quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Os Azuis – Prelúdio


Quando os policiais derrubaram a porta, Marcos jogou a pistola no chão e levantou as mãos imediatamente. Com diversas armas apontadas em sua direção, ele foi obrigado a se deitar de bruços no chão. Algemado, o comerciante foi tirado de seu apartamento e jogado no camburão. Uma multidão de curiosos se formou na rua, tentando entender o que havia acontecido. Antes de o camburão partir, Marcus ainda viu o rabecão chegar para levar embora os corpos de Luciana e Jaz.

Marcos esperou quase uma hora até que o delegado chegasse para o interrogatório. Ele não tinha pressa. Sabia que ficaria preso por muito tempo. E estava disposto a confessar tudo o que tinha feito naquela noite. Quando o delegado chegou à sala, acompanhado do advogado do acusado, o comerciante estava ansioso para contar o que tinha acontecido. Nem foi preciso que alguém lhe fizesse qualquer pergunta.

“Senhor delegado, eu sou culpado. Eu matei a minha filha. Não foi culpa minha, não era a minha intenção, mas eu a matei e mereço ser punido por isso. Eu ia matar o garoto, o Jaz, ele me obrigou a isso, não me deu escolha, mas ela se meteu no meio...”

O advogado recomendou que Marcos não falasse nada sobre o ocorrido, mas o comerciante não dava ouvidos. Além dos dois e do delegado, havia na sala dois policiais e um datilógrafo, que anotava tudo o que era dito pelo homem.

“A Luciana, a minha menina, tinha apenas dezesseis anos. Ela era muito nova para entender da vida e esse Jaz mexeu com a cabeça dela. Há um ano, antes de esses azuis chegarem, ela era uma criança incrível. Era amável, inteligente, dedicada. Mas o garoto azul transformou a minha menina em uma aberração. Eu não aguentei.”

O delegado interrompeu a confissão de Marcos para fazer um comentário ao datilógrafo. “Que fique registrado, por favor, que estes ‘azuis’ a quem o senhor Souza se refere são os eebs”, disse o homem, com o datilógrafo batendo freneticamente todas as palavras.

“Isso mesmo”, prosseguiu Marcos. “Eebs. Minha filha insistia em me corrigir toda vez que eu me referia a eles como ‘os azuis’. Eebs. Malditos alienígenas que acabaram com a minha vida. Eu sou um comerciante, sabe? Eduquei a Luciana e o meu filho mais velho com muito sacrifício. Fiz de tudo para que eles estudassem em boas escolas e fossem boas pessoas. Meu garoto trabalha em uma repartição pública. Tem grandes planos e eu confio nele. Luciana também tinha grandes planos. Mas tudo mudou quando aqueles malditos quinhentos mil alienígenas chegaram à Terra. Já ouvi o Jaz contar a versão deles milhões de vezes. Os azuis viviam em um planeta ameaçado pela explosão de uma estrela próxima. Construíram naves potentes utilizando todos os recursos possíveis do planeta e fugiram para o lugar mais próximo onde pudessem viver. Para a nossa desgraça, esse lugar era a Terra.

“Eu não vi nada demais quando eles chegaram. Me lembro de ter lido nos jornais que muitos líderes religiosos e chefes de Estado se mostraram contra a presença deles, mas eu decidi dar um voto de confiança. Alguns deles, uns quinze mil, montaram uma comunidade. Vocês devem conhecer o lugar, parece uma imensa favela e fica a poucos metros da minha casa. O valor do meu imóvel despencou, mas eu tive fé de que era por uma boa causa. Eu estava errado. Eles começaram a trabalhar. Abriram comércios, vendendo coisas que eles mesmos produziam. Eles não dormem, então têm muito mais tempo para trabalhar. E eles praticamente não comem, fazendo com que a margem de lucro deles fosse infinitamente menor que a minha. Eu não tinha como competir com eles. Fui obrigado a fechar a minha loja e estou devendo impostos e os salários dos meus funcionários estão bem atrasados. Em um ano a minha vida ficou péssima. Se não fosse a ajuda que recebo do meu filho, eu e a Luciana estaríamos vivendo debaixo da ponte. Talvez fosse até melhor e ela ainda estivesse viva.

“Há algumas semanas, a minha filha levou lá para casa o tal do Jaz. Queria me apresentar o namorado novo. Quando vi aquele garoto azul parado no meio da minha sala, quis morrer. Não criei a minha menina com tanto sacrifício para que ela se envolvesse com um alienígena. Tudo o que esse povo azul e sem nariz fez desde que chegou foi degradar a nossa cidade e destruir nossa economia. Não ia ter em minha família uma aberração como aquela. Para piorar, a Luciana ainda levou o azulzinho a uma missa e eu fui obrigado a ouvir o padre fazer um sermão sobre o quanto não é natural uma relação entre humanos e eebs. Deus fez a mulher para ser companheira de um homem, não para se deitar com um alienígena. Se eles fossem filhos de Deus teriam sido criados à Sua imagem e semelhança. Não seriam azuis com peles viscosas.

“Até aí, o meu problema era doméstico, mas a coisa piorou. Proibi minha filha de encontrar com o Jaz e, um dia, quando estou voltando para casa, encontro um grupo de azuis na minha porta. Eles se convidaram a entrar na minha casa e passaram quase duas horas tentando me convencer de que eu estava errado de tentar impedir o namoro da Luciana com o garoto. Eles falavam com aquele sotaque ridículo, sem dominar nosso idioma. Eu fui praticamente ameaçado a sair do caminho. Já imaginou se toda a comunidade azul vem para a minha porta me cobrar satisfações?

“Nessa hora eu abri meus olhos. Enquanto esses eebs, esses cânceres azuis, continuarem a perambular pelas nossas, não há qualquer chance para que os humanos prosperem. Escrevam o que eu estou dizendo: em poucos anos este não será apenas o planeta azul. Será o planeta dos azuis. Não haverá espaço para que nós possamos viver aqui. Foi por isso que eu decidi ir embora. Pegar a minha filha e ir para o mais longe possível. Dizem que os azuis não conseguem respirar direito em ambientes frios, então pensei em ir para a Argentina. Para a Patagônia. Talvez lá seja o lugar para recomeçar longe desses alienígenas.

“As malas já estavam na sala e meu carro estava abastecido. Só faltava a Luciana chegar em casa para que pudéssemos deixar de vez aquela vida para trás. Mas, quando ela passou pela porta, o maldito Jaz estava com ela. Que diabos de nome é Jaz? Esses cretinos e seus nomes monossilábicos. A Luciana disse que não iria. Que ela amava o azul e preferia viver com os outros azuis do que ir embora comigo.

“Então o cretino viscoso começou a se aproximar de mim, falando aquela língua esquisita. Ele se movia muito rápido, então corri até uma das malas e peguei minha pistola. Me virei e atirei quase sem olhar. Quando vi, tinha atirado na minha filha. Minha doce menina se atirou na frente do alienígena. Eu acertei bem no peito dela e o meu bebê parecia se afogar com o próprio sangue, bem na frente dos meus olhos. Fiquei desesperado. Não sabia o que fazer. Congelei. Fiquei vários minutos parado no meio da sala, vendo o azul mexendo na minha filha. Ele soprava seus olhos, murmurava em seus ouvidos, como se aquilo fosse revivê-la de alguma forma. E eu continuava imóvel no meio da sala.

“Não demorou muito para que vocês chegassem. Foram uns vinte minutos no máximo. Pela janela, eu pude ver os caros na minha porta. O maldito Jaz se levantou e começou a andar. Ele simplesmente ia embora. Eu não pude deixar. Minha menina estava morta, eu não podia simplesmente deixar que o maldito continuasse vivo, hipnotizando as filhas de outros homens honestos e trabalhadores. E por isso eu atirei. Atirei uma, duas, três vezes no azul. Vi sua cabeça estourar em uma nuvem de sangue azul. E teria atirado mais, até ficar sem munição, se vocês não tivessem arrombado a porta.

“O garoto azul acabou com a minha vida, seduziu minha filha e me fez atirar nela. E ele é só um. Ao todo, são quinhentos mil azuis espalhados pelo planeta. De pouquinho em pouquinho, eles vão acabar com a humanidade, uma família por vez. E foi por isso que eu o matei. E mataria de novo, ainda que custasse a vida da minha amada filha outra vez.”

Quando, enfim, Marcos se calou, o delegado acenou para que um policial levasse o comerciante para uma das celas. “Deixe ele separado dos demais presos. Ele matou a própria filha. Não sabemos o que os demais prisioneiros podem fazer com ele”, disse o delegado.

O assassinato de Luciana e Jaz foi o primeiro ato de violência envolvendo humanos e eebs. Mas certamente não seria o último.

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