segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Os Azuis – Soldados (1 de 5)



A zona rural da cidade, bem distante do Centro, não era um lugar agradável de morar. Era muito quente e nem todas as casas tinham energia elétrica e saneamento básico. Os chefes de família, a grande maioria sem empregos, sustentavam suas casas com pequenas colheitas no quintal e criação de pequenos animais. As crianças não morriam de fome, mas também não tinham muita energia. Faltava asfalto e calçamento nas ruas e o transporte público não chegava nem perto quando chovia.

A pior coisa da zona rural eram os rumores. Com casas afastadas umas das outras, era fácil que boatos sobre determinada família se espalhassem quase na velocidade dos meios de comunicação. E, quando os boatos chegavam aos ouvidos do governo, os soldados nada amados apareciam para visitar os bairros mais afastados.

Com grossas roupas pretas, coletes e capacetes, os soldados Xavier e Flores tinham tudo para andar com dificuldade. Havia, porém, certa graça nos movimentos dos dois. Com as luvas de couro, Udo Xavier batia à porta de uma das casas. Um pouco mais atrás, Julia Flores mantinha, por segurança, sua mão próxima à arma. Na porta da casa, uma enorme letra “a” azul era o convite para a presença dos soldados.

“Pois não”, uma senhora muito velha olhou pela pequena janelinha da porta. Ao ver que eram os soldados do governo ela tratou de abrir passagem para a entrada dos homens de preto. Dentro de seu uniforme, não era possível perceber que Flores era uma mulher.

Além da velha, mais sete pessoas viviam na casa – duas filhas, um genro, três netos e um velho que não enxergava ou ouvia. “Ele é o verdadeiro dono da casa”, explicou a velha, “eu e minha família viemos para cá, pois nossa casa foi destruída.”

As famílias sabiam bem o que significava a visita dos soldados. Para evitar transtornos, cada um dos moradores da casa ficou em um cômodo diferente. O soldado Xavier observava minuciosamente cada detalhe, procurando um quadro torto ou um tapete fora do lugar. Qualquer coisa que lhe indicasse um caminho a seguir. Já a soldado Flores preferia conversar. Da pior maneira possível.

Julia Flores foi até um dos quartos e chamou a filha mais nova da velha. Era uma mulher de mais de quarenta anos, com cabelos quebradiços ficando grisalhos. A pele muito queimada pelo sol a fazia parecer uma anciã precoce. A soldado guiou a mulher até o quarto da mãe. Com a velha amarrada a uma cadeira, Flores puxou um facão da cintura. “Me diga, por favor, onde está o que estamos procurando e poupe esta velha do sofrimento”, disse Flores, com a lâmina no pescoço da velha.

A filha balançava a cabeça e chorava. Implorava misericórdia. “Não sabemos de nada. Nem sabemos quem pintou a letra azul. Isto é um engano, senhora”, a mulher, com as mãos juntas, fazia uma oração para a soldado. Para mostrar que falava sério, Flores cortou um dos dedos da velha. “Não me tome por fraca apenas porque eu sou mulher. Eu vou descobrir onde estão. Eu tenho um talento, que é fazer as pessoas falarem, e você vai falar”, as palavras quentes de Julia embaçavam o plástico do visor do capacete.

“Poupe minha mãe. Ela não tem nada com isso. Minha mãe sempre foi uma defensora do presidente, apesar do que alguns vizinhos dizem”, a filha insistia na inocência da família. A velha já havia desmaiado com a dor e com o sangramento. “Me diga onde estão!”, exigiu Flores, enquanto abria a garganta da velha com a faca. A mulher envelhecida nada disse. A soldado Flores foi então atrás de uma das crianças da casa.

Quando uma menina de cerca de oito anos foi amarrada à cadeira onde a velha sangrou até morrer, Udo Xavier se aproximou. “Já chega, Flores! Eles não sabem de nada!” A soldado se sentiu contrariada, mas acatou o comando de seu superior. “Aqui está”, disse ele, entregando para a jovem anciã um cartão magnético. “Vocês podem sacar a compensação pela morte da sua mãe. Nos desculpem qualquer transtorno.”

Em frente à casa, no carro de patrulha, Julia Flores foi obrigada a ouvir de seu parceiro um longo sermão sobre o uso de força excessiva. Ela, contudo, parecia não estar ouvindo. Observava um mapa e o riscava. E então sorriu. “O que foi, Flores?”

A soldado explicou. Aquele era o quarto chamado sem solução naquele mês. A quarta casa marcada com a letra azul em que eles não encontravam nada. As casas, porém, quase formavam uma linha reta. Uma de cada vez, elas avançavam para oeste da cidade, sempre a uma distância de um quilômetro e meio a dois quilômetros. Era um padrão. Flores fez a linha no mapa, no sentindo oposto às ocorrências, e terminou o traço em uma casa a cerca de dois quilômetros do primeiro chamado sem resultado.

Com pressa, Xavier dirigiu até a tal casa. Era uma casa velha, como todas as outras. Paredes recobertas de barro, para tentar afastar o frio da noite, e janelas de madeira. Não havia uma letra azul na porta, mas, naquele momento, Flores e Xavier não precisavam de convite para entrar. Com uma barra de ferro pesada, os soldados derrubaram a porta da casa.

Dentro, a poeira formava uma névoa que dificultava a visão dos homens de preto. Sempre que alguém se movia, correndo para fugir dos soldados, Julia atirava na cabeça para matar. Em menos de cinco minutos de ação, cinco pessoas já estavam sem vida no chão da casa. E aquele era só o começo.

A casa tinha dois andares e um porão. Com o andar térreo totalmente vasculhado, os soldados se dividiram. Flores ficou com o andar superior, enquanto Xavier revistava o subsolo. Em cima, ela não encontrou ameaça. Apenas duas adolescentes escondidas em um armário, nada que demandasse um disparo de sua arma. Já no porão, Udo matou uma mulher e fez um homem prisioneiro. Não acharam sinal do que estavam procurando, até que Julia utilizou suas habilidades.

Com o homem dominado no porão amarrado a uma cadeira, a lâmina no pescoço, e uma das adolescentes assistindo à cena, Flores deu o primeiro passo e arrancou uma das orelhas do sujeito. O grito podia ser ouvido por toda a casa. A adolescente chorava e escondia o rosto com as mãos, mas nada falava. Quando a soldado deu sinal de que arrancaria o nariz do homem e ele deu novo grito, uma voz foi ouvida do andar superior. “Parem, por favor! Deixem meu marido em paz! Eu conto onde eles estão!”, soluçava uma mulher com uma cicatriz na bochecha. “Nós marcamos as outras casas para afastar vocês de nós! Nós só queríamos protege-los!”

Ela guiou os soldados até uma porta falsa, escondida na lareira. Atrás da porta, quinze pessoas ne encolhiam nos cantos, se abraçando e se protegendo mutuamente. Eram pessoas de pele azul viscosa e sem nariz. Alienígenas chegados à Terra há cerca de vinte anos. Eebs. Com dezessete tiros, Xavier e Flores mataram todos os “azuis”.

Ainda naquela tarde um ônibus da polícia parou ao lado da casa e os humanos que protegiam os eebs foram levados para a Fazenda. Ninguém jamais voltou da Fazenda. Flores e Xavier preencheram seus relatórios e partiram. Em poucas horas, eles sabiam, outra casa seria marcada com uma letra azul e eles voltariam a agir.
Julia Flores não morava na zona rural da cidade. Vivia em um bairro planejado, um condomínio bem protegido. Privilégio das pessoas que tinham a confiança do presidente. Uma casa de paredes brancas, com um carro popular na garagem. Esse era o luxo da vida da soldado. Ao chegar em casa, ela tomou um longo banho. Deixou que a água caísse no seu corpo e limpasse o sangue azul que havia lhe impregnado a pele.

Se arrumou com uma camisola branca folgada, colocou sua comida no forno e foi ver seu filho. A criança aparentava ter dois anos de idade, mas era mais nova que isso. Ficava o dia todo sozinho em um quarto, com as janelas trancadas e cobertas por placas de aço. Não tinha permissão para ver a rua, nem para andar pela casa. Quando Flores entrou no quarto, o menino deu um sorriso alegre e pulou em seu braços. Ela o abraçou forte. Seu nome era Nek. Era um menino inteligente e alegre e seria o orgulho de Julia Flores. Seria, se não tivesse a pele viscosa e azul.

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