quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Biografia – Personagem medíocre (2 de 6)


Sandro Pestana. As pequenas letras pretas sobre as grandes letras vermelhas do título, estampadas na capa branca, indicavam o autor do livro. Sandro Pestana. Quem é Sandro Pestana?, pensava Bruno. E, principalmente, qual a motivação de Sandro Pestana para escrever um livro sobre a sua vida?

Provavelmente, o caminho mais fácil era descobrir quem ele era. Em uma busca rápida na internet, tudo o que Bruno descobriu era que Sandro Pestana havia escrito o livro Não fui sincero com você. Nenhuma foto. Nenhum perfil em rede social. Nenhuma menção em parte alguma. Já quando o bancário pesquisou sobre o livro descobriu que a biografia – biografia era mesmo a melhor forma de chamar? – estava entre os dez mais vendidos no país no último mês. O link de uma resenha chamou a atenção de Bruno. “Não fui sincero com você não é um livro comum. Não abra suas páginas procurando por uma história de ritmo frenético ou com grande apuro literário. O que faz o livro ser único é a mesmice. Bruno Castro, o protagonista, é um personagem medíocre que vive uma vida medíocre. Não conseguiu conquistar nada em sua vida e usa todas as suas forças para diminuir a importância das ações dos que estão ao seu redor. No fundo, é um livro de autoajuda, no sentido que qualquer pessoa que leia a obra se sentirá melhor com as escolhas da própria vida.”

Medíocre. Se alguém pedisse para que Bruno se descrevesse, ele jamais usaria esta palavra. Mas, após ler o livro e refletir a respeito, ele realmente parecia um personagem plano, sem graça. Vazio.

Ainda na busca pela identidade do autor, Bruno decidiu revirar todos os papéis que tinha em casa. Alguém que explorara tão bem a sua vida a ponto de escrever sua biografia provavelmente o conhecia de algum passado remoto. Da parte de cima do armário, o bancário puxou uma caixa de papelão empoeirada e ligeiramente amassada. Dentro delas, relíquias de seus primeiros anos. As cadernetas do Colégio Pedro II, fotos das turmas desde a pré-escola, a escalação do time de futebol dente de leite que disputou um campeonato em um campinho de terra, os colegas de catecismo da Igreja de São Judas Tadeu, fotos da festinha de uma amiga com as crianças que moravam no mesmo prédio – tudo armazenado em um mínimo espaço. Bruno gastou horas pesquisando. Achou um Sandro aqui, outro Sandro ali, alguém com sobrenome Pestana. E só. Nenhum Sandro Pestana em seu passado.

Talvez a única saída fosse recorrer a quem efetivamente divulgou sua história. Na última página do livro, achou o endereço da editora e para lá foi tentar descobrir quem havia perdido tempo documentando cada passo e pensamento seu.

– Em que posso ajudar? – perguntou a recepcionista, uma moça morena muito gorda que mesmo conversando com ele não tirava os olhos de uma revista de fofoca.
– Eu procuro por Sandro Pestana. Ele é autor de um livro que vocês publicaram.
– Qual é o assunto? – ela virava as páginas da revista.
– Gostaria de discutir com ele alguns pontos do livro que ele escreveu.
– Senhor, muita gente quer falar com os autores. Eles querem elogiar, criticar e, às vezes, até ameaçar de morte. Acredite em mim, senhor, sua opinião não faz diferença para quem escreveu o livro. Bem... desde que você tenha comprado o livro.
– Digamos então, minha querida, que eu queira processar o autor e, consequentemente, a editora por conta do livro. Neste caso, eu conseguiria um pouco mais de atenção?
– Senhor – ela finalmente tirou os olhos da revista, – o livro custa, sei lá, quarenta reais. Se o senhor não gostou, bola pra frente. Não precisa processar ninguém por isso. Quem sabe vendendo para um sebo o senhor consegue recuperar parte do investimento.
– Acredite em mim, minha cara, eu não pretendo me desfazer do livro. Provavelmente comprarei até mais exemplares. Esse livro conta a minha história. Minha vida. E eu não autorizei ninguém, nem este autor, nem esta editora, a falar sobre a minha vida. Por isso, acho que caberia um bom processo.
– O senhor é Bruno Castro? – a recepcionista deixou a revista de lado. Bruno concordou com a cabeça. – Senhor Bruno, mil desculpas, não era minha intenção. Eu li o livro. Fiquei fascinada. Ele me fez pensar muito sobre a minha vida e...
– E ver o quanto a sua vida é incrível em comparação com a minha. Eu sei.
– Olha... Nós não temos autorização para passar informações sobre os autores. Mas, se o senhor não contar para ninguém, posso ajuda-lo.

A mulher anotou um endereço em um pedaço de papel. Era tudo o que ele tinha em mãos e já era um lugar por onde ele poderia começar. Antes de Bruno sair, ela pediu que ele autografasse seu livro. Ele fingiu que não ouviu e partiu.

Sandro Pestana, o autor, morava em um prédio antigo em Laranjeiras. Segundo o porteiro, morava sozinho. Era um senhor de mais de setenta anos e Bruno não imaginava de onde poderia conhecê-lo. O velho abriu a porta. A casa fedia a urina e Sandro andava arrastando os pés e carregando uma bolsa coletora de fezes. Ele indicou uma cadeira para que o bancário sentasse, mas Bruno preferiu ficar em pé.

– O porteiro me disse que é sobre o meu livro?
– Sobre o que mais seria?
– Recebo muitas visitas. Em geral, são oficiais de justiça. É a primeira vez que alguém me procura sobre o livro.
– Vamos parar de palhaçada, por favor!  – Bruno estava irritado, mas logo foi dominado pela desconfiança quando percebeu que o velho se assuntou. – Você não sabe mesmo quem eu sou?
– Não, meu jovem. Me desculpe, mas eu não sei.
– Eu sou o Bruno Castro.
– O protagonista?
– O verdadeiro Bruno Castro. Eu quero saber como você sabe tanto sobre a minha vida.
– Ai, meu filho... Eu lamento... Eu não sabia.
– Não sabia o que? – Bruno voltou a levantar a voz.
– Eu não sabia que você existia. Veja bem... Eu amo literatura. Sempre gostei. E sempre tentei escrever. Posso dizer que tenho mais de dez livros pela metade e outros tantos rejeitados. Já ouvi de tudo. Que eu não sabia escrever, que minhas ideias eram fracas, que nada era original. Acabei desistindo. Quer dizer, desisti temporariamente, até descobrir que estava morrendo. Eu tenho câncer no intestino. Sei que não vou viver muito mais. Se eu durar mais dois anos já será muito. Minha mulher já morreu. Alzheimer. E não tivemos filhos. Quando eu morrer, acabou. Não vai restar nada de mim. Minha única chance de conseguir sobreviver, uma imortalidade momentânea, você sabe, seria conseguindo escrever um livro que se destacasse. Foi assim que “Eu não fui sincero com você” surgiu.
– Eu ainda não entendi como eu me encaixo nesta história.
– É muito simples. Eu estou velho e morrendo, arriscando todas as minhas fichas em um livro. Se ele for um fracasso, como todos os outros, acabou. Só tenho uma chance, entende? Foi por isso que eu contratei um... como se chama? É um escritor anônimo.
– Ghost writer.
– Isso exatamente. Conheci um rapaz. Li umas coisas dele e achei muito bom. Durante um tempo, ele me deu dicas para tentar escrever melhor. Antes de eu desistir, você sabe. Eu sabia que ele fazia uns bicos escrevendo pelos outros ou com pseudônimo. Ele escrevia essas histórias semieróticas de banca de jornal para meninas na puberdade. Esses livros de capa rosa com desenhos de mulheres ao lado de homens cabeludos sem camisa sobre cavalos. Perguntei se ele queria escrever para mim um livro de sucesso. Expliquei para ele que não estava atrás de dinheiro, ele poderia ficar com tudo. Me passando o dinheiro dos remédios, o resto era dele. Eu só queria meu nome na capa e o livro em todas as lojas. Ele topou e perguntou como eu queria a história. Disse para ele que eu sempre fui uma pessoa medíocre. Eu queria um personagem medíocre, sabe? Ele me disse que tinha uma história excelente sobre a pessoa mais medíocre que ele já conheceu.
– No caso, eu.
– Eu não sabia que ele escreveria exatamente a vida da pessoa. Nem que usaria o nome da pessoa. Achei que ele só ia se inspirar.
– Não tem problema. Não acho que o senhor tenha culpa. Mas eu gostaria de encontrar este ghost writer. Quem é ele?
– Eu não sei o nome... Que bobagem a minha. Como não saber o nome do homem que me deu a imortalidade? É um sujeito baixinho, deve ter a sua idade. Eu só o conheço por um apelido. O chamam de Giovana, por causa dos livros para meninas.
– E onde posso encontrá-lo?
– Ele frequenta um bar da lapa. Foi lá que eu o conheci. Muitos escritores vão lá, sempre durante a semana. Nos finais de semana, quando a molecada domina o lugar não é tão bom, não dá para conversar. Lá eles vão te dizer quem é. É só procurar o Giovana. Agora, se você me der licença, eu preciso esvaziar meu saco – disse o velho apontando para as fezes no saquinho.

Bruno se despediu. Ficou com pena do velho. Pena e um pouco de nojo. Quando já estava na rua, viu que o velho estava na janela, esperando que ele passasse.

– Ele me tornou imortal – o velho gritava da janela – e a você também. Em vez de ficar com raiva dele, aproveita esta pequena imortalidade. Quem sabe você não se torna menos medíocre?

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