quarta-feira, 3 de setembro de 2008

Terça-feira


Havia algo de novo, mesmo que todo ano fosse igual. Aquela menina eu não conhecia, ou conhecia?, era difícil dizer. Ela se protegia com uma máscara branca sobre a face, mas lá estavam seus olhos verdes me espiando de longe. Por mais que eu tentasse manter a concentração, aquela moça não deixava. Se aproximava e se afastava e voltava a se aproximar. Fiquei completamente hipnotizado com seus quadris, mas nada fiz senão olhar. E ela devagar - a cadência era perfeita, pode acreditar - me chamou para um canto e fez que não era com ela quando eu fui atrás. A verdade é que por aquele par de olhos, que escapavam do rosto alvo imóvel, eu andaria toda uma avenida.

- Qual o seu nome?, gritei no meio do mar de gente e das ondas de som do salão.
- Para quê?, rebateu.
- Seu nome... Eu quero saber.
- Hoje não é dia para isso.

Era verdade. Um ano tem cerca de cinqüenta e duas terças-feiras, mas em uma o mundo era outro. E nem estou falado do mundo todo, só de um pedacinho perdido ao lado da Guanabara. Estava na hora de evoluir, mesmo se ela não quisesse. Fui me chegando e quando a minha mão estava quase nas mãos dela, fez-se uma chuva colorida que me cegou por um instante. E lá estava ela de volta ao meio do salão.

Minha deixa... Dois para lá, dois para cá, me dá chupeta, mas que calor. Ainda que tímido, cheguei tão perto que já dava para sentir o perfume exalando de seu pescoço. Havia um bom punhado de purpurina, que lhe brilhavam a pele macia que eu pude sentir quando me aproximei e deixei meu corpo levemente tocar o dela. Marchamos um bocado, coxas nas coxas, mas ela nem me olhava. Pelos olhos apertados, eu vi que ela ria e ria de mim.

- Eu te conheço?, indaguei.
- Essa não é a questão!
- E qual é?, deixei escapar trêmulo e curioso.
- Se você quer me conhecer…

Ah, ela sabia bem qual era a resposta, nem perdi meu tempo montando uma sentença. O problema estava bem diante de mim, me separando dela. Uma fina camada de plástico que nos afastava de todas as formas possíveis.

Ela mexia e descia e requebrava, enquanto seus cabelos dourados voavam pelo salão tal serpentina. Era preciso força, botar o bloco na rua. Me vesti de uma persona que não era eu, agarrei seu braço e lá foi a máscara embora. Ela tinha um narizinho perfeito, maças rosadas e covinhas nas bochechas. Os lábios eram únicos, o inferior carnudo, o superior mais fino. E vermelhos, muito vermelhos.

Quando a máscara voou, ela levou um susto. Ficamos assim, sérios, parados no meio da correnteza de tanta gente. Eu admirando, ela sendo admirada. Foi quando ela percebeu que eu não tinha palavras. Apenas sorriu e se virou e eu sempre atrás dela, não importa para onde.

Na perseguição que ela tanto gostava, acabei ficando para trás, quando um trenzinho de mais de vinte vagões ficou no caminho de minha caçada. A harmonia desandou e eu fiquei claramente nervoso. Tentava vencer a folia, transcender a barreira que se construía cada vez mais forte à minha frente. Quando olhei para o lado, lá longe, reparei que o trem ganhava vagões e mais vagões. E eu ainda inerte, esperando minha vez de passar.

Ela era o destaque, não tenha dúvidas. Com os pés no chão (tinha uma belíssima tornozeleira, tive tempo de notar) ela chamava atenção, e não só a minha. Lá de longe, um gatuno, um pirata, apareceu para saqueá-la. Tentei correr para o resgate, mas de nada adiantou. Ela estava muito distante, inalcançável.
- Pare!, gritei, mas a cabeleira do Zezé abafou meu apelo.

Pensei que ela seria forte, que lutaria por mim, mas a quem eu estava enganando, apenas um bobo cortejando uma princesa. O perverso me olhou com um olho só e deu uma gargalhada, antes de desferir seu golpe mortal. Mas quanto iria tentar enganchá-la, lá estava ela, de volta à dança frenética e ao rebolado fulminante.

Seus passos - as solas dos pés pretas, mas ainda assim lindas - a trouxeram de volta para mim. Ainda fazia seu charme, olhando para lugar nenhum, fingindo que apenas a bateria a empolgava, mas foi só o vilão chegar para que ela chegasse mais perto de mim e se deixasse perder em um gostoso abraço.

Confesso que passei longos minutos torcendo para que o nefasto desaparecesse, mas agora, com a dama acolhida em meus braços, achava até bom que ele continuasse ali. Ficamos um minutinho fitando o outro, quase sassaricando e nos entregamos a um beijo suado.

Aquela menina… Vou te dizer, aquilo sim era beijo. Em quesito de calor, ela tinha nota dez. Não sei quanto tempo durou. Trinta segundos. Uma eternidade, talvez. Mas logo depois veio outro. E mais outro. E um que valia por dez. Era a apoteose, e foi quando eu perguntei:

- Por que não me diz o seu nome afinal? Me diga quem é você!
- Nomes… Deixe os nomes para amanhã. Me chame de Colombina, eu sou a porta-estandarte, sou a passista, a mulata. Eu sou só uma alegoria, ela disse, só uma fantasia.

E foi perfeito, até que tudo virou cinzas.

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