A zona rural da cidade, bem distante do Centro, não era um
lugar agradável de morar. Era muito quente e nem todas as casas tinham energia
elétrica e saneamento básico. Os chefes de família, a grande maioria sem
empregos, sustentavam suas casas com pequenas colheitas no quintal e criação de
pequenos animais. As crianças não morriam de fome, mas também não tinham muita
energia. Faltava asfalto e calçamento nas ruas e o transporte público não
chegava nem perto quando chovia.
A pior coisa da zona rural eram os rumores. Com casas
afastadas umas das outras, era fácil que boatos sobre determinada família se
espalhassem quase na velocidade dos meios de comunicação. E, quando os boatos
chegavam aos ouvidos do governo, os soldados nada amados apareciam para visitar
os bairros mais afastados.
Com grossas roupas pretas, coletes e capacetes, os soldados
Xavier e Flores tinham tudo para andar com dificuldade. Havia, porém, certa
graça nos movimentos dos dois. Com as luvas de couro, Udo Xavier batia à porta
de uma das casas. Um pouco mais atrás, Julia Flores mantinha, por segurança,
sua mão próxima à arma. Na porta da casa, uma enorme letra “a” azul era o
convite para a presença dos soldados.
“Pois não”, uma senhora muito velha olhou pela pequena
janelinha da porta. Ao ver que eram os soldados do governo ela tratou de abrir
passagem para a entrada dos homens de preto. Dentro de seu uniforme, não era
possível perceber que Flores era uma mulher.
Além da velha, mais sete pessoas viviam na casa – duas
filhas, um genro, três netos e um velho que não enxergava ou ouvia. “Ele é o verdadeiro
dono da casa”, explicou a velha, “eu e minha família viemos para cá, pois nossa
casa foi destruída.”
As famílias sabiam bem o que significava a visita dos
soldados. Para evitar transtornos, cada um dos moradores da casa ficou em um
cômodo diferente. O soldado Xavier observava minuciosamente cada detalhe,
procurando um quadro torto ou um tapete fora do lugar. Qualquer coisa que lhe
indicasse um caminho a seguir. Já a soldado Flores preferia conversar. Da pior
maneira possível.
Julia Flores foi até um dos quartos e chamou a filha mais
nova da velha. Era uma mulher de mais de quarenta anos, com cabelos quebradiços
ficando grisalhos. A pele muito queimada pelo sol a fazia parecer uma anciã
precoce. A soldado guiou a mulher até o quarto da mãe. Com a velha amarrada a
uma cadeira, Flores puxou um facão da cintura. “Me diga, por favor, onde está o
que estamos procurando e poupe esta velha do sofrimento”, disse Flores, com a
lâmina no pescoço da velha.
A filha balançava a cabeça e chorava. Implorava
misericórdia. “Não sabemos de nada. Nem sabemos quem pintou a letra azul. Isto
é um engano, senhora”, a mulher, com as mãos juntas, fazia uma oração para a
soldado. Para mostrar que falava sério, Flores cortou um dos dedos da velha. “Não
me tome por fraca apenas porque eu sou mulher. Eu vou descobrir onde estão. Eu
tenho um talento, que é fazer as pessoas falarem, e você vai falar”, as
palavras quentes de Julia embaçavam o plástico do visor do capacete.
“Poupe minha mãe. Ela não tem nada com isso. Minha mãe
sempre foi uma defensora do presidente, apesar do que alguns vizinhos dizem”, a
filha insistia na inocência da família. A velha já havia desmaiado com a dor e
com o sangramento. “Me diga onde estão!”, exigiu Flores, enquanto abria a
garganta da velha com a faca. A mulher envelhecida nada disse. A soldado Flores
foi então atrás de uma das crianças da casa.
Quando uma menina de cerca de oito anos foi amarrada à
cadeira onde a velha sangrou até morrer, Udo Xavier se aproximou. “Já chega,
Flores! Eles não sabem de nada!” A soldado se sentiu contrariada, mas acatou o
comando de seu superior. “Aqui está”, disse ele, entregando para a jovem anciã
um cartão magnético. “Vocês podem sacar a compensação pela morte da sua mãe.
Nos desculpem qualquer transtorno.”
Em frente à casa, no carro de patrulha, Julia Flores foi
obrigada a ouvir de seu parceiro um longo sermão sobre o uso de força
excessiva. Ela, contudo, parecia não estar ouvindo. Observava um mapa e o
riscava. E então sorriu. “O que foi, Flores?”
A soldado explicou. Aquele era o quarto chamado sem solução
naquele mês. A quarta casa marcada com a letra azul em que eles não encontravam
nada. As casas, porém, quase formavam uma linha reta. Uma de cada vez, elas avançavam
para oeste da cidade, sempre a uma distância de um quilômetro e meio a dois
quilômetros. Era um padrão. Flores fez a linha no mapa, no sentindo oposto às
ocorrências, e terminou o traço em uma casa a cerca de dois quilômetros do primeiro
chamado sem resultado.
Com pressa, Xavier dirigiu até a tal casa. Era uma casa
velha, como todas as outras. Paredes recobertas de barro, para tentar afastar o
frio da noite, e janelas de madeira. Não havia uma letra azul na porta, mas,
naquele momento, Flores e Xavier não precisavam de convite para entrar. Com uma
barra de ferro pesada, os soldados derrubaram a porta da casa.
Dentro, a poeira formava uma névoa que dificultava a visão
dos homens de preto. Sempre que alguém se movia, correndo para fugir dos
soldados, Julia atirava na cabeça para matar. Em menos de cinco minutos de
ação, cinco pessoas já estavam sem vida no chão da casa. E aquele era só o
começo.
A casa tinha dois andares e um porão. Com o andar térreo
totalmente vasculhado, os soldados se dividiram. Flores ficou com o andar
superior, enquanto Xavier revistava o subsolo. Em cima, ela não encontrou
ameaça. Apenas duas adolescentes escondidas em um armário, nada que demandasse
um disparo de sua arma. Já no porão, Udo matou uma mulher e fez um homem
prisioneiro. Não acharam sinal do que estavam procurando, até que Julia
utilizou suas habilidades.
Com o homem dominado no porão amarrado a uma cadeira, a
lâmina no pescoço, e uma das adolescentes assistindo à cena, Flores deu o
primeiro passo e arrancou uma das orelhas do sujeito. O grito podia ser ouvido
por toda a casa. A adolescente chorava e escondia o rosto com as mãos, mas nada
falava. Quando a soldado deu sinal de que arrancaria o nariz do homem e ele deu
novo grito, uma voz foi ouvida do andar superior. “Parem, por favor! Deixem meu
marido em paz! Eu conto onde eles estão!”, soluçava uma mulher com uma cicatriz
na bochecha. “Nós marcamos as outras casas para afastar vocês de nós! Nós só
queríamos protege-los!”
Ela guiou os soldados até uma porta falsa, escondida na
lareira. Atrás da porta, quinze pessoas ne encolhiam nos cantos, se abraçando e
se protegendo mutuamente. Eram pessoas de pele azul viscosa e sem nariz.
Alienígenas chegados à Terra há cerca de vinte anos. Eebs. Com dezessete tiros,
Xavier e Flores mataram todos os “azuis”.
Ainda naquela tarde um ônibus da polícia parou ao lado da casa
e os humanos que protegiam os eebs foram levados para a Fazenda. Ninguém jamais
voltou da Fazenda. Flores e Xavier preencheram seus relatórios e partiram. Em
poucas horas, eles sabiam, outra casa seria marcada com uma letra azul e eles
voltariam a agir.
Julia Flores não morava na zona rural da cidade. Vivia em um
bairro planejado, um condomínio bem protegido. Privilégio das pessoas que
tinham a confiança do presidente. Uma casa de paredes brancas, com um carro
popular na garagem. Esse era o luxo da vida da soldado. Ao chegar em casa, ela
tomou um longo banho. Deixou que a água caísse no seu corpo e limpasse o sangue
azul que havia lhe impregnado a pele.
Se arrumou com uma camisola branca folgada, colocou sua
comida no forno e foi ver seu filho. A criança aparentava ter dois anos de
idade, mas era mais nova que isso. Ficava o dia todo sozinho em um quarto, com
as janelas trancadas e cobertas por placas de aço. Não tinha permissão para ver
a rua, nem para andar pela casa. Quando Flores entrou no quarto, o menino deu
um sorriso alegre e pulou em seu braços. Ela o abraçou forte. Seu nome era Nek.
Era um menino inteligente e alegre e seria o orgulho de Julia Flores. Seria, se
não tivesse a pele viscosa e azul.
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