Quando os policiais derrubaram a porta, Marcos jogou a pistola no chão e levantou as mãos imediatamente. Com diversas armas apontadas em sua direção, ele foi obrigado a se deitar de bruços no chão. Algemado, o comerciante foi tirado de seu apartamento e jogado no camburão. Uma multidão de curiosos se formou na rua, tentando entender o que havia acontecido. Antes de o camburão partir, Marcus ainda viu o rabecão chegar para levar embora os corpos de Luciana e Jaz.
Marcos esperou quase uma hora até que o delegado chegasse
para o interrogatório. Ele não tinha pressa. Sabia que ficaria preso por muito
tempo. E estava disposto a confessar tudo o que tinha feito naquela noite.
Quando o delegado chegou à sala, acompanhado do advogado do acusado, o
comerciante estava ansioso para contar o que tinha acontecido. Nem foi preciso
que alguém lhe fizesse qualquer pergunta.
“Senhor delegado, eu sou culpado. Eu matei a minha filha.
Não foi culpa minha, não era a minha intenção, mas eu a matei e mereço ser
punido por isso. Eu ia matar o garoto, o Jaz, ele me obrigou a isso, não me deu
escolha, mas ela se meteu no meio...”
O advogado recomendou que Marcos não falasse nada sobre o
ocorrido, mas o comerciante não dava ouvidos. Além dos dois e do delegado,
havia na sala dois policiais e um datilógrafo, que anotava tudo o que era dito
pelo homem.
“A Luciana, a minha menina, tinha apenas dezesseis anos. Ela
era muito nova para entender da vida e esse Jaz mexeu com a cabeça dela. Há um
ano, antes de esses azuis chegarem, ela era uma criança incrível. Era amável,
inteligente, dedicada. Mas o garoto azul transformou a minha menina em uma
aberração. Eu não aguentei.”
O delegado interrompeu a confissão de Marcos para fazer um
comentário ao datilógrafo. “Que fique registrado, por favor, que estes ‘azuis’
a quem o senhor Souza se refere são os eebs”, disse o homem, com o datilógrafo
batendo freneticamente todas as palavras.
“Isso mesmo”, prosseguiu Marcos. “Eebs. Minha filha insistia
em me corrigir toda vez que eu me referia a eles como ‘os azuis’. Eebs.
Malditos alienígenas que acabaram com a minha vida. Eu sou um comerciante,
sabe? Eduquei a Luciana e o meu filho mais velho com muito sacrifício. Fiz de
tudo para que eles estudassem em boas escolas e fossem boas pessoas. Meu garoto
trabalha em uma repartição pública. Tem grandes planos e eu confio nele.
Luciana também tinha grandes planos. Mas tudo mudou quando aqueles malditos
quinhentos mil alienígenas chegaram à Terra. Já ouvi o Jaz contar a versão
deles milhões de vezes. Os azuis viviam em um planeta ameaçado pela explosão de
uma estrela próxima. Construíram naves potentes utilizando todos os recursos
possíveis do planeta e fugiram para o lugar mais próximo onde pudessem viver.
Para a nossa desgraça, esse lugar era a Terra.
“Eu não vi nada demais quando eles chegaram. Me lembro de
ter lido nos jornais que muitos líderes religiosos e chefes de Estado se mostraram
contra a presença deles, mas eu decidi dar um voto de confiança. Alguns deles,
uns quinze mil, montaram uma comunidade. Vocês devem conhecer o lugar, parece
uma imensa favela e fica a poucos metros da minha casa. O valor do meu imóvel
despencou, mas eu tive fé de que era por uma boa causa. Eu estava errado. Eles
começaram a trabalhar. Abriram comércios, vendendo coisas que eles mesmos
produziam. Eles não dormem, então têm muito mais tempo para trabalhar. E eles
praticamente não comem, fazendo com que a margem de lucro deles fosse
infinitamente menor que a minha. Eu não tinha como competir com eles. Fui
obrigado a fechar a minha loja e estou devendo impostos e os salários dos meus
funcionários estão bem atrasados. Em um ano a minha vida ficou péssima. Se não
fosse a ajuda que recebo do meu filho, eu e a Luciana estaríamos vivendo
debaixo da ponte. Talvez fosse até melhor e ela ainda estivesse viva.
“Há algumas semanas, a minha filha levou lá para casa o tal
do Jaz. Queria me apresentar o namorado novo. Quando vi aquele garoto azul
parado no meio da minha sala, quis morrer. Não criei a minha menina com tanto
sacrifício para que ela se envolvesse com um alienígena. Tudo o que esse povo
azul e sem nariz fez desde que chegou foi degradar a nossa cidade e destruir
nossa economia. Não ia ter em minha família uma aberração como aquela. Para
piorar, a Luciana ainda levou o azulzinho a uma missa e eu fui obrigado a ouvir
o padre fazer um sermão sobre o quanto não é natural uma relação entre humanos
e eebs. Deus fez a mulher para ser companheira de um homem, não para se deitar
com um alienígena. Se eles fossem filhos de Deus teriam sido criados à Sua
imagem e semelhança. Não seriam azuis com peles viscosas.
“Até aí, o meu problema era doméstico, mas a coisa piorou.
Proibi minha filha de encontrar com o Jaz e, um dia, quando estou voltando para
casa, encontro um grupo de azuis na minha porta. Eles se convidaram a entrar na
minha casa e passaram quase duas horas tentando me convencer de que eu estava
errado de tentar impedir o namoro da Luciana com o garoto. Eles falavam com
aquele sotaque ridículo, sem dominar nosso idioma. Eu fui praticamente ameaçado
a sair do caminho. Já imaginou se toda a comunidade azul vem para a minha porta
me cobrar satisfações?
“Nessa hora eu abri meus olhos. Enquanto esses eebs, esses
cânceres azuis, continuarem a perambular pelas nossas, não há qualquer chance
para que os humanos prosperem. Escrevam o que eu estou dizendo: em poucos anos
este não será apenas o planeta azul. Será o planeta dos azuis. Não haverá
espaço para que nós possamos viver aqui. Foi por isso que eu decidi ir embora.
Pegar a minha filha e ir para o mais longe possível. Dizem que os azuis não
conseguem respirar direito em ambientes frios, então pensei em ir para a
Argentina. Para a Patagônia. Talvez lá seja o lugar para recomeçar longe desses
alienígenas.
“As malas já estavam na sala e meu carro estava abastecido.
Só faltava a Luciana chegar em casa para que pudéssemos deixar de vez aquela
vida para trás. Mas, quando ela passou pela porta, o maldito Jaz estava com
ela. Que diabos de nome é Jaz? Esses cretinos e seus nomes monossilábicos. A
Luciana disse que não iria. Que ela amava o azul e preferia viver com os outros
azuis do que ir embora comigo.
“Então o cretino viscoso começou a se aproximar de mim,
falando aquela língua esquisita. Ele se movia muito rápido, então corri até uma
das malas e peguei minha pistola. Me virei e atirei quase sem olhar. Quando vi,
tinha atirado na minha filha. Minha doce menina se atirou na frente do alienígena.
Eu acertei bem no peito dela e o meu bebê parecia se afogar com o próprio
sangue, bem na frente dos meus olhos. Fiquei desesperado. Não sabia o que
fazer. Congelei. Fiquei vários minutos parado no meio da sala, vendo o azul
mexendo na minha filha. Ele soprava seus olhos, murmurava em seus ouvidos, como
se aquilo fosse revivê-la de alguma forma. E eu continuava imóvel no meio da
sala.
“Não demorou muito para que vocês chegassem. Foram uns vinte
minutos no máximo. Pela janela, eu pude ver os caros na minha porta. O maldito
Jaz se levantou e começou a andar. Ele simplesmente ia embora. Eu não pude
deixar. Minha menina estava morta, eu não podia simplesmente deixar que o
maldito continuasse vivo, hipnotizando as filhas de outros homens honestos e
trabalhadores. E por isso eu atirei. Atirei uma, duas, três vezes no azul. Vi
sua cabeça estourar em uma nuvem de sangue azul. E teria atirado mais, até
ficar sem munição, se vocês não tivessem arrombado a porta.
“O garoto azul acabou com a minha vida, seduziu minha filha
e me fez atirar nela. E ele é só um. Ao todo, são quinhentos mil azuis
espalhados pelo planeta. De pouquinho em pouquinho, eles vão acabar com a
humanidade, uma família por vez. E foi por isso que eu o matei. E mataria de
novo, ainda que custasse a vida da minha amada filha outra vez.”
Quando, enfim, Marcos se calou, o delegado acenou para que
um policial levasse o comerciante para uma das celas. “Deixe ele separado dos
demais presos. Ele matou a própria filha. Não sabemos o que os demais
prisioneiros podem fazer com ele”, disse o delegado.
O assassinato de Luciana e Jaz foi o primeiro ato de
violência envolvendo humanos e eebs. Mas certamente não seria o último.
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