terça-feira, 6 de novembro de 2012

Negócio pendente – Ao som de harpas (2 de 4)



Aquela era uma situação nova para Greg Cash. Que belo detetive ele era, com quase quinze anos de experiência e saindo para uma investigação de verdade pela primeira vez. Em geral, os desencarnados o procuravam e diziam tudo. “Este é meu assassino, ele me matou assim e a arma está escondida em tal lugar.” Aí era só entrar em contato com a polícia passando as informações. Mas com um fantasma realmente precisando de ajuda, Cash foi obrigado a aprender na prática como trabalha um detetive particular.

Sentado no sofá da sala que pertencera a Zeke Anderson, Greg aguardava enquanto Lisa, a viúva, preparava um café para acompanhar a conversa. Ele havia se identificado como representante da seguradora, buscando mais informações para pagar a indenização pelo acidente. Lisa não entendia como dados da vida pessoal do falecido marido poderiam ajudar a seguradora, mas não se opôs a ajudar.
“Zeke era um homem muito bom”, disse a viúva, entregando uma xícara de café para o detetive. “Sempre agradeci a Deus por ter me dado um marido tão bom. Um homem correto, honesto e trabalhador. E temente a Deus, principalmente.”

Das informações dadas por Lisa, nenhuma ajudou a determinar o negócio pendente do desencarnado. A mulher o conhecia desde criança, eliminando a possibilidade de qualquer passado oculto. Nunca teve outra mulher, nem amante. Nenhum inimigo. Sem filhos ou animais de estimação. Dedicava boa parte de seu tempo a trabalhos voluntários na igreja próxima de casa. Depois de checar todas as informações dadas pela mulher, Cash chegou a conclusão de que Zeke não tinha nenhum negócio pendente. E só havia um lugar para onde poderia ter ido.

Revelations. Um bar barra pesada na periferia de Cougar Creek. A região era tão violenta que a polícia evitava atender os chamados dos moradores. A fachada do bar era cinza e precisava de uma reforma imediata, com muitas pichações. Do lado de dentro, havia um cheiro azedo e a música era muito alta. Greg foi até o balcão, pediu uma bebida qualquer e chamou um garçom. “Gostaria de falar com o gerente desta espelunca”, gritava o detetive, a fim de ser ouvido. “Diga para ele que meu nome é Greg Cash.”

O garçom imediatamente guiou Cash por um corredor, até os fundos do Revelations. “Ele já está lhe aguardando”, disse o homem, de um jeito muito cortês. Enquanto atravessava o corredor, o punk rock da entrada ia ficando para trás e um som de harpas começava a ser ouvido. Jogando bilhar, um homem muito alto, musculoso e de cabelos raspados. Sua pele era coberta por tatuagens. Uma chamava atenção. Uma imensa cruz nas costas, que a camiseta deixava à mostra parcialmente.

“Gregory Cash, o detetive que vê humanos mortos”, o homem disse sorrindo. Sua voz era incrivelmente suave e em nada combinava com aquele sujeito, que poderia quebrar o pescoço de Cash sem esforço. “Está procurando um defunto que desapareceu. Ezekiel Anderson. E como não achou nenhuma mácula em seu currículo acreditou que ele estaria em minha companhia.”

“Não é a toa que lhe chamam de Zophiel, o espião”, Cash saudou o homem com a cabeça. A sala era iluminada por uma lareira e quando o fogo crepitava mais forte era possível ver as imensas asas cinzentas de Zophiel. “Você sabe onde ele está?”

Um anjo. O espião de Deus. Só o fato de procurar aquele homem dava um frio na espinha do detetive. Cash sempre soubera da existência do Revelations. Era para lá que boa parte dos desencarnados iam quando seus negócios pendentes eram concluídos. Além disso, Zophiel era muito conhecido no submundo sobrenatural por possuir agentes espalhados por toda Cougar Creek.

“Vou ser bem sincero, Gregory. Posso te chamar de Gregory, certo?”, o detetive assentiu. “Eu gosto de você. Já te observei algumas vezes. Sabe por que eu gosto de você? Porque este mundo é uma loteria. E só existem dois prêmios. Um prêmio é ruim e um prêmio é bom. E para ganhar o prêmio bom, você só precisa jogar os números certos. Você só precisa acreditar e andar na linha. Muito simples. Mas mesmo assim, muita gente joga os números errados. Duvida, blasfema, peca e não se arrepende. O mais curioso é que você não está jogando. Você conhece o prêmio desde os seus cinco anos, quando você bateu à nossa porta, mas foi chamado de volta. Você provou o sabor da plenitude. E quando você voltou, você poderia ter sido um profeta. E que belo profeta você seria, Gregory. Você imagina o impacto que teria sobre o mundo se você contasse as suas experiências, as suas visões? Mas você preferiu se calar. E isso te garantiu o prêmio ruim, você sabia disso? Mas aí, um dia, um defunto apareceu e pediu a sua ajuda. E você ajudou. E ajudou a todos os defuntos que apareceram no seu caminho, sem questionar se eles haviam sido bons ou ruins em vida. Você os ajudou. E é isso o que um bom profeta faz: espalha a palavra do Homem. Eu sei que você ganha um dinheirinho aqui e outro ali, mas sei que esta não é a sua motivação. E o Homem também sabe disso. E sabe qual é o resultado? Você não está concorrendo ao prêmio ruim mais. Você simplesmente não está mais concorrendo à loteria da vida humana e eu estou muito curioso para saber o que vai acontecer com você quando morrer. Por isso, mantenho sempre um agente bem perto de você.”

“Infelizmente, Zophiel, eu não estou atrás de pistas sobre o meu paradeiro”, Cash foi incisivo. “Quero saber sobre Zeke Anderson. Ele está aqui? Ele está com vocês?” O tom do detetive claramente desagradou Zophiel. O anjo largou o taco de bilhar sobre a mesa e se aproximou de forma ameaçadora de Cash, sem, contudo, perder a voz doce.

“Zeke Anderson era um homem correto, Gregory. Ele ia à igreja, era asseado e cumpria suas obrigações para com sua mulher. E isso só significa uma coisa. Ele era entediante. Meu querido Gregory, quando você tiver milhões de anos e souber que continuará vivendo por toda a eternidade, você não vai querer fazer coisas entediantes, pois elas fazem o tempo passar mais devagar. Eu não sei nada sobre o senhor Anderson. Só sei que ele não está aqui. E que ele não viu a face do Homem nem beijou Seus pés. Ele era um personagem plano e nós aqui gostamos de personagens mais complexos. Talvez em algum momento entre assistir a uma missa chata, fazer um trabalho voluntário chato ou dar uma esmola a algum mendigo chato ele tenha tido um pensamento libidinoso com a filha do melhor amigo. Sei lá. Ele era entediante e isso bastava para mim.”

Greg Cash agradeceu pelo tempo de Zophiel e se despediu. Enquanto cruzava o corredor para sair do Revelations, o espião de Deus o chamou novamente. “Se isso te deixar mais tranquilo, vou deixar meus agentes de olho e peço para um deles entrar em contato caso descubra algo que possa ajuda-lo. Eu poderia te aconselhar a bater um papo com o anjo da guarda de Zeke, mas depois do acidente que matou o senhor Anderson e seus dois amigos... Bem, posso dizer que aquele anjo não está desfrutando de uma temporada de férias neste momento”, Zophiel gargalhou ao terminar a frase.

A esperança de resolver logo o caso do desaparecimento do desencarnado foi por água abaixo. Se por um lado era bom saber que Zeke não havia ido para o Revelations, por outro lado a alternativa era assustadora. Só havia um único lugar onde Greg Cash poderia buscar mais pistas: o inferno.

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