Desde que chegaram à pequena cidade, Nek não saíra do colo
de Rav, o rebelde mestiço. Julia Flores observava os dois com um pouco de
distância e sentia-se julgada o tempo todo pelos habitantes do lugar. Ela só
sabia que em algum momento eles desistiram de mata-la, mas não sabia ao certo o
que aconteceria dali em diante. Nek parecia se dar bem com Rav. No início,
ficara assustado, pois jamais vira alguém que não fosse Julia, mas agora já se acostumava
com o homem.
“Como você o chama?”, perguntou Rav, apontando para o
menino. Julia sabia que estava sendo testada. Ela testou muita gente em sua
carreira para saber quando alguém estava julgando se tirava ou não a vida de
alguém. “Eu o chamo de filho”, disse a soldado, com a voz dura, “mas o nome
dele é Nek, se é isso o que você quer saber.”
O mestiço riu, o que incomodou profundamente Flores. “É um
nome apropriado”, disse Rav. “Nek significa ‘proteja-o’ em um antigo dialeto
eeb. Nós usamos esse dialeto para encriptar nossas mensagens. Alguns ficam
tanto tempo mergulhados no dialeto que acabam o adotando como idioma. Esse era
o caso de um grupo nosso. Um grupo que vivia em um hospital que você invadiu.
Um grupo que você matou.”
Julia se assustou com a quantidade de informações que o
Exército Azul dispunha. Em teoria, exceto ela, Xavier e alguns outros soldados
que revisaram seu relatório, mais ninguém sabia quem tinha sido responsável
pelo massacre no Hospital da Misericórdia. “Havia uma mulher com esse grupo”,
Rav deixou Nek no chão, enquanto falava com Julia. “O nome dela era Hag. Ela
era uma amiga. E ela falava fluentemente o dialeto. Alguns dias antes de
sabermos do massacre, eu recebi uma mensagem dela dizendo que seu filho tinha
nascido. O nome da criança era Juj. Na mensagem, ela pedia para que eu o
protegesse, caso algo acontecesse a ela. Pelo visto, Hag também pediu que você
protegesse a criança.”
Flores deixou que uma lágrima rolasse. “Eu matei esta
mulher. E eu ia matar o Nek da mesma maneira. Mas eu não consegui. Eu o escondi
e o levei para casa. Minha ideia era achar um grupo rebelde que pudesse levar o
garoto para longe”, a soldado se impressionava com a facilidade com que
confessava seus atos. “Mas a verdade é que eu me afeiçoei. Passei a vê-lo como
meu filho. Eu o amo. Decidi que não mataria mais nenhum eeb, que deixaria o
esquadrão. Infelizmente, isso levantaria suspeitas. Outros soldados iriam à
minha casa e descobririam sobre Nek. Eles matariam meu filho. Por isso,
continuei matando eebs. É ridículo, eu sei”, ela chorava sem parar, “mas matei
muitos eebs para proteger a vida de um.”
Rav levantou-se de onde estava e ajudou Julia a se levantar
também. Ele a acompanhou em um passeio pela pequena cidade. “Aqui, não existem
humanos ou eebs. Somos todos iguais, todos irmãos e amigos. Vocês nos chamam de
Exército Azul, mas nós estamos longe disso. Somos mais como uma cooperativa,
uma sociedade secreta que busca permanecer secreta. Temos aqui espaço para
todos os que querem ser felizes, sem precisar ter medo ou vergonha. Temos
certamente um lugar para Nek. E temos um lugar para você, se assim você quiser.”
Flores, tão dura e cruel enquanto soldado, estava frágil e
chorosa. Não entendia bem como aquele povo que ela perseguiu e matou a aceitava
com o coração tão aberto. “Como vocês chamam este lugar?”, ela tentava se
habituar à nova cidade. “Eu chamo de Lar. Muitos chamam de Edn”, disse o
mestiço. “É a palavra eeb para Paraíso.”
Edn. “O Jardim do Éden”, pensou Julia.
Rav levou a soldado até uma casa, onde uma humana muito
gorda preparava comida ao lado de um eeb claramente idoso. A comida cheirava
muito bem. “É um prato típico eeb preparado com ingredientes da Terra”,
explicou o mestiço. “A cozinheira é Clara e seu ajudante é Kai. Eles são meus
pais.” Julia abriu um imenso sorriso. Se sentia no meio de iguais, em uma
família multirracial como a sua. Em poucos minutos, um dos companheiros de Rav
levou Nek até a casa. Todos jantaram juntos.
Quando a noite caiu, Rav convidou Julia e Nek para dormir na
casa dele. Disse que no dia seguinte procuraria um lugar bom para os dois, mas
que naquela noite era melhor que ele fizesse companhia. Ela aceitou e Nek
dormiu rapidamente, sob os cuidados de Clara. Julia ficou na sala, conversando
com o mestiço, confessando seus pecados e lavando-os em lágrimas.
No início da madrugada, Caio, um dos humanos que tentara capturá-la
mais cedo, entrou correndo na casa. Chamou Rav em um canto e disse algumas
coisas em seu ouvido. Pela cara do líder do Exército Azul, ele não estava
contente. “Acho que esta é uma boa hora para você nos ajudar”, Rav falou para
Julia. “Há um homem estranho se aproximando da cidade e ele já matou três eebs
no caminho.”
Caio e Rav não carregavam nenhuma arma. Era como se eles
achassem que poderiam deter o homem apenas com um pedaço de corda e algumas
palavras inspiradoras. Julia confiava mais na força e tinha sua pistola em
mãos. De longe, os três ouviram alguns disparos feitos pelo estranho.
Certamente, mais alguns eebs estariam mortos naquele momento.
Passo a passo, os disparos ficavam mais altos e a visão mais
clara. Foi então que Flores percebeu quem era o agressor. Udo. Soldado Xavier.
Seu parceiro e amigo. Ela congelou, enquanto Rav e Caio seguiam na direção do
soldado. “Parem, ele é letal”, ela tentou dizer, mas a voz não saiu.
Sem nem olhar para os dois, Xavier matou Caio com um tiro no
pescoço. Julia tremia. Rav agachou-se no chão, para ter certeza que seu amigo
estava morto. O soldado trocava o pente de sua pistola, para continuar sua
chacina. Com uma bala na agulha, apontou a arma para a cabeça do mestiço. Um
tiro.
Uma pequena porção de fumaça saía do cano da arma de Julia
Flores. Rav ainda checava os sinais vitais de Caio, em vão. Alguns passos para
trás, Udo Xavier agonizava no chão. Ele já sabia que era questão de tempo até a
morte chegar, mas tentava alcançar sua pistola na tentativa de levar mais
alguns azuis com ele. O soldado parou, porém, quando viu que sua parceira era a
sua algoz.
“Eu vim te proteger”, Xavier tentava falar. A bala
atravessara seu pulmão direito e ele estava aos poucos se afogando no próprio
sangue. “Achei que você estivesse morta ou em perigo e vim te proteger.” Flores
voltou a chorar e pediu desculpas para o parceiro. “Por que?”, ele perguntou.
Julia quis contar sobre Nek, mas Udo já estava morto.
Além dos corpos de Xavier e de Caio, alguns outros estavam
ao redor de Julia. Rav checava quem estava vivo e quem já partira. Flores
girava confusa em meio àquilo. Já estivera em muitas cenas de crime, mas nunca
naquela situação. Nunca tendo matado um amigo e vendo os protetores de seu filho
mortos. “Eu preciso ir. Eu lamento”, disse ela, fugindo do lugar.
Um pouco sujo de sangue, Rav a seguiu. Ela arrastava o corpo
do soldado Xavier até seu carro. “Espere, Julia. O que você está fazendo?”, o
mestiço observava com cautela. “Preciso ir”, disse ela. “Se Xavier me
encontrou, outros me encontrarão. Preciso estar longe daqui quando isso
ocorrer.” Ela arrancou o localizador da caminhonete de Udo e jogou no
porta-malas de seu carro. Depois amarrou o velho veículo ao para-choque na
caminhonete. O corpo de Xavier foi colocado sentado no banco do carona do carro
da soldado.
“Esse caos nunca vai acabar”, Flores segurava com força as
mãos azuis de Rav. “Mais soldados do esquadrão virão. Enquanto Tomás Souza
estiver no poder, e talvez até depois dele, os soldados continuarão vindo. Eu
vou afastá-los de Edn. Só me prometa uma coisa, Rav. Me prometa que você vai
cuidar do meu filho. Me prometa que você vai criar Nek como se ele fosse seu.”
Rav concordou sem dizer qualquer palavra. Flores entrou na
caminhonete e deu a partida, mas antes de sair voltou a falar com Rav. “Só mais
uma coisa. Acho que o Nek não vai se lembrar de mim. Ele ainda é muito pequeno.
Mas quando você puder, diga a ele quem eu fui. Diga a verdade. Conte que eu
matei muitos eebs, mas que eu mudei por causa dele. E eu espero que você possa
falar também dos meus próximos dias. E eu espero que os próximos dias sejam
melhores para todos nós.”
Julia deixou Edn para trás. Dirigiu por poucas horas, até
chegar ao posto de gasolina onde foi sequestrada. Lá, soltou seu carro da
caminhonete e o estacionou próximo a uma bomba. Se despediu de Xavier com um
beijo na esta de seu corpo morto. E explodiu o posto.
O fogo podia ser visto há quilômetros de distância e os
soldados foram para lá, desviando o foco da cidade dos rebeldes. Encontraram o
carro de Flores com o corpo de Udo e tiveram certeza que a soldado agora era
uma terrorista. A principal inimiga do governo, por ser munida de importantes
informações e ter um talento único para matar.
Do alto de um prédio abandonado, Julia Flores via as
viaturas passando, procurando por ela nas imediações. A terrorista sabia que
precisava chamar atenção. Precisava levar os soldados para longe de Edn. Para
longe de seu filho. Nem que isso fosse custar sua própria vida.
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