terça-feira, 5 de agosto de 2008

Biografia


Faltava o final, lhe disse seu editor. O escritor decidira redigir sua biografia por acreditar que já estava muito perto da morte. Beirando os oitenta anos, muito do que se passara com ele, já não tinha mais testemunhas, a não ser o próprio escritor. Foi para sua casa de praia e durante dois meses contou toda a sua vida: a infância difícil, as brigas com os pais, a fuga de casa, o aprendizado com velhos professores, namoros, o casamento, consagração na carreira, abandono dos filhos, velhice. Era um calhamaço de mais de setecentas páginas, mas que não tinha fim, de acordo com o editor.

“Não me leve a mal, meu caro, mas da metade em diante o livro é totalmente morto. O último clímax é o seu casamento, e isso aconteceu na página quatrocentos e quatorze. Nem a morte de sua esposa foi um evento memorável. Não é possível que você não teve nenhum caso, uma experiência religiosa que mudou sua vida ou foi roubado pelo antigo empresário”, reclamou o editor. A verdade é que, muito caseiro, a vida do escritor nos últimos anos se resumia a ler, comer e dormir.

Determinado a dar um desfecho glorioso à sua obra então recusada, o escritor estava disposto a dar cabo da própria vida. Foi à farmácia, comprou alguns comprimidos de tarja preta com receita falsificada e sentou à máquina de escrever. Lá, descreveu como tomou cada uma das pílulas, como rolou pelo chão em agonia, como viu sua vida passar diante dos olhos e como só foi encontrado quase uma semana depois pela arrumadeira. Ao colocar o ponto final no texto, tomou seus comprimidos e apagou. Acordou algumas horas mais tarde no hospital com uma úlcera.

Ao retornar para casa, tentou bolar um meio mais eficiente de morrer, afinal não poderia correr o risco de piorar sua condição gástrica no caso de novo fracasso. Tentou enforcar-se, mas a corda rompeu. Pensou em um acidente de carro, mas não sabia dirigir. Cogitou um tiro na cabeça, mas tinha horror a armas de fogo. Tentou cortar os pulsos, mas desmaiou ao ver a primeira gota de sangue. Contratou um assassino de aluguel, mas este acabou preso antes de executar o serviço. Ao final de cada tentativa, as páginas recém escritas com o final apoteótico e a vida lhe passando diante dos olhos antes da derradeira escuridão eram devidamente descartadas.

Sem solução para o fim do livro, desistiu. Naquela mesma noite, deitou-se para dormir e acordou apenas para dar seu último suspiro, por volta das cinco da manhã. O corpo foi encontrado pela arrumadeira. O livro, sem conclusão, jamais foi publicado. E o pior: o escritor jamais viu sua vida passar diante de seus olhos.

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