quarta-feira, 8 de outubro de 2008

A cidade em que morri


O calor e o clima seco só faziam aumentar a angústia de Maria Lúcia. Sentada naquela praça empoeirada, ela se arrependia de ter saído de casa. Já estava esperando há mais de uma hora. Esperaria quantas horas fosse preciso. Não poderia continuar naquela cidade horrorosa em hipótese alguma.

Pegara um avião alguns dias antes. Saiu do Rio de Janeiro em uma ponte aérea para São Paulo. De lá embarcou em um aviãozinho de passageiros da TAM que não podia ver uma pista no meio do mato que já ia pousando. Toda vez que Lúcia achava que estava ganhando altitude, o maldito aeroplano já se aproximava de outra fazenda para pegar ou deixar passageiros.

O destino era Pontaporã. Não era para ser. No princípio daquele mesmo ano, 1977, Lúcia e o pai combinaram de visitar Recife. Senhor Luiz Gonzaga, um pernambucano alto, de pele clara, descendente de holandeses, queira ver a cidade natal mais uma vez. Lúcia queira apenas acompanhar o pai numa viagem. Como o destino prega peças, Luiz Gonzaga faleceu, em fevereiro, antes da viagem. Decidida a passear, mesmo sem companhia, Maria Lúcia, que na época tinha 21 anos, mudou o destino para visitar uma amiga.

Stela morara no Rio de Janeiro e tinha trabalhado com Lúcia numa agência do Banco Nacional. Quando o marido dela se transferiu para o Mato Grosso a pedido do Banco do Brasil, Stela o acompanhou. Lúcia estava disposta a fazer uma surpresa para a amiga. Não avisou da viagem a ninguém, exceto aos pais de Stela que pediram que uma boa quantidade de camarões fosse lavada à filha. Dito e feito, Lúcia e os camarões embarcaram no trem parador rumo à fronteira do Brasil com o Paraguai.

A jovem estava com pouco dinheiro e uma incrível falta de sorte. Um inesperado excesso de bagagem levou embora uma porcentagem de suas cifras, mas ela não estava preocupada com isso. Queria era se divertir. No avião, conheceu o senhor Gilson, que também iria para Pontaporã. O velho homem, um pouco gordo e de barbas bem desenhadas, logo percebeu que ela não era dali e lhe ofereceu uma carona. Chegaram ao endereço de Stela no princípio da tarde. Maria Lúcia agradeceu, catou as malas e pôs-se à porta da casa grande. Bateu palmas (não havia campainhas) e viu uma figura desconhecida atender:
- Pois não?
- Olá! É aqui que mora a Stela e o Paulo?
- È sim, minha filha. É na casa dos fundos. Me diga seu nome que eu vou chamá-los.
- Meu nome é Lúcia, mas olhe só... Não diga que eu estou aqui.
A mulher a chamou para entrar. Lá dentro, pôde explicar-se com mais calma:
- Nós trabalhávamos juntas. Somos muito amigas. Eu sou até madrinha do filho dela, o Paulinho. Vim visitá-la, mas não avisei nada.
- Você deve ser louca... Vir para este fim de mundo sem avisar...
- Uma aventura de vez em quando não faz mal. Se a senhora pudesse chamá-la sem avisar que eu estou aqui seria muito bom.
A dona da casa enfiou a cabeça para fora da janela e começou a gritar:
- Oh, Stela! Venha cá, minha filha! Acode Stela! Acode!

Stela partiu numa corrida de sua casa à da senhoria, equilibrando o bebê no colo, com o marido logo atrás dela. Que desgraça estaria acontecendo para tamanho escândalo? Os três invadiram a sala prontos para salvar a mulher dos escombros de um desabamento ou das chamas rebeldes de um incêndio, mas só encontraram uma senhora quieta e uma amiga de longa data. “Lúcia, Lúcia!”, e a festa não tinha fim. Abraçaram, beijaram, agradeceram os camarões, repreenderam a loucura e o sigilo. Por fim, tomaram a amiga pela mão e carregaram-na para sua casa. Deram comida, bebida, levaram para conhecer a cidade. Apesar de toda a atmosfera pacata que cobria a cidade, o chão de barro vermelho que deixava roupas e cabelos parecendo urucum a incomodou nos primeiros dias. Os tiroteios entre policiais e contrabandistas tiraram o sono da turista. Sim, pasmo leitor, naquela época ainda não havia tiroteios no Rio de Janeiro.

Para compensar a casa onde se instalou e todas as despesas que dava, Lúcia decidiu-se por pagar as compras de supermercado. Atravessaram a fronteira, que era nada menos que um canteiro no meio de uma avenida e se abasteceram no mercado mais próximo de casa. Lá se foi mais dinheiro embora.

Passados cinco dias de sua chegada, Lúcia despediu-se e seguiu viagem. De Pedro Juan Caballero, na fronteira, pegou um ônibus para Assunção, capital paraguaia. O ônibus merecia um conto à parte. Velho e enferrujado, carregava todo tipo de gente: turistas, contrabandistas, caboclos e senhores ricos. Qualquer pessoa que quisesse chegar a uma cidade com vestígios de civilização precisava tomar aquela condução. No meio do caminho, uma forte chuva começou a cair. O ônibus reduziu a velocidade parou completamente ao chegar a uma ponte. Sem saber o que estava acontecendo, Lúcia acompanhou todos os passageiros para o lado de fora. Entendendo praticamente nada e preocupada com as malas, atravessou a ponte a pé. Ao chegar à outra extremidade, viu o carro seguir na direção dos passageiros. Subiu de volta, tomou seu assento e seguiu viagem. Só num país como o Paraguai as pessoas atravessam para dar passagem ao ônibus.

Empolgada com a viagem, Maria Lúcia viu seu sonho desmoronar ao chegar em Assunção. Era a cidade mais opressora em que ela já estivera. Chegou a pensar: “Se existe reencarnação, em outra vida eu morei nesta cidade, fui torturada e sofri muito. Esta é a cidade em que morri”.

Ela encaminhou-se para o hotel, reservou um quarto, arrumou suas coisas. Estava disposta a sair do quarto, mas não achava motivação. Andou de um lado para o outro até que decidiu conhecer as ruas. Dirigiu-se calmamente a uma praça e, de repente, deu de cara com coisa mais bela de toda a cidade: Aerolíneas Argentinas. Era o melhor meio para fugir daquela cidade, daquele país. Correu para a loja, mas deu de cara com a porta fechada. Era a hora de sesta. Toda a praça estava deserta. Nenhuma loja aberta, nenhuma alma viva perambulava pela rua. Uma sensação péssima começou a tomar o corpo de Lúcia, uma náusea sem clara explicação, sem origem aparente. Resistiu. Sentou-se no centro da praça e esperou uma hora, mais uma e mais outra até que a loja, enfim, reabriu. Lançou-se ao seu interior e implorou a fuga mais rápida daquele lugar demoníaco. Foi informada que a próxima viagem Assunção-Buenos Aires seria apenas no dia seguinte. Desolada e sem esperanças vagou pela cidade. Para não perder a viagem, conheceu museus e pontos históricos, sem ser jamais abandonada pelo sentimento de angústia que lhe tirava a concentração.

Voltou ao hotel, dormiu mal e correu para o aeroporto. Apesar do dinheiro extra que estava gastando, era o melhor negócio dos últimos vinte e um anos. Sentiu o maior alívio que alguém pode sentir quando chegou à Argentina. Esqueceu-se qualquer rivalidade entre o país e sua terra natal e abraçou com carinho a cidade que bem a acolhia. Na chegada ao hotel, contou cada centavo, separou o dinheiro da volta a comprou as excursões que seu bolso alcançava. Dura que nem uma porta, ela tomava o desayuno e guardava as sobras para o restante do dia. Geléias, torradas, biscoitos, manteiga: tudo o que coubesse na bolsa era petisco para mais tarde.

Na primeira excursão que fez, ouviu a palavra restaurante, e, desesperada correu ao programa. Era realmente um restaurante, provavelmente iriam jantar em algum lugar. Quando a saliva tomava a boca, lembrou-se de que não tinha mais dinheiro. Que vergonha! Teria de ficar no ônibus, enquanto todos celebravam a gula. Ou pior: sairia do ônibus como se tudo estivesse bem e sumiria até a hora da volta. Quando, triste, já se preparava para dar uma boa desculpa, ouviu um compatriota perguntar:
- O que é cena?
O guia argentino não entendeu o sentido da pergunta. Cena é cena, o que mais haveria de ser?
-Aqui diz cena.
Foi então que um espanhol com antepassados lusitanos esclareceu, com um português quase irreconhecível:
- Cena é jantar.
Lúcia consultou o programa e lá estava: cena. O jantar estava incluído no pacote. Respirou aliviada. Num pulo, saiu de seu lugar rumo ao restaurante. Era o lugar mais lindo de toda a América do Sul. Garçons desfilando, talheres pesados, lustres de cristal, espelhos imensos (que deixariam a Confeitaria Colombo com inveja), uma infinidade de copos, facas, garfos e colheres. A comida era deliciosa, com o requinte da culinária francesa e o exagero dos pratos italianos.

Maria Lúcia “a-do-rou” Buenos Aires. Conheceu tudo o que se pode conhecer. Dançou tango, conheceu La Boca, o centro da cidade, o Rio de la Plata e descobriu que quando se flerta com o guia pode-se ir a qualquer passeio. O argentino Marcelo a levava a todo canto. Tudo ia bem, até que na última noite ele resolveu dançar mais juntinho e se insinuar. Tudo acabado, então. No quarto dia, depois de uma adorável estada e um passa fora, a jovem deixou o país.

Num ônibus leito branco com um “Pluma” azul na lateral, ela foi de Buenos Aires a Porto Alegre, de onde nem saiu da rodoviária. De lá mesmo, pegou outro ônibus para Blumenau, Santa Catarina. A irmã do meio, Maria da Conceição, morava na cidade da Oktoberfest – que ainda não era a cidade de Oktoberfest, pois o festival só surgiu após as enchentes de 1983 – desde o casamento alguns anos antes e tinha duas filhas pequenas, Marta Helena e Valéria Beatriz. Ao chegar na cidade tomou um táxi e ordenou:
- Por favor, senhor, vá à Vila Formosa, próximo à Alameda – na porta da casa a irmã já esperava com o dinheiro da corrida do táxi na mão, já que Lúcia estava zerada.

Em Blumenau tudo era bom. Tinha a irmã, o cunhado, as sobrinhas, comida boa, café colonial e nenhuma preocupação. Ficou uma semana e pôde celebrar o Natal com Maria da Conceição. Ceia de Natal, mais comida. Ganhou dez quilos que levou quase um ano para perder.

Com o fim das férias, viu-se obrigada a voltar para casa. A irmã pagou-lhe o avião da volta e lhe deu um dinheirinho extra para qualquer eventualidade. Do Santos Dumont, tomou um táxi até a Tijuca. Deu um beijo na mãe Lalieta e na irmã Íris. Antes de arrumar qualquer coisa, buscou o diário na gaveta da cômoda. Em vez dos detalhes de tal aventura, escreveu apenas:
“Visitei a cidade de Assunção. Fiquei 24 horas porque não consegui sair antes”.

Em memória de Dona Lúcia (1956-2008), minha mãe, que me ensinou a chorar