Seis meses atrás.
Havia mais de mil soldados no esquadrão, espalhados por todo
o país, mas nenhum deles era tão admirado quando Udo Xavier e Julia Flores. O
próprio presidente Tomás Souza os convidava anualmente para um jantar,
representando toda a corporação. A competência, porém, trazia seus riscos. Além
de estarem mais expostos às ações do Exército Azul, os dois soldados costumavam
trabalhar em missões onde o contingente necessário era muito maior do que uma
dupla. Mas eles sempre davam conta.
O Hospital da Misericórdia já fora o maior de todo o país.
Com capacidade para atender a milhares de pessoas por dia, ele já estava
desativado há dois anos. Havia uma suspeita do governo de que todo o local
estava contaminado por uma doença transmitida pelos eebs. Agora, abandonado, o
hospital era apenas um esqueleto do que já havia sido.
Não havia letra azul na entrada ou qualquer sinal semelhante
que indicasse a presença de alienígenas, mas era público que alguns eebs viviam
no lugar. Com medo de uma possível contaminação, os humanos preferiam deixar
para lá. Xavier e Flores não tinham medo de morrer, apenas o de não conseguir concluir
a missão.
Com o pé, Xavier abriu a porta. Os dois avançaram pelo corredor
principal sem produzir som algum. Sabiam que em pouco tempo os tiros alertariam
a todos da presença dos soldados, mas preferiam pegar os primeiros alienígenas
de surpresa. Julia entrava de sala em sala, procurando suas vítimas, enquanto
Udo dava cobertura do corredor. Sete salas e nem sinal de alguém escondido. Na
oitava, Julia fez um sinal para o parceiro. Na maior parte do tempo eles não
precisavam falar para se fazerem entender.
Flores entrou na sala com seu fuzil na mão. Com cautela, foi
até um balcão. E atirou. Foram diversos disparos contra a madeira. Alguns tiros
quebraram as janelas, espalhando cacos de vidro pelo chão. Após a investida,
ela foi checar atrás do balcão. Encontrou quatro eebs mortos.
No corredor, Udo foi surpreendido por dois azuis que fugiram
correndo. Ele os perseguiu, até exterminá-los perto dos elevadores. Com uma
faca, ele espetava os corpos, para ter certeza que não estavam se fingindo de
mortos. De sala em sala, naquele andar, os soldados Xavier e Flores eliminaram
diversos alvos. Ao todo, foram vinte e sete eebs. Magros e sujos, eles não eram
grandes adversários. Poderiam ser mortos sem qualquer uma das armas se fosse
necessário.
Quando subiram para o segundo andar, os soldados estavam
muito tranquilos, mas encontraram um objeto que fez com que redobrassem a
atenção. Havia uma bandeira do Exército Azul. Aquilo significava que os
alienígenas naquele prédio eram ligados aos terroristas que lutavam para
derrubar o governo. Enquanto Flores recarregava as armas, Xavier arremessou
granadas de gás, para dificultar a ação dos rebeldes.
A fumaça subiu, obrigando alienígenas e alguns humanos a
fugirem de suas posições. Do hall principal, em suas máscaras, Udo e Julia
atiravam em qualquer coisa que se mexia. Mais treze corpos em poucos minutos.
Avançaram, então para o terceiro e último andar.
No pavimento superior do hospital, o cenário era muito
diferente. Todos os móveis – camas,
escrivaninhas, poltronas, gabinetes, bancos, armários e sofás – compunham um
macabro labirinto putrefato. Era muito difícil enxergar e as máscaras
complicavam a respiração dos soldados. Os dois adotaram a formação padrão, com
Flores na frente abrindo caminho e Xavier atrás dando cobertura. Atravessaram o
labirinto por mais de meia hora, sem achar qualquer sinal de vida.
Flores sentiu um forte calor e seu corpo
foi jogado contra uma parede. Uma explosão havia ocorrido numa sala próxima.
Certamente, uma tentativa de matar os soldados. Com o impacto, Julia perdeu a
máscara e o capacete, fazendo-a sentir-se um pouco tonta. Quando finalmente
pôs-se de pé, a soldado não encontrou seu parceiro. Foi então que o ouviu
gritar. “Flores, fora daí!” Ao olhar pela janela, viu que a explosão jogara Udo
para o lado de fora do hospital. O homem estava caído no gramado, talvez com
uma perna quebrada. Ela não podia ir embora. Precisaria concluir a missão
sozinha.
Na sala onde ocorreu a explosão, Flores encontrou um corpo
carbonizado. Pela estrutura do rosto, era um humano. Sacrificou a própria vida
para tentar proteger os alienígenas que se escondiam, o pobre diabo. Do outro
lado da sala, havia uma porta que dava para um velho armário. Dentro dele,
algumas armas brancas. Para evitar que o arsenal fosse usado contra ela, Julia
lançou uma granada contra o armário. Uma nova explosão.
Fuzil na mão, Julia Flores lutava para vencer o labirinto do
terceiro andar. Matou cinco eebs e dois humanos que tentaram impedir sua ação.
Aquele era um dia para se comemorar, pensava ela.
Quando, enfim, deu a volta completa no labirinto de móveis,
a soldado Flores acreditou que seu trabalho estava terminado. Foi surpreendida,
contudo, por um grito de mulher no segundo andar, ainda tomado em parte pela
fumaça. Volta e meia, um novo grito era ouvido, tornando mais fácil a
localização da origem do som. Em um quarto, que estava selado por uma estante
caída, uma mulher gritava.
A tiros, Flores derrubou a porta. Dentro, um eeb macho
segurava uma eeb fêmea. Ela gritava, tentando desvencilhar-se. Mesmo com a
soldado na quarto, o alienígena insistia em tentar calar a fêmea azul. Com dois
tiros, Julia resolveu a situação. Um na testa dele, outro no ventre dela. A eeb
agonizava no chão e apontava para uma escrivaninha. Seus olhos imploravam algo
para Flores e seus lábios deixaram escapar uma palavra no último suspiro: Nek.
Com os dois mortos, a solado Flores foi conferir o que havia
na escrivaninha. Alguns papéis, um telefone quebrado, nada de útil. Mas sob o
móvel havia uma preciosidade. Um bebê. Um bebê azul que não tinha mais do que
alguns dias. E, até onde Julia sabia, o primeiro bebê eeb nascido no país em
muito tempo.
Ela deixou o bebê sobre a escrivaninha e puxou uma pistola.
Tentou atirar, mas a arma não respondeu. Estava descarregada. Flores, então,
tirou uma faca da bota esquerda. Uma pequena faca muito afiada que poderia
fatias o pequeno alienígena com enorme facilidade. Julia posicionou a faca no
pescoço azul da criança e estava pronta para cortá-lo quando olhou os olhos do
bebê. Olhos azuis escuros que brilhavam. Olhos inocentes. Olhos de um bebê que
nunca tinha feito mal a ninguém. De um bebê cuja mãe morrera tentando alertar o
inimigo da presença do pequeno. Aquele bebê não deveria morrer daquela forma.
Nem naquele local. Merecia uma chance.
Julia deixou a criança embaixo da escrivaninha, tendo
certeza de que estava bem coberta. Arrastou para fora os corpos dos outros eebs
que estavam no quarto. Com a estante que antes selava a porta dificultou a
entrada de qualquer pessoa no local. E foi embora.
Flores levou seu parceiro para um hospital do governo e foi
para a sede do esquadrão. Preparou todos os relatórios da operação e esperou
que a equipe de limpeza retirasse todos os corpos de alienígenas e humanos que
haviam sido mortos por ela e Xavier mais cedo. E então voltou para o Hospital
da Misericórdia. Já era noite e não era possível enxergar nada no lugar, mas
Julia sabia bem para onde ir. No segundo andar, apanhou o bebê, levou escondido
para seu carro e, sem que seus vizinhos vissem, o protegeu em casa. Deu a ele o
nome de Nek, como a eeb fêmea havia dito. Começou criando-o como um refém, mas
acabou virando um filho. Em seis meses, a criança já se parecia com um humano
de dois anos. E tratava Julia com todo o carinho do mundo.
Hoje.
O soldado Udo Xavier nunca foi conhecido pelo seu
temperamento amigável. Teve diversos parceiros até finalmente ser posto para
trabalhar com Flores, a única pessoa que parecia mais violenta que ele. Sua
aura era tão pesada que até quem não o conhecesse, ao vê-lo, tremia de medo.
Apesar de ser impiedoso ao matar azuis e prender os humanos
envolvidos, Xavier tinha um curioso modus operandi. Sempre deixava um dos
humanos livre. E fazia visitas constantes, regadas a bons golpes e ameaças. Em
pouco tempo, essas pessoas passavam a coletar informações nas ruas que pudessem
ajudar o soldado. Viravam informantes.
Naquela noite, um dos informantes havia ligado para o número
particular de Xavier. Disse que era urgente. “É sobre sua amiga Flores”, disse
o informante. “A informação é garantida, já chequei com alguns companheiros. O
Exército Azul vai atrás dela. Querem fazer ela de exemplo para todos os
soldados. Ela, mais do que qualquer outro de vocês, tem muito sangue azul nas
mãos. A cabeça dela será enviada para o próprio presidente e este será apenas o
começo de uma rebelião. Os azuis cansaram de sentir medo.”
Xavier agradeceu a informação. E matou o portador das más
notícias.
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