Três meses. Durante três meses, Gregory Cash não conseguiu descobrir nada sobre o paradeiro do desencarnado Zeke Anderson. Nenhuma pista, nenhuma dica. Ninguém voltou a ter notícias sobre o morto desaparecido. E o próprio detetive teria deixado a história para lá se não fosse pelo seu dedo indicador da mão direita, que insistia em manter a casquinha de sangue coagulado na ponta, lembrando-lhe sempre da alma penhorada com o demônio Mammon.
Aos poucos a rotina de Cash foi voltando ao normal. Começou
resolvendo um assassinato, no estilo tradicional que não lhe dava trabalho
algum. Depois mais um fantasma apareceu pedindo ajuda. E assim foi. Quando o
detetive se deu conta já havia se passado três meses desde a visita dos desencarnados
Matt e Jane.
A curiosidade bateu forte e ele decidiu procurar a mulher
que o havia “contratado” para achar o amigo desaparecido. Ao lembrar que ela
pretendia limpar seu nome de uma acusação de seus empregadores, Cash descobriu
para qual empresa ela trabalhava e foi atrás. Invadiu o prédio no meio da
madrugada e encontrou Jane na sala de seu chefe tentando achar qualquer pista
de sua integridade.
“Teve notícias de Zeke?”, Cash perguntou. Jane deu um pulo
ao ouvir a voz do detetive. Era estranho ver um fantasma assustado. A mulher
contou que nunca mais soubera do amigo e que estava se sentindo muito solitária
desde que Matt conseguira resolver seu negócio pendente e a deixara para ir ao
Revelations em busca de seu descanso eterno. Naquela noite, ela deixou suas
investigações de lado e conversou com Cash.
“Eu pensei muitas vezes nestes últimos três meses eu como eu
poderia te ajudar”, Jane dizia serenamente. “Eu já conhecia Zeke há muito
tempo, mas não sei se o conhecia de verdade. Eu e meu marido sempre íamos às
reuniões organizadas pela Lisa Anderson, que era minha melhor amiga, e eu
realmente gostava de conversar com o Zeke, mas acho que nunca consegui arranhar
a superfície. Eu, Zeke e Matt só ficamos realmente inseparáveis antes depois
que morremos. Acho que o trauma nos uniu.”
Cash anotava tudo o que Jane falava. “Sabe, Jane... Eu nunca
perguntei o motivo de vocês estarem juntos naquele carro, na noite do acidente.
Acho que é meu amadorismo como detetive.” A mulher riu ao perceber que
realmente nunca havia contado como tudo começou.
“Eu era a melhor amiga da Lisa e o Matt era o melhor amigo
do Zeke. Ele havia nos ligado naquela noite para dizer que tinha uma coisa para
nos mostrar, mas que não deveríamos contar para ninguém. Ele buscou o Matt em
casa e depois passou para me apanhar com o carro. Nós fomos até uma colina,
quase saindo de Cougar Creek. Era um lugar lindo. Dava para ver a cidade toda,
com os dois arranha-céus iluminados no centro. Uma coisa linda. Até então nunca
tinha pensado na beleza desta cidade”, Jane choraria neste momento se ainda
fosse capaz de chorar. “Nessa colina tinha uma casa. Uma casa grande e antiga
que precisava de uma reforma urgente. E era por isso que a gente estava lá. Ele
ia comprar aquela casa e se mudar com a Lisa para lá. Ai, ela ia gostar
tanto...”
Uma casa, Greg pensava, uma casa no topo de uma colina. Um
elemento novo, enfim. Talvez a única coisa da biografia de Zeke que o detetive
ainda não tinha investigado. Era uma pista fraca e fria, mas ele precisava
checar.
Cash chegou à casa logo no começo da manhã. Parou no
caminho, no meio da estrada, para ver se descobria algo no lugar em que ocorrera
o acidente que matou Zeke, Matt e Jane. No topo da colina, ele pode admirar a
paisagem. Não era grande coisa. Provavelmente à noite era mais interessante.
A casa, por sua vez, enchia os olhos. Tinha dois andares,
suas paredes externas eram cobertas por pedras e as portas e janelas eram bem
grandes. O detetive bateu à porta, mas ninguém respondeu. Deu duas voltas em
torno da construção, mas não achou qualquer sinal de que alguém morava ali. Ao
perceber que uma das janelas estava aberta, decidiu invadir a casa para
investigar melhor.
Em meio ao pulo pela janela, Cash foi surpreendido por uma
mulher. “O que você está fazendo na minha casa?”, questionou a senhora de
cabelos grisalhos com uma espingarda de cano duplo nas mãos. Pego de surpresa e
sob a mira da arma, Cash nem pensou em mentir. “Sou um detetive e vejo
fantasmas. Estou procurando um que esteve perto desta casa pouco antes de morrer.”
A mulher então baixou a arma e mandou que ele a seguisse.
Os dois foram até uma pequena capela, que ficava no mesmo
terreno. Lá dentro, um colchão no chão e um menino brincando sobre um banco. “Este
é Chuck, meu neto”, apontou a senhora. Estava claro para Cash que os dois
estavam dormindo na capela, mesmo tendo uma casa imensa a poucos passos dali.
“Foi o padre Joshua quem mandou você?”, a mulher indicou que
Greg se sentasse. “Ele esteve aqui e tentou nos ajudar, mas saiu dizendo que eu
era louca. Mas estou te dizendo, detetive, há um fantasma na minha casa! Ele já
destruiu tudo o que podia e meu neto nem consegue dormir mais. Já chamei até um
exorcista, mas todos acham que eu enlouqueci.” A mulher não estava louca. Da
porta da capela, Cash conseguia ver que havia alguém dentro da casa e a pessoa
definitivamente não estava viva. O detetive tentou tranquilizar a senhora e foi
para dentro da casa.
Por sorte o dia estava claro, Greg Cash pensava. De outra
maneira, não seria possível enxergar nada dentro da antiga construção. Não
havia um móvel sequer lá dentro. O pouco que restava eram pilhas de madeira do
que antes fora uma mesa, algumas cadeiras, uma cama e um armário. Todos
destruídos pelo desencarnado. “Ele está com medo”, Cash disse para si mesmo.
Apenas os fantasmas aterrorizados conseguem tocar e mover objetos deste plano.
Ao perceber que o fantasma não estava no primeiro andar, o
detetive começou a subir as escadas. A cada degrau avançado, algo era jogado
contra ele. Primeiro latas vazias, depois livros e então gavetas, até que os
próprios degraus começaram a ser arrancados e arremessados em Cash. Caído no
chão, um pouco machucado, o detetive gritou: “Zeke!”
Os objetos começaram a voar ao redor de Cash, formando um
grosso e perigoso redemoinho. “Ezekiel Alan Anderson!”, o detetive voltou a
gritar. Neste momento, todos os objetos caíram e Greg pôde finalmente subir as
escadas. Em um dos quartos, o desencarnado estava encolhido em um canto,
sentado. “Você não me conhece, Zeke, mas eu estou aqui para te ajudar. Estou
aqui porque existem pessoas que se importam com você.”
Zeke cobria o rosto com as mãos. “Eu lamento”, disse ele, “essa
nunca foi minha intenção”. Cash sentou ao seu lado e disse que Jane e Matt
estavam preocupados e pediram para que o detetive encontrasse-o, para garantir
que estava tudo bem. O dia correu e a noite se aproximou, enquanto Cash
explicava o que tinha acontecido e tentava entender o negócio pendente de Anderson
com a velha casa.
“Não havia outro lugar para onde eu pudesse ir”, Zeke já
falava mais calmo, como se aceitasse ter sido encontrado. “Esse era o único
lugar em que ninguém me acharia. Afinal de contas, as únicas pessoas que
conheciam minha ligação com esta casa também estavam mortas. Não achei que elas
fossem procurar um detetive particular para me encontrar. Essa casa... Eu já
havia convencido esta senhora a me vender a casa. A Lisa ia amar viver aqui,
vendo Cougar Creek de longe todos os dias. Mas eu morri e agora não resta mais
nada.”
“Quando a gente morre”, Zeke prosseguia, “quando a gente
morre uma coisa horrível acontece. Os vivos costumam acreditar que a gente vê
toda a nossa vida passar diante dos olhos antes de morrer. Mas é mais do que
isso. Quando estamos mortos, vemos a nossa vida inteira passar diante dos
nossos olhos o tempo todo. Eu me vejo o tempo todo acertando e o tempo todo
errando. Sou constantemente lembrado do fracasso que eu fui e dos êxitos que eu
tive. E isso é assustador. Porque agora não há tempo de fazer mais nada. O que
foi feito está feito e eu tenho que pagar pelos meus erros. Eu sei que vou pro
inferno, mas não quero ir para o inferno. Eu fui uma pessoa boa, não mereço o
sofrimento.”
Zeke era o mesmo homem que estava nas fotos que Cash viu na
casa de Lisa Anderson, mas parecia muito mais velho agora, como se o medo o
estivesse consumindo. “Muitos desencarnados só querem resolver seus negócios
pendentes porque acreditam que terão direito ao descanso eterno depois. Que
poderão desfrutar de virgens e rios de leite e mel. É por isso que eu os ajudo.
No fim das contas, já vi muitos se arrependerem de terem pedido ajuda quando
descobriram que na verdade seus destinos não seriam tão agradáveis. Essa é a
magia no negócio pendente. Se você não resolvê-lo, não vai para lugar algum.”
Zeke riu. “Negócio pendente”, a fantasma fez uma longa
pausa. “Eu não tenho nada para resolver aqui. Quando morri, acreditei que
haveria alguma coisa me prendendo aqui. Provavelmente por causa do acidente.
Mas quando descobrimos que foi só um acidente, sem culpados, eu já tinha percebido
que iria para o inferno. Um demônio gordo vestido como uma mendigo apareceu
para me levar e eu fugi. Vim para cá, onde achei que ninguém me encontraria. E
foi aí que eu tive uma ideia. Decidi aterrorizar essa senhora e o neto dela até
que causasse algum trauma. Algum trauma que só eu pudesse resolver. Eu
pretendia criar, depois de morto, um negócio pendente. Mas acho que não deu
certo. Foi só estupidez e agora eu realmente mereço ir para o inferno.”
Cash se levantou e tirou o casaco. Começava a chover, mas
não estava frio naquele dia. Zeke, mais à vontade, também se levantou. Ele
mexia com uma caneta com bastante facilidade, o que demonstrava que o
desencarnado ainda estava amedrontado. “Você realmente vai para o inferno, sabia?
Mas quando eu estava te investigando, tudo o que eu ouvi foram coisas boas. Como
foi que descobriu que o céu não estava te esperando?”, perguntou o detetive.
“Tenho certeza que você ouviu coisas boas”, Zeke deixou a
caneta sobre uma escrivaninha. “Ouviu que eu era fiel à minha mulher, que eu
fazia trabalho voluntário e que me dedicava à igreja. E nada disso é mentira. O
problema é que existem verdades que só eu poderia saber. E a verdade é que eu
nunca acreditei. Fui criado em uma família extremamente católica, minha mulher
também era católica, mas eu nunca acreditei em Deus. Passei a vida inteira
fazendo coisas em Seu nome, mas sempre tive certeza de que Ele não existia.
Resumindo, toda a minha vida foi vazia. Agora as portas do inferno estão
abertas para mim, há um demônio me procurando e parece que você está aqui para
resolver tudo.”
Cash realmente estava lá para encerrar aquele caso. Ele,
Jane e a velha senhora dona da casa mereciam que aquilo acabasse. Mas durante a
conversa ele pôde entender melhor o lado de Zeke. “Vou te contar uma história”,
o detetive parecia se divertir com o que estava para dizer. “Uma vez, me contrataram
para encontrar um fantasma desaparecido. Eu cheguei a bater à porta da
embaixada do inferno e deixei minha alma penhorada com um demônio”, Cash
mostrou para Zeke o sangue coagulado na ponta do indicador, como se aquilo
fizesse algum sentido para o desencarnado. “Para ter minha alma de volta, eu
preciso levar este fantasma para o inferno. O demônio não está mais procurando
pelo fantasma, porque agora ele é problema meu. Então, se esse fantasma ficar
perambulando por aí ele terá um negócio pendente. Comigo."
Zeke abriu um sorriso quando entendeu o que Cash estava lhe
contando. “Enquanto este fantasma não me procurar dizendo que está preparado
para ir para o inferno, ninguém poderá mexer com ele. Só vamos torcer para que
eu não morra antes disso, certo?”
“Serei eternamente grato por isso”, disse Zeke. Cash
balançou a cabeça. “Eternidade é tempo demais. Principalmente para alguém que
já morreu”, o detetive brincou. “Eu só quero que você me prometa uma coisa.
Conserte este casa e tudo o que havia dentro dela. Esta família não merece o
que você os fez passar. E de tempos em tempos, vá ao meu escritório para que eu
tenha certeza de que tudo está bem com você.”
Gregory Cash estava acostumado a coisas fora do comum. Ele
sabia que o demônio Mammon não ficaria contente com o resultado daquele acordo
e tinha certeza que o anjo Zophiel acompanhava sua vida mais de perto do que
nunca. O fora do comum estava prestes a virar rotina em Cougar Creek.
Nenhum comentário:
Postar um comentário