um de cada vez, mas isso cabe a vocês.”

Drake estava mais interessado em saber como poderia ser o assassino. A expectativa era capturá-lo antes de um novo crime. “Sargento, esta não é minha área de especialidade”, Ted comentou, “mas eu diria que é um homem frio e sério. Muito calmo, pela maneira como matou e amarrou os dois. E deve ser solteiro e sem filhos, já que ele gastou muito tempo fazendo isso.”

Linda já havia visto muitos assassinos na vida. O Cavaleiro Prateado a treinou bem para achar pistas onde parece não haver. Ele era um herói, mas não tinha poderes. Seu diferencial era o intelecto e a habilidade de combate, coisas que ele ensinou bem à sua parceira-mirim.

“Não acho que as vítimas foram escolhidas ao acaso”, a detetive afirmou. “Acho que se investigarmos bem podemos descobrir algo em comum, que nos leve ao assassino.” Drake concordou e mandou que ela se dedicasse a isso. Ele ainda investigaria a cena do crime um pouco mais.

Na delegacia, ela levantou todas as informações possíveis. Ao contrário do que dizia a imprensa, Leonard e Jennifer, as vítimas amarradas como um abraço, não eram namorados. Um tinha o telefone do outro na memória do celular, mas os registros mais antigos datavam de dois dias antes do assassinato. Leo era mecânico e Jenny trabalhava em uma loja de discos usados.

No assassinato mais recente, Mike era um empresário em ascensão e Ruth era bailarina clássica. Ela tinha um cartão de visita dele na bolsa e ele tinha o nome dela anotado na agenda. Se conheciam há pouquíssimos dias também.

Os quatro moravam em bairros diferentes, trabalhavam em áreas díspares e tinham condições de vida ímpares. Estava difícil achar uma ligação além dos assassinatos em si. Linda apelou para uma técnica que usara diversas vezes quando saltava pelos telhados de Moonlight City usando maiô branco, máscara e orelhas de lebre, mas que jamais adotara em sua vida como policial. Ligou anonimamente para a família de uma das vítimas.

Ela apostou em Ruth, pois provavelmente a família não sabia do assassinato ainda. Atendeu uma mulher. Lara, irmã da bailarina. Grant disse que queria falar com Ruth, mas do outro lado da linha informaram que ela não voltara para casa. “Estamos preocupados com ela”, Lara se controlava para não chorar. “Ela saiu de casa anteontem e não voltou. Não deu notícias. Ela foi para aquele bar e nunca mais soubemos dela.”

Quando Alex Drake voltou para a delegacia, a detetive estava empolgada. Ele não havia conseguido nada mais na cena do crime. Não havia sequer uma imagem do circuito interno do prédio que pudesse ajudar a descobrir quem era o assassino. O sistema era desligado toda noite, dando margem para que o criminoso montasse sua escultura humana durante a madrugada.

“Acho que tenho algo que possa nos ajudar”, disse Linda, sorrindo. “Eu sei que eu não deveria estar feliz, pois quatro pessoas morreram, mas eu acho que estamos perto de resolver isso. Não achei qualquer coisa que ligasse os quatro mortos além de um pequeno detalhe. Todos eles frequentavam o mesmo bar. Single’s Pub. Um bar que realiza encontros-relâmpago. Foi lá que os casais se conheceram, duas noites antes dos corpos serem encontrados. E tenho certeza que também foi lá que eles conheceram o assassino.”

“Um assassino que dá flechadas em casais que acabaram de se apaixonar”, o sargento Drake refletia em voz alta. “Acho que estamos prestes a enfrentar o próprio Cupido.” Os dois se divertiram com o apelido do criminoso.

Linda e Alex entraram pela madrugada analisando o caso. Tinham certa sintonia, ainda que no início daquele dia ele não tenha ficado muito satisfeito em ter um novo parceiro. Depois do trabalho, saíram para comer e beberam um pouco. Contaram um pouco de suas vidas, ouviram um pouco da vida do outro. Ele deu uma carona a ela até em casa. Acabaram se beijando acidentalmente, os lábios dela roçando nos lábios do parceiro. Riram nervosos. Ele perguntou se ela queria tomar mais uma bebida. Ela disse que não queria misturar trabalho com vida amorosa, mas acabou chamando-o para subir. E, de manhã, os dois foram juntos para o trabalho, com Alex usando as mesmas roupas do dia anterior.

Triunfo – O verdadeiro herói (2 de 5)



O prefeito apertava forte a mão de Alex Drake, enquanto todos os seus colegas o aplaudiam. Há uma semana afastado do trabalho, tempo que dedicou a ficar com a família de Milton e enterrar o amigo, Drake não se surpreendeu com as câmeras de televisão na delegacia central. Era a sua promoção a sargento, mas não era atrás deles que os repórteres estavam. Todos queriam uma imagem do mais ilustre participante da cerimônia: o Major Triunfo.

Era sempre assim. Toda vez que havia alguma grande ação criminosa que era contida pelo herói de Blue Lake City o comissário Fisk escolhia um policial para promover. Uma forma de dizer “você é o verdadeiro herói”, quando todos sabiam que aquilo não era verdade.

O Major Triunfo fez um belo discurso para as câmeras. Disse o quanto a ação de Alex e Milton havia sido importante para que ele pudesse novamente prender Agridoce. Nada perto da verdade. Drake recebeu os cumprimentos do herói, foi saudado pelos colegas e saiu da sala. Foi fazer o que sabia melhor. Trabalhar.
Alex Drake conhecia todas as pessoas presentes à cerimônia. O prefeito, o comissário, o Major, os policiais, os repórteres eram os mesmos de sempre. Mas uma mulher era novidade. De cabelos louros bem lisos na altura do ombro, óculos escuros de estilo aviador e terninho preto, ela se destacava em meio à multidão de comedores de rosquinhas.

“Esta é a sua nova parceira”, disse o comissário Fisk, quando os dois finalmente foram apresentados. “Detetive Linda Grant.” Drake até pensou em dizer que não precisava de uma parceira, que poderia trabalhar sozinho, mas aquilo não era verdade.

Alex e Linda nunca haviam se conhecido, mas ele sabia bem quem era ela. Fora transferida de Moonlight City algumas semanas ates da morte de Milton. Mas não era esta a parte impressionante. Grant era ginasta. Um grande atleta até o início de sua adolescência, quando cresceu demais para os padrões do esporte. Acabou utilizando suas habilidades na academia de polícia, onde era mais forte que a maioria, podia saltar mais alto e tinha impressionantes habilidades marciais. Se tornou uma lenda em sua cidade. Mas quando denunciou seu parceiro para a corregedoria por relações com criminosos, ela preferiu pedir transferência.
“Eu sinto muito pelo seu parceiro”, Linda falou, tirando os óculos escuros. Os olhos eram muito claros. “Sei que vocês eram amigos.” Alex conduziu a moça até sua nova mesa, aquela que pertencia a Milton. Ainda havia uma foto do sargento com a mulher e o filho sobre a mesa. “Eu também lamento muito”, Drake guardou a foto em sua gaveta.

O agora sargento Alex Drake sentia que ainda havia um último trabalho a ser feito com Milton Schulz. Ele se lembrava do amigo, se preparando para enfrentar Agridoce, comentar um caso. Duas pessoas mortas e amarradas. Dois namorados. Ele pediu que Linda reunisse tudo o que pudesse sobre o caso.

Algumas horas depois, ela voltou com muitos papéis e fotos na mão. “Você sabia que arquivaram este caso?”, o tom de voz era pura indignação. “Alegaram que foi crime passional seguido de suicídio! Olhei essas fotos mil vezes e não consigo entender como alguém se mataria estando tão bem amarrado assim. Ou como se amarraria logo depois de se matar.”

Aquilo era normal em Blue Lake City. Qualquer caso que não tivesse ligação com o Major Triunfo era rapidamente arquivado. Era como se toda a polícia trabalhasse para dar destaque ao trabalho do herói. “Vou te explicar uma coisa, Grant. É assim que funciona por aqui. O prefeito está velho e não pode se reeleger. O comissário Fisk é ambicioso e conta com o apoio do Major. Se não der destaque na mídia, ou seja, se não tiver o Major envolvido, os casos vão para a gaveta.”

Linda riu com a sinceridade do sargento. “Parece até que você não gosta do Major Triunfo...” Drake não achou tanta graça. “Não gosto mesmo”, disse ele. “Esse anjo que paira sobre a nossa cidade escolhendo a quem salvar e quando salvar... É muito fácil brincar de herói quando um tiro não pode te machucar. E quando não se encara as consequências de seus atos. Me lembro de quando ele surgiu. Deu uma entrevista ao Blue Lake Chronicle dizendo que era só um sujeito comum até encontrar uma nave alienígena. A nave falou com ele, lhe deu grandes poderes como habilidade para voar, a força de cem homens, pele mais dura que que um diamante e a capacidade de soltar raios pelas mãos. Ele, então, percebeu que a cidade estava tomada pela violência e a polícia não era capaz de lidar com os problemas sozinha. Por isso, preparou um uniforma, adotou a alcunha de Major Triunfo e se apresentou como a salvação para todos os males.”

“Ele salvou muita gente, tenho que reconhecer”, Drake olhava as fotos do caso enquanto falava, “mas até que ponto isso é bom? Quando ele surgiu, os problemas que tínhamos eram assaltantes de banco e ladrões de carro. Mas parece que a presença dele nos céus se tornou um desafio para os loucos. Uma competição para ver quem conseguiria derrubar o herói de Blue Lake City. Você não deve se lembrar, era apenas uma criança. Um homem vestido de polvo...”

“Vestido de lula”, interrompeu a detetive. “Isso mesmo”, concordou Alex, “ele tinha até uma arma que disparava nanquim, como eu poderia esquecer. O Calamar, acho que esse era o nome dele, invadiu a assemblei legislativa e ameaçou matar um dos deputados. Me lembro que ele espalhou aquele nanquim nojento por todo o lugar. Eu tinha acabado de me tornar policial e ainda trabalhava nas ruas. Eu e alguns colegas fomos destacados para isolar a área e tentar conter o cara. Não estava nada fácil. Foi então que o Major Triunfo apareceu. Eu fiquei de boca aberta, vendo ele voar para dentro da assembleia, quebrando uma parede. O Calamar tentou airar nanquim nele, mas não conseguiu. O homem era rápido demais. Foi então que nós percebemos que os tentáculos nas roupas do Calamar eram mais do que enfeite. Eram membros biônicos que ele controlava por meio de um dispositivo em seu capacete. E aqueles tentáculos deram uma canseira no Major.”

Drake parecia especialmente abalado ao lembrar do caso e Linda percebeu que o desapreço do sargento pelo trabalho do herói não era recente. Não havia surgido com a morte de Milton Schulz, como ela supunha. “O triunfo do Major estava cada vez mais distante. Nunca vi o cara apanhar como daquela vez. Com o pouco de força que ainda tinha, nosso destemido herói agarrou o Calamar, cruzou uma parede e mergulhou no tanque de um caminhão de combustível. Foi a maior explosão que eu presenciei na minha vida. O Calamar morreu na hora e o Major saiu intacto de dentro das chamas. A foto estampou o jornal do dia seguinte, celebrando todo o poder do herói. O que não saiu foi o efeito colateral. Outras treze pessoas morreram com a explosão. Treze policiais que isolavam a área. Treze amigos meus. E, depois disso, em vez de ir para a cadeia, em vez de pelo menos levar um puxão de orelha, o Major Triunfo foi homenageado com uma estátua em frente à assembleia.”

Emocionado, um pouco revoltado, Alex ficou quieto por um tempo. E Linda respeitou. Ficaria ali, ao lado dele, calada, até que ele se sentisse à vontade para conversar novamente. Mas um detalhe fez com que a detetive quebrasse o silêncio. “Uma parte do relatório foi apagada!” Drake puxou o papel da mão dela e examinou com cuidado. Alguém havia escrito algo a lápis, mas outra pessoa decidiu que aquilo não deveria constar oficialmente no documento. Com um pedaço de grafite, o sargento esfregou a folha até que as letras em baixo relevo pudessem ser lidas.

“As perfurações nos corpos das vítimas foram infligidas a uma distância de cerca de dois metros. Pela profundidade e pelas lacerações, acredito que se trata de flechadas.” Os comentários eram assinados por um dos peritos do laboratório forense. Um homem de cabelos e barbas muito longos chamado simplesmente de Ted. Drake e Grant foram pedir ajuda.

“É exatamente como eu escrevi. Aquilo jamais foi um crime passional seguido de suicídio. Pela minha experiência, diria até que os dois passaram por grande trauma psicológico ates de serem mostos e os corpos foram lavados ates de serem amarrados”, disse Ted. “Amarrados como um abraço, que tipo de demente faria isso?”

Drake disse que queria reabrir o caso e perguntou se Ted podia ajudá-lo a encontrar mais provas. “Certamente”, respondeu o perito. “O comissário nunca vai permitir que eu examine os corpos novamente, mas acabei de ouvir algo pelo rádio. Acharam dois corpos amarrados em condições semelhantes em um escritório agora há pouco.”

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Triunfo – Agridoce (1 de 5)


“Comissário Fisk, precisamos de ajuda!”, gritava o sargento Milton Schulz. O dia estava particularmente quente. Escondidos atrás de uma pilha de contêineres, Schulz e seu parceiro, o detetive Alex Drake, esperavam reforços para chegar à beira do cais e dar um fim àquela loucura.

Quando os dois chegaram à delegacia central de Blue Lake City acharam que seria um dia normal. E em dias normais em Blue Lake City os policiais basicamente aplicavam multas e preenchiam papeladas. Eram raros os momentos tensos como aquele.

Ninguém sabia o nome verdadeiro da mulher, mas os tabloides a chamavam de Agridoce. Era uma ladra e assassina. Já havia sido presa algumas vezes, mas sempre dava um jeito de escapar. Naquela manhã, ela invadiu o porto de Blue Lake City em busca de um contêiner específico, que ainda estava procurando. Ela já havia matado alguns estivadores que cruzaram seu caminho e dois seguranças do porto. Schulz e Drake estavam por perto e ouviram os tiros.

“Abandonem o lugar”, gritava o comissário Jeremiah Fisk pelo rádio. “Ninguém entra no porto até que o Major chegue!” Aquelas ordens incomodavam os dois policiais. Eles não gostavam de ter que esperar alguém para agir. Eram policiais à moda antiga e preferiam pôr a mão na massa em vez de esperar que outra pessoa fizesse o trabalho por eles.

Schulz e Drake eram amigos há muitos anos. Cursaram a academia juntos e Alex era padrinho do filho de Milton. Provavelmente se Drake não tivesse um temperamento tão explosivo já fosse sargento como seu parceiro.

“Comissário, ela já matou algumas pessoas e há mais estivadores no porto. Se continuar assim, outras pessoas vão morrer”, o sargento tentava argumentar. “Não podemos ficar parados enquanto mais inocentes são feridos.”

O sargento Schulz segurou com firmeza seu revolver e fez sinal para que Drake o seguisse. No rádio, o comissário de polícia gritava. “Fiquem onde estão! Não ousem ir atrás da mulher! Esperem pelo Major!”
Os dois avançavam aos poucos pelo porto. “Você viu aqueles namorados que apareceram mortos e amarrados?”, Milton gostava de jogar conversa fora nos momentos de tensão. “Gostaria de investigar esse caso quando sairmos daqui”, ele fazia planos, como se isso pudesse evitar o pior dos destinos.

Agridoce tentava abrir um contêiner. Ela tinha três capangas, que também procuravam alguma coisa. Schulz observava com cautela, tentando traçar a melhor estratégia para deter a mulher. “Alex, acho melhor nos dividirmos”, disse Milton, mas ao se virar, viu que o detetive já estava longe. Drake corria sobre alguns contêineres na direção de Agridoce.

Era hora de agir, Milton sabia. Com seu revólver de seis tiros ele conseguiu abater facilmente os capangar da bandida, acertando seus joelhos ou ombros. Os tiros atraíram a atenção de Agridoce, mas não o suficiente para que Alex a prendesse. Foi então que tudo começou.

Do alto do contêiner, Drake sentiu uma brisa agradável. O sol brilhava belo no céu e suas roupas pareciam mais confortáveis do que de costume. O detetive já não lembrava mais o que fazia ali, quem estava perseguindo. Parou sobre o contêiner e ficou admirando a vista do mar. Então, de repente, ele olhou para baixo. Eram poucos metros até o chão, mas parecia que ele estava na beirada de uma ponte. Seu corpo era atraído pela gravidade e estava complicado se equilibrar, permanecer de pé. Alex suava frio e tremia. Tinha um pouco de medo de altura, mas era na verdade a única coisa que temia.

Agridoce tinha esse efeito sobre as pessoas. De alguma forma ela conseguia manipular os cérebros de suas vítimas. Era como se ela entrasse no hipocampo e fizessem com que os dados sensoriais fossem interpretados da maneira que ela quisesse. Primeiro, ela dava uma sensação agradável, fazendo com que seu alvo ficasse desestabilizado. Depois, transformava aquela sensação na pior possível, levando à tona o pior medo do indivíduo. Por isso era chamada de Agridoce.

Ao ver que seu parceiro estava em apuros, Schulz partiu para atacar a mulher. Deu alguns tiros, mas ainda estava um pouco distante e não conseguiu acertar. Ele via Alex em cima do contêiner tentando se afastar de uma beirada e então se aproximando perigosamente de outra, em uma coreografia que se repetia.

De passo em passo, o sargento chegava mais perto do campo de influência da criminosa. Primeiro viu que havia um cãozinho no cais, mas continuava focado em sua missão. Depois notou uns gatinhos e se lembrou do gato de seu filho, um pequeno persa branco, muito peludo e dócil. Ele abaixou para brincar com um dos animais. Milton era um homem feliz, mas estava muito sorridente naquele momento.

Com os dois homens dominados, Agridoce continuou sua busca. Em um dos contêineres, achou uma máquina. Parecia uma grande arma. Tentou ligar o equipamento, mas não havia fonte de energia. Isso a enfureceu profundamente. Alex sentiu essa fúria. Tinha a impressão de que estava cada vez mais alto e que a superfície diminuía sob seus pés. O medo fazia com que ele rangesse os dentes.

Schulz estava agachado, brincando com o gato. O bichano se deixava acariciar e ronronava. Mas a fúria de Agridoce fez com que o cenário mudasse. O gato arranhou a mão do sargento. Primeiro sangrou um pouco, mas em seguida uma aranha saiu do corte. Milton conseguiu jogá-la no chão e matá-la. Tinha pavor de aranhar. Então ele sentiu algumas patas se mexendo em sua mão. Outra aranha saiu do corte. E mais uma. E outra. Eram dezenas de aracnídeos correndo pelo corpo de policial, que tentava se livrar dos animais enquanto eles só aumentavam de número e de tamanho.

“Me perdoe, Judith”, disse Milton, como se sua esposa pudesse ouvi-lo. Então apontou o revólver para a própria cabeça e atirou.

Do alto do contêiner, Alex viu o amigo se matar, para fugir da agonia. E viu uma rajada de fogo surgir do céu e acertar Agridoce no peito. Seu medo sumiu em um segundo e ele se deu conta do que havia acontecido. Milton estava morto e por pouco ele próprio não havia morrido.

No céu claro daquela manhã, descendo como um anjo sem asas, Drake viu seu salvador se aproximar. Com seu uniforme verde, capa vermelha e máscara, o protetor de Blue Lake City havia novamente detido a ameaça. Os estivadores que estavam se escondendo voltaram a aparecer. Todos aplaudiam e gritavam o nome do herói. Gritavam o nome do Major Triunfo.

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Os Azuis – Jardim do Éden (5 de 5)


Desde que chegaram à pequena cidade, Nek não saíra do colo de Rav, o rebelde mestiço. Julia Flores observava os dois com um pouco de distância e sentia-se julgada o tempo todo pelos habitantes do lugar. Ela só sabia que em algum momento eles desistiram de mata-la, mas não sabia ao certo o que aconteceria dali em diante. Nek parecia se dar bem com Rav. No início, ficara assustado, pois jamais vira alguém que não fosse Julia, mas agora já se acostumava com o homem.

“Como você o chama?”, perguntou Rav, apontando para o menino. Julia sabia que estava sendo testada. Ela testou muita gente em sua carreira para saber quando alguém estava julgando se tirava ou não a vida de alguém. “Eu o chamo de filho”, disse a soldado, com a voz dura, “mas o nome dele é Nek, se é isso o que você quer saber.”

O mestiço riu, o que incomodou profundamente Flores. “É um nome apropriado”, disse Rav. “Nek significa ‘proteja-o’ em um antigo dialeto eeb. Nós usamos esse dialeto para encriptar nossas mensagens. Alguns ficam tanto tempo mergulhados no dialeto que acabam o adotando como idioma. Esse era o caso de um grupo nosso. Um grupo que vivia em um hospital que você invadiu. Um grupo que você matou.”

Julia se assustou com a quantidade de informações que o Exército Azul dispunha. Em teoria, exceto ela, Xavier e alguns outros soldados que revisaram seu relatório, mais ninguém sabia quem tinha sido responsável pelo massacre no Hospital da Misericórdia. “Havia uma mulher com esse grupo”, Rav deixou Nek no chão, enquanto falava com Julia. “O nome dela era Hag. Ela era uma amiga. E ela falava fluentemente o dialeto. Alguns dias antes de sabermos do massacre, eu recebi uma mensagem dela dizendo que seu filho tinha nascido. O nome da criança era Juj. Na mensagem, ela pedia para que eu o protegesse, caso algo acontecesse a ela. Pelo visto, Hag também pediu que você protegesse a criança.”

Flores deixou que uma lágrima rolasse. “Eu matei esta mulher. E eu ia matar o Nek da mesma maneira. Mas eu não consegui. Eu o escondi e o levei para casa. Minha ideia era achar um grupo rebelde que pudesse levar o garoto para longe”, a soldado se impressionava com a facilidade com que confessava seus atos. “Mas a verdade é que eu me afeiçoei. Passei a vê-lo como meu filho. Eu o amo. Decidi que não mataria mais nenhum eeb, que deixaria o esquadrão. Infelizmente, isso levantaria suspeitas. Outros soldados iriam à minha casa e descobririam sobre Nek. Eles matariam meu filho. Por isso, continuei matando eebs. É ridículo, eu sei”, ela chorava sem parar, “mas matei muitos eebs para proteger a vida de um.”

Rav levantou-se de onde estava e ajudou Julia a se levantar também. Ele a acompanhou em um passeio pela pequena cidade. “Aqui, não existem humanos ou eebs. Somos todos iguais, todos irmãos e amigos. Vocês nos chamam de Exército Azul, mas nós estamos longe disso. Somos mais como uma cooperativa, uma sociedade secreta que busca permanecer secreta. Temos aqui espaço para todos os que querem ser felizes, sem precisar ter medo ou vergonha. Temos certamente um lugar para Nek. E temos um lugar para você, se assim você quiser.”

Flores, tão dura e cruel enquanto soldado, estava frágil e chorosa. Não entendia bem como aquele povo que ela perseguiu e matou a aceitava com o coração tão aberto. “Como vocês chamam este lugar?”, ela tentava se habituar à nova cidade. “Eu chamo de Lar. Muitos chamam de Edn”, disse o mestiço. “É a palavra eeb para Paraíso.”

Edn. “O Jardim do Éden”, pensou Julia.

Rav levou a soldado até uma casa, onde uma humana muito gorda preparava comida ao lado de um eeb claramente idoso. A comida cheirava muito bem. “É um prato típico eeb preparado com ingredientes da Terra”, explicou o mestiço. “A cozinheira é Clara e seu ajudante é Kai. Eles são meus pais.” Julia abriu um imenso sorriso. Se sentia no meio de iguais, em uma família multirracial como a sua. Em poucos minutos, um dos companheiros de Rav levou Nek até a casa. Todos jantaram juntos.

Quando a noite caiu, Rav convidou Julia e Nek para dormir na casa dele. Disse que no dia seguinte procuraria um lugar bom para os dois, mas que naquela noite era melhor que ele fizesse companhia. Ela aceitou e Nek dormiu rapidamente, sob os cuidados de Clara. Julia ficou na sala, conversando com o mestiço, confessando seus pecados e lavando-os em lágrimas.

No início da madrugada, Caio, um dos humanos que tentara capturá-la mais cedo, entrou correndo na casa. Chamou Rav em um canto e disse algumas coisas em seu ouvido. Pela cara do líder do Exército Azul, ele não estava contente. “Acho que esta é uma boa hora para você nos ajudar”, Rav falou para Julia. “Há um homem estranho se aproximando da cidade e ele já matou três eebs no caminho.”

Caio e Rav não carregavam nenhuma arma. Era como se eles achassem que poderiam deter o homem apenas com um pedaço de corda e algumas palavras inspiradoras. Julia confiava mais na força e tinha sua pistola em mãos. De longe, os três ouviram alguns disparos feitos pelo estranho. Certamente, mais alguns eebs estariam mortos naquele momento.

Passo a passo, os disparos ficavam mais altos e a visão mais clara. Foi então que Flores percebeu quem era o agressor. Udo. Soldado Xavier. Seu parceiro e amigo. Ela congelou, enquanto Rav e Caio seguiam na direção do soldado. “Parem, ele é letal”, ela tentou dizer, mas a voz não saiu.

Sem nem olhar para os dois, Xavier matou Caio com um tiro no pescoço. Julia tremia. Rav agachou-se no chão, para ter certeza que seu amigo estava morto. O soldado trocava o pente de sua pistola, para continuar sua chacina. Com uma bala na agulha, apontou a arma para a cabeça do mestiço. Um tiro.

Uma pequena porção de fumaça saía do cano da arma de Julia Flores. Rav ainda checava os sinais vitais de Caio, em vão. Alguns passos para trás, Udo Xavier agonizava no chão. Ele já sabia que era questão de tempo até a morte chegar, mas tentava alcançar sua pistola na tentativa de levar mais alguns azuis com ele. O soldado parou, porém, quando viu que sua parceira era a sua algoz.

“Eu vim te proteger”, Xavier tentava falar. A bala atravessara seu pulmão direito e ele estava aos poucos se afogando no próprio sangue. “Achei que você estivesse morta ou em perigo e vim te proteger.” Flores voltou a chorar e pediu desculpas para o parceiro. “Por que?”, ele perguntou. Julia quis contar sobre Nek, mas Udo já estava morto.

Além dos corpos de Xavier e de Caio, alguns outros estavam ao redor de Julia. Rav checava quem estava vivo e quem já partira. Flores girava confusa em meio àquilo. Já estivera em muitas cenas de crime, mas nunca naquela situação. Nunca tendo matado um amigo e vendo os protetores de seu filho mortos. “Eu preciso ir. Eu lamento”, disse ela, fugindo do lugar.

Um pouco sujo de sangue, Rav a seguiu. Ela arrastava o corpo do soldado Xavier até seu carro. “Espere, Julia. O que você está fazendo?”, o mestiço observava com cautela. “Preciso ir”, disse ela. “Se Xavier me encontrou, outros me encontrarão. Preciso estar longe daqui quando isso ocorrer.” Ela arrancou o localizador da caminhonete de Udo e jogou no porta-malas de seu carro. Depois amarrou o velho veículo ao para-choque na caminhonete. O corpo de Xavier foi colocado sentado no banco do carona do carro da soldado.

“Esse caos nunca vai acabar”, Flores segurava com força as mãos azuis de Rav. “Mais soldados do esquadrão virão. Enquanto Tomás Souza estiver no poder, e talvez até depois dele, os soldados continuarão vindo. Eu vou afastá-los de Edn. Só me prometa uma coisa, Rav. Me prometa que você vai cuidar do meu filho. Me prometa que você vai criar Nek como se ele fosse seu.”

Rav concordou sem dizer qualquer palavra. Flores entrou na caminhonete e deu a partida, mas antes de sair voltou a falar com Rav. “Só mais uma coisa. Acho que o Nek não vai se lembrar de mim. Ele ainda é muito pequeno. Mas quando você puder, diga a ele quem eu fui. Diga a verdade. Conte que eu matei muitos eebs, mas que eu mudei por causa dele. E eu espero que você possa falar também dos meus próximos dias. E eu espero que os próximos dias sejam melhores para todos nós.”

Julia deixou Edn para trás. Dirigiu por poucas horas, até chegar ao posto de gasolina onde foi sequestrada. Lá, soltou seu carro da caminhonete e o estacionou próximo a uma bomba. Se despediu de Xavier com um beijo na esta de seu corpo morto. E explodiu o posto.

O fogo podia ser visto há quilômetros de distância e os soldados foram para lá, desviando o foco da cidade dos rebeldes. Encontraram o carro de Flores com o corpo de Udo e tiveram certeza que a soldado agora era uma terrorista. A principal inimiga do governo, por ser munida de importantes informações e ter um talento único para matar.

Do alto de um prédio abandonado, Julia Flores via as viaturas passando, procurando por ela nas imediações. A terrorista sabia que precisava chamar atenção. Precisava levar os soldados para longe de Edn. Para longe de seu filho. Nem que isso fosse custar sua própria vida.

terça-feira, 20 de novembro de 2012

Os Azuis – Alvo (4 de 5)

O soldado Xavier encontrou a casa de Julia Flores vazia. Não havia nada fora do lugar, nenhum bem ou documento estava desaparecido, indicando que o lugar não havia sido saqueado. Poderia parecer apenas que a mulher havia saído para trabalhar, se não fossem quatro detalhes. A porta estava destrancada e nenhum soldado do principal esquadrão do governo deixaria sua casa desprotegida. O carro de Julia não estava na garagem, embora naquele dia Xavier tivesse se comprometido a buscá-la. Em um quarto, roupas e alguns brinquedos indicavam que uma criança havia passado um tempo naquela casa, mas Flores não tinha filho, sobrinho, primo ou qualquer outo parente que se encaixasse no perfil. E, por fim, uma imensa letra azul marcava a fachada da residência da soldado.

Incomodado com a ausência de evidências que pudessem levá-lo aos captores da parceira, Xavier bateu de porta em porta. Muitos vizinhos fingiram que não estavam em casa, mas uma senhora o atendeu com boa vontade. Disse que na noite anterior ouviu um movimento de carro, um veículo saindo em alta velocidade da casa de Flores após um pequeno grupo que ela não era capaz de identificar ter feito a pichação. Para Udo, aquelas informações bastavam. Sua parceira havia mesmo sido sequestrada pelo Exército Azul.

Longe dali, Julia Flores dirigia. Seu carro não era potente ou novo, mas já tinha provado algumas vezes ser capaz de aguentar uma longa viagem. Ela não sabia bem para onde ia, mas já imaginava que seus antigos companheiros soldados estivessem procurando por ela naquele momento, depois de verem a letra azul em sua porta.

No banco de trás, Nek dormia. Havia passado a madrugada muito agitado. Estava aprendendo as primeiras palavras e já sabia falar “mamãe”. A estrutura vocal dos eebs não permitiam que ele falasse com muita clareza, os fonemas eram um pouco diferentes, mas Julia sabia bem o que o pequeno azul queria dizer.

Flores não havia planejado bem sua fuga. Quando viu que algum dos vizinhos a havia denunciado, instintivamente entrou em casa, pegou Nek, algumas comidas prontas e água. O essencial para que pudesse dirigir sem parar até que fosse necessário abastecer. E este momento estava chegando. Não sabia para onde estava indo, mas calculava mentalmente as melhores rotas para sair do país. Sabia que esta não era a solução definitiva. Muitas das nações ao redor eram aliadas do governo de Tomás Souza e a denunciariam, como o Paraguai, a Bolívia e a Venezuela. Já outros, como Argentina, Uruguai e Colômbia, não ofereciam risco a ela ou ao menino eeb, mas também não seria possível atravessar a fronteira sem chamar a atenção dos militares. Sem rumo, por enquanto, ela apenas dirigia.

Quase doze horas após sair de casa, a soldado era vencida pelo cansaço. Por duas vezes acabou saindo da pista, mas sem acidente. Nek permanecia dormindo no banco de trás, coberto por uma manta preta. Fazia frio naquela época do ano e Julia não tivera tempo de pegar um casaco apropriado para ele.

Uma sirene. Uma motocicleta a seguia, indicando que era necessário parar no acostamento da estrada. “Me encontraram”, pensou Flores. Ela julgava ter uma boa vantagem sobre seus antigos parceiros, mas parecia que estava enganada. “Ainda posso escapar. Sou mais forte e tenho melhor treinamento.” O plano era simples. Ela encostava, deixava o homem se aproximar, o matava e seguia viagem fora das estradas principais. Quando o homem da motocicleta encostou do lado do carro, porém, ela se surpreendeu. Era apenas um policial, não um dos soldados. Ela estava a salvo ainda. Por ser extremamente letal, nunca mandariam um policial comum para detê-la.

“A senhora pode sair do carro?”, perguntou imperativamente o policial. “Está com pressa?” Julia negou com a cabeça. Apresentou sua carteira de habilitação para conduzir e os documentos do carro. “A senhora não mora muito peto daqui. Pode me explicar o que está fazendo na região?” Flores não respondeu. Continuava parada, analisando se seria necessário matar o homem.

O policial pediu que ela se afastasse do veículo. Julia obedeceu. Ele puxou a chave da ignição e abriu o porta-malas. Não encontrou nada. Em seguida, olhou o motor. Pelos movimentos, Flores deduzia que o homem acreditava que havia algo escondido no carro. Com pequenos passos, ela seguia o policial, garantindo que ele ficasse sempre ao alcance de um chute, para que a soldado pudesse eliminá-lo antes que a arma fosse sacada.

Agachado no chão, o policial já estava convencido de que não havia qualquer problema com o veículo. Iria apenas solicitar que a mulher o seguisse até o posto policial mais próximo para checar a veracidade dos documentos. Foi então que ele percebeu. Um tecido cobrindo algo no banco detrás do carro. Talvez fossem armas e ninguém que não trabalhasse para o governo tinha permissão para andar armado. O homem colocou a mão na maçaneta da porta do carro, mas sentiu a mão da mulher fechando sua traqueia.

O homem foi jogado ao chão e levou a mão ao coldre para atirar em Julia, mas percebeu que não estava mais armado. Sua pistola havia sido jogada longe pela mulher. “Soldado Julia Flores, do esquadrão”, ela disse, antes que ele conseguisse por os pensamentos em ordem e fazer a pergunta. “Você não tem autorização para ver o que eu estou transportando”, Flores estendeu a mão para ajudar o homem a levantar.
“Por que não me disse desde o começo?”, o policial esfregava a garganta. Sabia que por pouco não havia morrido com o golpe. Movimentos letais desnecessários eram uma característica dos soldados. O homem pediu desculpa por ter atrapalhado o trabalho de Julia e ainda escoltou seu carro até a saída da cidade. “Por pouco”, pensou Flores, “por pouco”.

A motocicleta finalmente havia sumido no retrovisor de Julia e só então ela respirou aliviada. Quando colocou Nek no carro e partiu ela estava determinada a nunca mais matar ninguém, mas sabia que, pelo bem estar do menino, se fosse necessário, ela eliminaria quem se aproximasse demais.

O sono tinha passado. A adrenalina, constante companheira de trabalho, corria forte por suas veias. Poderia dirigir por mais doze horas sem piscar. Mas uma luz no painel indicava que o tanque do carro estava quase vazio. Em um posto de beira de estrada, Julia encostou.

Primeiro, fez uma busca visual para identificar ameaças. Depois, caminhou pelo estabelecimento, checando se estava seguro. Só aí abasteceu o veículo. A bomba era antiga e Flores sabia que ia demorar até conseguir sair do posto.

O barulho de chaves caindo e tudo ficou preto. Alguém havia colocado um capuz em Flores e ela sentia que tentavam algemá-la. A soldado não sentiu ninguém se aproximando, o que provava que não eram bandidos comuns. Eram terroristas. Mesmo sem enxergar, ela quebrou os braços de dois homens e estava preparada para a luta, mas ao retomar a visão, viu que sete homens apontavam armas para sua cabeça.

Como ordenado, ela se ajoelhou, mas seu semblante não mudou. Não implorou por sua vida, embora soubesse que eram seus últimos momentos. O líder do grupo se aproximou. Era um homem de pouco menos de vinte anos. Tinha a pele azul, mas não era viscosa como a dos eebs. E tinha um nariz e cabelos. Era um mestiço, embora Flores jamais ouvira falar que fosse possível cruzar humanos e alienígenas. “Rav”, disse um dos homens, entregando uma pistola para o mestiço. Provavelmente era o nome dele. Rav apontou a arma para Flores e ia atirar, mas um choro o interrompeu. Era Nek, no banco de trás. Havia acordado com o tumulto. Ao ver o pequeno eeb, o líder terrorista puxou Julia pelo cabelo e a jogou no porta-malas. Ela desmaiou com impacto.

Quando acordou, ainda estava na mala. O carro parou em algum ponto e ela ouviu os homens se preparando para deixá-la sair. A luz foi entrando no porta-malas aos poucos e Julia viu Nek no colo de Rav. O mestiço a ajudou a sair e a conduziu. Estavam em uma pequena cidade, com casas minúsculas umas coladas às outras. Parecia um filme de velho oeste.

Flores era boa em calcular pessoas. Isso era fundamental em seu trabalho, para não deixar que ninguém escapasse. E, pelas contas dela, cerca de três mil pessoas deviam morar naquela cidade, escondida no meio de uma floresta. Eram humanos, eebs e mestiços vivendo em harmonia, trabalhando e montando famílias. O lugar ideal para que ela criasse Nek, longe de todo o medo e de toda a opressão do presidente Tomás Souza.

O soldado Udo Xavier estava há horas na estrada. Desde que descobrira o desaparecimento de sua parceira ele percorrera diversas cidades em busca de alguma pista. Não havia descoberto nada, até que recebeu uma ligação de outro soldado. “Xavier, conseguimos”, dizia o soldado Bento. “Conseguimos ativar remotamente o rastreador do carro da soldado Flores. Estou te enviando a localização e mandando alguns soldados do esquadrão para te ajudar. Vamos resgatar Flores se ela ainda estiver viva e eliminar todos os terroristas que encontrarmos.”

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Os Azuis – Massacre (3 de 5)


Seis meses atrás.

Havia mais de mil soldados no esquadrão, espalhados por todo o país, mas nenhum deles era tão admirado quando Udo Xavier e Julia Flores. O próprio presidente Tomás Souza os convidava anualmente para um jantar, representando toda a corporação. A competência, porém, trazia seus riscos. Além de estarem mais expostos às ações do Exército Azul, os dois soldados costumavam trabalhar em missões onde o contingente necessário era muito maior do que uma dupla. Mas eles sempre davam conta.

O Hospital da Misericórdia já fora o maior de todo o país. Com capacidade para atender a milhares de pessoas por dia, ele já estava desativado há dois anos. Havia uma suspeita do governo de que todo o local estava contaminado por uma doença transmitida pelos eebs. Agora, abandonado, o hospital era apenas um esqueleto do que já havia sido.

Não havia letra azul na entrada ou qualquer sinal semelhante que indicasse a presença de alienígenas, mas era público que alguns eebs viviam no lugar. Com medo de uma possível contaminação, os humanos preferiam deixar para lá. Xavier e Flores não tinham medo de morrer, apenas o de não conseguir concluir a missão.

Com o pé, Xavier abriu a porta. Os dois avançaram pelo corredor principal sem produzir som algum. Sabiam que em pouco tempo os tiros alertariam a todos da presença dos soldados, mas preferiam pegar os primeiros alienígenas de surpresa. Julia entrava de sala em sala, procurando suas vítimas, enquanto Udo dava cobertura do corredor. Sete salas e nem sinal de alguém escondido. Na oitava, Julia fez um sinal para o parceiro. Na maior parte do tempo eles não precisavam falar para se fazerem entender.

Flores entrou na sala com seu fuzil na mão. Com cautela, foi até um balcão. E atirou. Foram diversos disparos contra a madeira. Alguns tiros quebraram as janelas, espalhando cacos de vidro pelo chão. Após a investida, ela foi checar atrás do balcão. Encontrou quatro eebs mortos.

No corredor, Udo foi surpreendido por dois azuis que fugiram correndo. Ele os perseguiu, até exterminá-los perto dos elevadores. Com uma faca, ele espetava os corpos, para ter certeza que não estavam se fingindo de mortos. De sala em sala, naquele andar, os soldados Xavier e Flores eliminaram diversos alvos. Ao todo, foram vinte e sete eebs. Magros e sujos, eles não eram grandes adversários. Poderiam ser mortos sem qualquer uma das armas se fosse necessário.

Quando subiram para o segundo andar, os soldados estavam muito tranquilos, mas encontraram um objeto que fez com que redobrassem a atenção. Havia uma bandeira do Exército Azul. Aquilo significava que os alienígenas naquele prédio eram ligados aos terroristas que lutavam para derrubar o governo. Enquanto Flores recarregava as armas, Xavier arremessou granadas de gás, para dificultar a ação dos rebeldes.
A fumaça subiu, obrigando alienígenas e alguns humanos a fugirem de suas posições. Do hall principal, em suas máscaras, Udo e Julia atiravam em qualquer coisa que se mexia. Mais treze corpos em poucos minutos. Avançaram, então para o terceiro e último andar.

No pavimento superior do hospital, o cenário era muito diferente. Todos os móveis – camas, escrivaninhas, poltronas, gabinetes, bancos, armários e sofás – compunham um macabro labirinto putrefato. Era muito difícil enxergar e as máscaras complicavam a respiração dos soldados. Os dois adotaram a formação padrão, com Flores na frente abrindo caminho e Xavier atrás dando cobertura. Atravessaram o labirinto por mais de meia hora, sem achar qualquer sinal de vida.

Flores sentiu um forte calor e seu corpo foi jogado contra uma parede. Uma explosão havia ocorrido numa sala próxima. Certamente, uma tentativa de matar os soldados. Com o impacto, Julia perdeu a máscara e o capacete, fazendo-a sentir-se um pouco tonta. Quando finalmente pôs-se de pé, a soldado não encontrou seu parceiro. Foi então que o ouviu gritar. “Flores, fora daí!” Ao olhar pela janela, viu que a explosão jogara Udo para o lado de fora do hospital. O homem estava caído no gramado, talvez com uma perna quebrada. Ela não podia ir embora. Precisaria concluir a missão sozinha.

Na sala onde ocorreu a explosão, Flores encontrou um corpo carbonizado. Pela estrutura do rosto, era um humano. Sacrificou a própria vida para tentar proteger os alienígenas que se escondiam, o pobre diabo. Do outro lado da sala, havia uma porta que dava para um velho armário. Dentro dele, algumas armas brancas. Para evitar que o arsenal fosse usado contra ela, Julia lançou uma granada contra o armário. Uma nova explosão.

Fuzil na mão, Julia Flores lutava para vencer o labirinto do terceiro andar. Matou cinco eebs e dois humanos que tentaram impedir sua ação. Aquele era um dia para se comemorar, pensava ela.

Quando, enfim, deu a volta completa no labirinto de móveis, a soldado Flores acreditou que seu trabalho estava terminado. Foi surpreendida, contudo, por um grito de mulher no segundo andar, ainda tomado em parte pela fumaça. Volta e meia, um novo grito era ouvido, tornando mais fácil a localização da origem do som. Em um quarto, que estava selado por uma estante caída, uma mulher gritava.

A tiros, Flores derrubou a porta. Dentro, um eeb macho segurava uma eeb fêmea. Ela gritava, tentando desvencilhar-se. Mesmo com a soldado na quarto, o alienígena insistia em tentar calar a fêmea azul. Com dois tiros, Julia resolveu a situação. Um na testa dele, outro no ventre dela. A eeb agonizava no chão e apontava para uma escrivaninha. Seus olhos imploravam algo para Flores e seus lábios deixaram escapar uma palavra no último suspiro: Nek.

Com os dois mortos, a solado Flores foi conferir o que havia na escrivaninha. Alguns papéis, um telefone quebrado, nada de útil. Mas sob o móvel havia uma preciosidade. Um bebê. Um bebê azul que não tinha mais do que alguns dias. E, até onde Julia sabia, o primeiro bebê eeb nascido no país em muito tempo.

Ela deixou o bebê sobre a escrivaninha e puxou uma pistola. Tentou atirar, mas a arma não respondeu. Estava descarregada. Flores, então, tirou uma faca da bota esquerda. Uma pequena faca muito afiada que poderia fatias o pequeno alienígena com enorme facilidade. Julia posicionou a faca no pescoço azul da criança e estava pronta para cortá-lo quando olhou os olhos do bebê. Olhos azuis escuros que brilhavam. Olhos inocentes. Olhos de um bebê que nunca tinha feito mal a ninguém. De um bebê cuja mãe morrera tentando alertar o inimigo da presença do pequeno. Aquele bebê não deveria morrer daquela forma. Nem naquele local. Merecia uma chance.

Julia deixou a criança embaixo da escrivaninha, tendo certeza de que estava bem coberta. Arrastou para fora os corpos dos outros eebs que estavam no quarto. Com a estante que antes selava a porta dificultou a entrada de qualquer pessoa no local. E foi embora.

Flores levou seu parceiro para um hospital do governo e foi para a sede do esquadrão. Preparou todos os relatórios da operação e esperou que a equipe de limpeza retirasse todos os corpos de alienígenas e humanos que haviam sido mortos por ela e Xavier mais cedo. E então voltou para o Hospital da Misericórdia. Já era noite e não era possível enxergar nada no lugar, mas Julia sabia bem para onde ir. No segundo andar, apanhou o bebê, levou escondido para seu carro e, sem que seus vizinhos vissem, o protegeu em casa. Deu a ele o nome de Nek, como a eeb fêmea havia dito. Começou criando-o como um refém, mas acabou virando um filho. Em seis meses, a criança já se parecia com um humano de dois anos. E tratava Julia com todo o carinho do mundo.


Hoje.

O soldado Udo Xavier nunca foi conhecido pelo seu temperamento amigável. Teve diversos parceiros até finalmente ser posto para trabalhar com Flores, a única pessoa que parecia mais violenta que ele. Sua aura era tão pesada que até quem não o conhecesse, ao vê-lo, tremia de medo.

Apesar de ser impiedoso ao matar azuis e prender os humanos envolvidos, Xavier tinha um curioso modus operandi. Sempre deixava um dos humanos livre. E fazia visitas constantes, regadas a bons golpes e ameaças. Em pouco tempo, essas pessoas passavam a coletar informações nas ruas que pudessem ajudar o soldado. Viravam informantes.

Naquela noite, um dos informantes havia ligado para o número particular de Xavier. Disse que era urgente. “É sobre sua amiga Flores”, disse o informante. “A informação é garantida, já chequei com alguns companheiros. O Exército Azul vai atrás dela. Querem fazer ela de exemplo para todos os soldados. Ela, mais do que qualquer outro de vocês, tem muito sangue azul nas mãos. A cabeça dela será enviada para o próprio presidente e este será apenas o começo de uma rebelião. Os azuis cansaram de sentir medo.”

Xavier agradeceu a informação. E matou o portador das más notícias.

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Os Azuis – O líder (2 de 5)



As pessoas se aglomeravam ao redor dele, tentando alcançar suas mãos na esperança de serem agraciadas com uma saudação. A mística que se formara em torno de Tomás Souza era muito forte. Dotado de extrema beleza e simpatia ainda maior, o presidente eleito era um grande orador e estava cativando todo o país.

A trajetória de Tomás até o executivo federal fora marcada por dois momentos singulares. Depois de ser o mais jovem senador da história, o homem de pele morena e olhos grandes se tornou a grande aposta de seu partido, que há anos estava relegado à oposição. Durante os quatro anos que precederam a eleição presidencial ele foi preparado para se tornar o político mais querido do país.

Tão logo a campanha eleitoral começou oficialmente, seus adversários políticos surgiram com um fato que poderia manchar seu nome para sempre: Tomás Souza era filho de Marcos, o homem que dezesseis anos antes matou um eeb, iniciando um período sangrento da história. Com o fato revelado, Tomás despencou nas pesquisas e muitos analistas já o apontavam sem chance na disputa.

A verdade era que a relação entre humanos e eebs nunca fora cordial. Depois de uma primeira etapa, em que os alienígenas compartilharam seus conhecimentos e tecnologias, os terráqueos começaram a enxergar nos azuis a culpa para todos os males. No primeiro ano de convivência, foram muitos os atritos verbais até que Marcos Souza matou Jaz, um jovem eeb que namorava sua filha.

O caso dividiu a população. Muitos acreditavam que os eebs não deveriam ser molestados, já que possuíam natureza altamente pacífica. Mas outra parte dos humanos resolveu agir com as próprias forças. Alienígenas foram chacinados em diversos pontos do país. Aqueles que tinham melhores condições financeiras fugiram para a Europa e para a América do Norte, mas a grande maioria dos eebs trabalhava em cargos que pagavam pouco mais do que eles dependiam para sobreviver.

Para evitar que a violência fugisse ao controle, o governo da época criou um esquadrão para reprimir qualquer ataque a alienígenas. Chamados apenas de “soldados”, independente de sua patente, e vestidos em uniformes negros, estes militares utilizaram de grandes doses de crueldade para que os eebs fossem deixados em paz. Em poucos anos, os casos caíram a praticamente zero, mas ainda havia um ódio guardado no coração de muitos contra os azuis.

Tomás usou este ódio a seu favor. Em vez de negar os atos de seu pai, ele transformou a luta contra os eebs em sua bandeira. Seu plano de governo falava em aumentar impostos para os alienígenas e em criar barreiras para dificultar que eles conseguissem empregos ou financiamentos. No longo prazo, qualquer pessoa com a pele azul deixaria de ser cidadã.

O discurso surtiu efeito e Tomás voltou a subir nas pesquisas. Os adversários chamavam atenção para a falta de respeito com os direitos humanos, ainda que os eebs não fossem humanos. A falta de carisma dos demais candidatos serviu apenas para que Souza crescesse.

Tomás Souza conseguiu ir para o segundo turno, com cerca de trinta por cento dos votos. Enfrentaria Diego Romão, que tinha apoio do então presidente e dos principais líderes internacionais. Foi então que aconteceu o segundo episódio que marcou a trajetória política do candidato.

Na véspera da votação, Tomás se reuniu com patrocinadores de sua campanha. Todos gritavam o slogan do candidato: “Um país menos azul”. Souza fazia questão de relembrar o ato de seu pai e era muito aplaudido. Mas, de um momento para o outro, no meio de uma frase, ele se calou e caiu. Fora atingido por uma bala, direto no abdome. Levado às pressas para um hospital, precisou ser operado. Ficou entre a vida e a morte naquela noite.

O atirador, um homem de vinte anos que discordava dos ideais de Tomás, foi morto pelos seguranças do partido. O candidato a vice-presidente na chapa de Souza, contudo, enxergou uma oportunidade. Sequestraram e mataram um eeb que morava próximo ao local da reunião e colocaram nele a culpa pelo atentado.

Com Tomás em estado grave e um alienígena acusado de tentar matá-lo, a opinião pública mudou. Dos trinta por cento do primeiro turno, Souza saltou para mais de setenta por cento, um índice impressionante para qualquer candidato. As pessoas saíam às ruas e queimavam bandeiras e camisas azuis, em sinal de apoio à candidatura.

Já eleito, após uma internação de três semanas, Tomás foi comemorar nos braços do povo. Tomou posse em dois meses e iniciou seu governo, que foi marcado por acusações da oposição de ser corrupto e negligente com questões sociais. Para se fortalecer, o presidente dissolveu o congresso, aprovou uma nova constituição e determinou que era crime ser ou proteger alienígenas.

Os soldados, que antes protegiam os eebs, passaram a caçá-los. Todos eram mortos e seus cúmplices humanos eram levados para uma penitenciária de segurança máxima apelidada de Fazenda. Lá, longe dos olhos do povo, os acusados eram julgados sem direito a defesa e obrigados a realizar trabalhos forçados.
O modelo da Fazenda se tornou lucrativo. Sem a mão de obra barata dos eebs, cabia aos prisioneiros desempenhar as funções mais baixas de hierarquia de trabalho. Logo o governo abriu novas Fazendas espalhadas por todo o país.

Os quinhentos mil eebs que chegaram à Terra em pouco tempo se transformaram em seis milhões. Em todo o país, eles eram cerca de dois milhões quando Tomás foi eleito, mas estima-se que logo nos princípios de seu governo ele conseguiu matar quase um milhão de azuis. Os demais ficaram escondidos, sendo alimentados e protegidos por famílias que arriscavam as próprias vidas diariamente.

Os opositores também foram presos como traidores e os poucos que escaparam dos soldados formaram uma aliança rebelde chamada de Exército Azul. Este grupo era responsável por diversos atos terroristas, como o assassinato de agentes do governo e militares e a destruição de uma das Fazendas. Os soldados tentavam identificar as lideranças e as bases do Exército, mas pouco descobriram em quatro anos de governo.

Tomás Souza era um homem belo e carismático. Como leal soldado do governo, Julia Flores mantinha em sua casa uma foto do presidente. E nos últimos meses ela sentia como se Tomás a observasse, julgando-a pela grande mudança em sua conduta. Para evitar os olhares do presidente, a soldado Flores havia trocado a foto de lugar, colocando em um quarto que ela jamais frequentava.

Devido aos seus muitos anos de treinamento, Julia mantinha sempre uma arma ao lado da cama. Tinha sono leve e acordava a cada duas horas para checar se estava tudo bem. No meio da madrugada, acordou e foi olhar pela janela. Não havia nada. Nos últimos dias, ela se sentia duplamente ameaçada. Era um alvo potencial para o Exército Azul e poderia ser denunciada pelos vizinhos por esconder um eeb. Para garantir que Nek estava em segurança, ela foi ao quarto da criança.

O pequenino azul dormia calmamente, mas acordou assustado pouco depois de ela chegar ao quarto. Um barulho do lado de fora. Uma freada brusca, som de aerossol e em seguida um carro acelerando. Flores correu para a porta, com a pistola na mão, e viu o carro dobrando a esquina, em alta velocidade.

O barulho também assustou os vizinhos, que acordavam e acendiam suas luzes. Julia Flores achou melhor voltar para dentro de casa, antes que alguém aparecesse fazendo perguntas. Mas ao virar-se para sua porta, a soldado viu seu pior pesadelo. Um que nas últimas noites insistia em assombrá-la. Uma enorme letra azul marcava a fachada de sua outrora segura moradia.

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Os Azuis – Soldados (1 de 5)



A zona rural da cidade, bem distante do Centro, não era um lugar agradável de morar. Era muito quente e nem todas as casas tinham energia elétrica e saneamento básico. Os chefes de família, a grande maioria sem empregos, sustentavam suas casas com pequenas colheitas no quintal e criação de pequenos animais. As crianças não morriam de fome, mas também não tinham muita energia. Faltava asfalto e calçamento nas ruas e o transporte público não chegava nem perto quando chovia.

A pior coisa da zona rural eram os rumores. Com casas afastadas umas das outras, era fácil que boatos sobre determinada família se espalhassem quase na velocidade dos meios de comunicação. E, quando os boatos chegavam aos ouvidos do governo, os soldados nada amados apareciam para visitar os bairros mais afastados.

Com grossas roupas pretas, coletes e capacetes, os soldados Xavier e Flores tinham tudo para andar com dificuldade. Havia, porém, certa graça nos movimentos dos dois. Com as luvas de couro, Udo Xavier batia à porta de uma das casas. Um pouco mais atrás, Julia Flores mantinha, por segurança, sua mão próxima à arma. Na porta da casa, uma enorme letra “a” azul era o convite para a presença dos soldados.

“Pois não”, uma senhora muito velha olhou pela pequena janelinha da porta. Ao ver que eram os soldados do governo ela tratou de abrir passagem para a entrada dos homens de preto. Dentro de seu uniforme, não era possível perceber que Flores era uma mulher.

Além da velha, mais sete pessoas viviam na casa – duas filhas, um genro, três netos e um velho que não enxergava ou ouvia. “Ele é o verdadeiro dono da casa”, explicou a velha, “eu e minha família viemos para cá, pois nossa casa foi destruída.”

As famílias sabiam bem o que significava a visita dos soldados. Para evitar transtornos, cada um dos moradores da casa ficou em um cômodo diferente. O soldado Xavier observava minuciosamente cada detalhe, procurando um quadro torto ou um tapete fora do lugar. Qualquer coisa que lhe indicasse um caminho a seguir. Já a soldado Flores preferia conversar. Da pior maneira possível.

Julia Flores foi até um dos quartos e chamou a filha mais nova da velha. Era uma mulher de mais de quarenta anos, com cabelos quebradiços ficando grisalhos. A pele muito queimada pelo sol a fazia parecer uma anciã precoce. A soldado guiou a mulher até o quarto da mãe. Com a velha amarrada a uma cadeira, Flores puxou um facão da cintura. “Me diga, por favor, onde está o que estamos procurando e poupe esta velha do sofrimento”, disse Flores, com a lâmina no pescoço da velha.

A filha balançava a cabeça e chorava. Implorava misericórdia. “Não sabemos de nada. Nem sabemos quem pintou a letra azul. Isto é um engano, senhora”, a mulher, com as mãos juntas, fazia uma oração para a soldado. Para mostrar que falava sério, Flores cortou um dos dedos da velha. “Não me tome por fraca apenas porque eu sou mulher. Eu vou descobrir onde estão. Eu tenho um talento, que é fazer as pessoas falarem, e você vai falar”, as palavras quentes de Julia embaçavam o plástico do visor do capacete.

“Poupe minha mãe. Ela não tem nada com isso. Minha mãe sempre foi uma defensora do presidente, apesar do que alguns vizinhos dizem”, a filha insistia na inocência da família. A velha já havia desmaiado com a dor e com o sangramento. “Me diga onde estão!”, exigiu Flores, enquanto abria a garganta da velha com a faca. A mulher envelhecida nada disse. A soldado Flores foi então atrás de uma das crianças da casa.

Quando uma menina de cerca de oito anos foi amarrada à cadeira onde a velha sangrou até morrer, Udo Xavier se aproximou. “Já chega, Flores! Eles não sabem de nada!” A soldado se sentiu contrariada, mas acatou o comando de seu superior. “Aqui está”, disse ele, entregando para a jovem anciã um cartão magnético. “Vocês podem sacar a compensação pela morte da sua mãe. Nos desculpem qualquer transtorno.”

Em frente à casa, no carro de patrulha, Julia Flores foi obrigada a ouvir de seu parceiro um longo sermão sobre o uso de força excessiva. Ela, contudo, parecia não estar ouvindo. Observava um mapa e o riscava. E então sorriu. “O que foi, Flores?”

A soldado explicou. Aquele era o quarto chamado sem solução naquele mês. A quarta casa marcada com a letra azul em que eles não encontravam nada. As casas, porém, quase formavam uma linha reta. Uma de cada vez, elas avançavam para oeste da cidade, sempre a uma distância de um quilômetro e meio a dois quilômetros. Era um padrão. Flores fez a linha no mapa, no sentindo oposto às ocorrências, e terminou o traço em uma casa a cerca de dois quilômetros do primeiro chamado sem resultado.

Com pressa, Xavier dirigiu até a tal casa. Era uma casa velha, como todas as outras. Paredes recobertas de barro, para tentar afastar o frio da noite, e janelas de madeira. Não havia uma letra azul na porta, mas, naquele momento, Flores e Xavier não precisavam de convite para entrar. Com uma barra de ferro pesada, os soldados derrubaram a porta da casa.

Dentro, a poeira formava uma névoa que dificultava a visão dos homens de preto. Sempre que alguém se movia, correndo para fugir dos soldados, Julia atirava na cabeça para matar. Em menos de cinco minutos de ação, cinco pessoas já estavam sem vida no chão da casa. E aquele era só o começo.

A casa tinha dois andares e um porão. Com o andar térreo totalmente vasculhado, os soldados se dividiram. Flores ficou com o andar superior, enquanto Xavier revistava o subsolo. Em cima, ela não encontrou ameaça. Apenas duas adolescentes escondidas em um armário, nada que demandasse um disparo de sua arma. Já no porão, Udo matou uma mulher e fez um homem prisioneiro. Não acharam sinal do que estavam procurando, até que Julia utilizou suas habilidades.

Com o homem dominado no porão amarrado a uma cadeira, a lâmina no pescoço, e uma das adolescentes assistindo à cena, Flores deu o primeiro passo e arrancou uma das orelhas do sujeito. O grito podia ser ouvido por toda a casa. A adolescente chorava e escondia o rosto com as mãos, mas nada falava. Quando a soldado deu sinal de que arrancaria o nariz do homem e ele deu novo grito, uma voz foi ouvida do andar superior. “Parem, por favor! Deixem meu marido em paz! Eu conto onde eles estão!”, soluçava uma mulher com uma cicatriz na bochecha. “Nós marcamos as outras casas para afastar vocês de nós! Nós só queríamos protege-los!”

Ela guiou os soldados até uma porta falsa, escondida na lareira. Atrás da porta, quinze pessoas ne encolhiam nos cantos, se abraçando e se protegendo mutuamente. Eram pessoas de pele azul viscosa e sem nariz. Alienígenas chegados à Terra há cerca de vinte anos. Eebs. Com dezessete tiros, Xavier e Flores mataram todos os “azuis”.

Ainda naquela tarde um ônibus da polícia parou ao lado da casa e os humanos que protegiam os eebs foram levados para a Fazenda. Ninguém jamais voltou da Fazenda. Flores e Xavier preencheram seus relatórios e partiram. Em poucas horas, eles sabiam, outra casa seria marcada com uma letra azul e eles voltariam a agir.
Julia Flores não morava na zona rural da cidade. Vivia em um bairro planejado, um condomínio bem protegido. Privilégio das pessoas que tinham a confiança do presidente. Uma casa de paredes brancas, com um carro popular na garagem. Esse era o luxo da vida da soldado. Ao chegar em casa, ela tomou um longo banho. Deixou que a água caísse no seu corpo e limpasse o sangue azul que havia lhe impregnado a pele.

Se arrumou com uma camisola branca folgada, colocou sua comida no forno e foi ver seu filho. A criança aparentava ter dois anos de idade, mas era mais nova que isso. Ficava o dia todo sozinho em um quarto, com as janelas trancadas e cobertas por placas de aço. Não tinha permissão para ver a rua, nem para andar pela casa. Quando Flores entrou no quarto, o menino deu um sorriso alegre e pulou em seu braços. Ela o abraçou forte. Seu nome era Nek. Era um menino inteligente e alegre e seria o orgulho de Julia Flores. Seria, se não tivesse a pele viscosa e azul.

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Os Azuis – Prelúdio


Quando os policiais derrubaram a porta, Marcos jogou a pistola no chão e levantou as mãos imediatamente. Com diversas armas apontadas em sua direção, ele foi obrigado a se deitar de bruços no chão. Algemado, o comerciante foi tirado de seu apartamento e jogado no camburão. Uma multidão de curiosos se formou na rua, tentando entender o que havia acontecido. Antes de o camburão partir, Marcus ainda viu o rabecão chegar para levar embora os corpos de Luciana e Jaz.

Marcos esperou quase uma hora até que o delegado chegasse para o interrogatório. Ele não tinha pressa. Sabia que ficaria preso por muito tempo. E estava disposto a confessar tudo o que tinha feito naquela noite. Quando o delegado chegou à sala, acompanhado do advogado do acusado, o comerciante estava ansioso para contar o que tinha acontecido. Nem foi preciso que alguém lhe fizesse qualquer pergunta.

“Senhor delegado, eu sou culpado. Eu matei a minha filha. Não foi culpa minha, não era a minha intenção, mas eu a matei e mereço ser punido por isso. Eu ia matar o garoto, o Jaz, ele me obrigou a isso, não me deu escolha, mas ela se meteu no meio...”

O advogado recomendou que Marcos não falasse nada sobre o ocorrido, mas o comerciante não dava ouvidos. Além dos dois e do delegado, havia na sala dois policiais e um datilógrafo, que anotava tudo o que era dito pelo homem.

“A Luciana, a minha menina, tinha apenas dezesseis anos. Ela era muito nova para entender da vida e esse Jaz mexeu com a cabeça dela. Há um ano, antes de esses azuis chegarem, ela era uma criança incrível. Era amável, inteligente, dedicada. Mas o garoto azul transformou a minha menina em uma aberração. Eu não aguentei.”

O delegado interrompeu a confissão de Marcos para fazer um comentário ao datilógrafo. “Que fique registrado, por favor, que estes ‘azuis’ a quem o senhor Souza se refere são os eebs”, disse o homem, com o datilógrafo batendo freneticamente todas as palavras.

“Isso mesmo”, prosseguiu Marcos. “Eebs. Minha filha insistia em me corrigir toda vez que eu me referia a eles como ‘os azuis’. Eebs. Malditos alienígenas que acabaram com a minha vida. Eu sou um comerciante, sabe? Eduquei a Luciana e o meu filho mais velho com muito sacrifício. Fiz de tudo para que eles estudassem em boas escolas e fossem boas pessoas. Meu garoto trabalha em uma repartição pública. Tem grandes planos e eu confio nele. Luciana também tinha grandes planos. Mas tudo mudou quando aqueles malditos quinhentos mil alienígenas chegaram à Terra. Já ouvi o Jaz contar a versão deles milhões de vezes. Os azuis viviam em um planeta ameaçado pela explosão de uma estrela próxima. Construíram naves potentes utilizando todos os recursos possíveis do planeta e fugiram para o lugar mais próximo onde pudessem viver. Para a nossa desgraça, esse lugar era a Terra.

“Eu não vi nada demais quando eles chegaram. Me lembro de ter lido nos jornais que muitos líderes religiosos e chefes de Estado se mostraram contra a presença deles, mas eu decidi dar um voto de confiança. Alguns deles, uns quinze mil, montaram uma comunidade. Vocês devem conhecer o lugar, parece uma imensa favela e fica a poucos metros da minha casa. O valor do meu imóvel despencou, mas eu tive fé de que era por uma boa causa. Eu estava errado. Eles começaram a trabalhar. Abriram comércios, vendendo coisas que eles mesmos produziam. Eles não dormem, então têm muito mais tempo para trabalhar. E eles praticamente não comem, fazendo com que a margem de lucro deles fosse infinitamente menor que a minha. Eu não tinha como competir com eles. Fui obrigado a fechar a minha loja e estou devendo impostos e os salários dos meus funcionários estão bem atrasados. Em um ano a minha vida ficou péssima. Se não fosse a ajuda que recebo do meu filho, eu e a Luciana estaríamos vivendo debaixo da ponte. Talvez fosse até melhor e ela ainda estivesse viva.

“Há algumas semanas, a minha filha levou lá para casa o tal do Jaz. Queria me apresentar o namorado novo. Quando vi aquele garoto azul parado no meio da minha sala, quis morrer. Não criei a minha menina com tanto sacrifício para que ela se envolvesse com um alienígena. Tudo o que esse povo azul e sem nariz fez desde que chegou foi degradar a nossa cidade e destruir nossa economia. Não ia ter em minha família uma aberração como aquela. Para piorar, a Luciana ainda levou o azulzinho a uma missa e eu fui obrigado a ouvir o padre fazer um sermão sobre o quanto não é natural uma relação entre humanos e eebs. Deus fez a mulher para ser companheira de um homem, não para se deitar com um alienígena. Se eles fossem filhos de Deus teriam sido criados à Sua imagem e semelhança. Não seriam azuis com peles viscosas.

“Até aí, o meu problema era doméstico, mas a coisa piorou. Proibi minha filha de encontrar com o Jaz e, um dia, quando estou voltando para casa, encontro um grupo de azuis na minha porta. Eles se convidaram a entrar na minha casa e passaram quase duas horas tentando me convencer de que eu estava errado de tentar impedir o namoro da Luciana com o garoto. Eles falavam com aquele sotaque ridículo, sem dominar nosso idioma. Eu fui praticamente ameaçado a sair do caminho. Já imaginou se toda a comunidade azul vem para a minha porta me cobrar satisfações?

“Nessa hora eu abri meus olhos. Enquanto esses eebs, esses cânceres azuis, continuarem a perambular pelas nossas, não há qualquer chance para que os humanos prosperem. Escrevam o que eu estou dizendo: em poucos anos este não será apenas o planeta azul. Será o planeta dos azuis. Não haverá espaço para que nós possamos viver aqui. Foi por isso que eu decidi ir embora. Pegar a minha filha e ir para o mais longe possível. Dizem que os azuis não conseguem respirar direito em ambientes frios, então pensei em ir para a Argentina. Para a Patagônia. Talvez lá seja o lugar para recomeçar longe desses alienígenas.

“As malas já estavam na sala e meu carro estava abastecido. Só faltava a Luciana chegar em casa para que pudéssemos deixar de vez aquela vida para trás. Mas, quando ela passou pela porta, o maldito Jaz estava com ela. Que diabos de nome é Jaz? Esses cretinos e seus nomes monossilábicos. A Luciana disse que não iria. Que ela amava o azul e preferia viver com os outros azuis do que ir embora comigo.

“Então o cretino viscoso começou a se aproximar de mim, falando aquela língua esquisita. Ele se movia muito rápido, então corri até uma das malas e peguei minha pistola. Me virei e atirei quase sem olhar. Quando vi, tinha atirado na minha filha. Minha doce menina se atirou na frente do alienígena. Eu acertei bem no peito dela e o meu bebê parecia se afogar com o próprio sangue, bem na frente dos meus olhos. Fiquei desesperado. Não sabia o que fazer. Congelei. Fiquei vários minutos parado no meio da sala, vendo o azul mexendo na minha filha. Ele soprava seus olhos, murmurava em seus ouvidos, como se aquilo fosse revivê-la de alguma forma. E eu continuava imóvel no meio da sala.

“Não demorou muito para que vocês chegassem. Foram uns vinte minutos no máximo. Pela janela, eu pude ver os caros na minha porta. O maldito Jaz se levantou e começou a andar. Ele simplesmente ia embora. Eu não pude deixar. Minha menina estava morta, eu não podia simplesmente deixar que o maldito continuasse vivo, hipnotizando as filhas de outros homens honestos e trabalhadores. E por isso eu atirei. Atirei uma, duas, três vezes no azul. Vi sua cabeça estourar em uma nuvem de sangue azul. E teria atirado mais, até ficar sem munição, se vocês não tivessem arrombado a porta.

“O garoto azul acabou com a minha vida, seduziu minha filha e me fez atirar nela. E ele é só um. Ao todo, são quinhentos mil azuis espalhados pelo planeta. De pouquinho em pouquinho, eles vão acabar com a humanidade, uma família por vez. E foi por isso que eu o matei. E mataria de novo, ainda que custasse a vida da minha amada filha outra vez.”

Quando, enfim, Marcos se calou, o delegado acenou para que um policial levasse o comerciante para uma das celas. “Deixe ele separado dos demais presos. Ele matou a própria filha. Não sabemos o que os demais prisioneiros podem fazer com ele”, disse o delegado.

O assassinato de Luciana e Jaz foi o primeiro ato de violência envolvendo humanos e eebs. Mas certamente não seria o último.