segunda-feira, 8 de setembro de 2008

No escritório

Sentado em sua mesa, o chefe a observava. A secretária arrumava a sua mesa cheia de quinquilharias. Cantarolava alguma coisa enquanto levantava os bibelôs para tirar a poeira da mesa. Arrumava o porta-lápis, alinhava o mata borrão e rasgava os papéis velhos como quem assiste a um filme de classificação livre. O sorriso nos lábios, o brilho no olhar, a alegria em fazer as coisas. Todos os dias, alguns minutos antes do almoço, a secretaria começava seu ritual.

De rituais, a mulher estava cheia. Começava na hora em que chegava. Entrava calmamente na repartição, colocava a bolsa sobre a cadeira, cumprimentava a todos os presentes e colocava um pedaço de bolo na mesa do chefe. Só então ia bater o cartão. De volta à mesa, ela se sentava, colocava meticulosamente a bolsa sobre um tapetinho debaixo da mesa, levantava um pouco a cadeira, depois a abaixava, tendo a certeza de que estava no mesmo lugar. Da bolsa, ela tirava um estojo com mais de uma dúzia de canetas. Todas — cada uma de uma cor — eram alinhadas sobre a mesa. A secretária escolhia qual iria usar no dia e depositava as demais no porta-lápis. Estalava os dedos e recostava-se, sempre com aquela cara de quem está prestes a assobiar.

O segundo ritual era quando o chefe chegava. O homem, muito ocupado e, geralmente, mal humorado, ia direto para a sala. Não passava mais de um minuto e a secretária chegava sorrindo, perguntando se ele havia gostado do bolo. Não houve uma só vez em que ele já tivesse provado o quitute quando a mulher entrou. A secretária dava seqüência à ladainha perguntando pela esposa do patrão, pelas duas filhas e pelo cachorro, que ela adorava, porque tinha o mesmo nome que seu marido. Cantarolando, ela pegava o casaco e o chapéu do chefe e colocava na arara. Voltava para a mesa com a mesma cara satisfeita que tinha chegado.

Assim que o trabalho começava, vinha o novo ritual. A secretária pegava todas as pastas e arquivos que ia usar no dia e dispunha todos em sua mesa, numa pilha. Depois, alinhava-os à esquerda. Com uma régua, afastava seus títulos em cinco centímetros, para que soubesse onde cada pasta estava. Tirava um pequeno bloco da bolsa, onde fazia as pequenas anotações, sempre muito rabiscadas. Passado algum tempo, ele tirava um caderno azul da gaveta, que tinha um desenho na capa feito pelo filho mais novo. A secretária passava tudo a limpo com o máximo capricho possível, fazendo pequenas anotações de rodapé. Só então, o trabalho ia para o computador. Quando estava lendo qualquer coisa, a mulher batia com a tampa da caneta na mesa. De dentro da sala, o chefe não conseguia fazer mais nada.

Dez e trinta era a hora de ir ao banheiro. Não era por volta de dez e trinta, mas na hora exata. O organismo da secretária funcionava como um relógio, tão sistemático quanto ela mesma. Ela se levantava, colocava a cadeira de volta no lugar, ajeitava as sandálias nos pés e saía. Na volta, puxava a cadeira, batia com a mão no acento e acomodava-se. Da gaveta, ela tirava uma loção, que esfregava nas mãos por alguns minutos. Quando terminava, dava uma olhadinha para trás, para a sala do chefe, para garantir que estava tudo em ordem.

Durante o dia, a secretária fazia três ligações. A primeira era de manhã bem cedo, um pouco depois de chegar. Ela acordava os filhos, lembrava que estava quase na hora de ir para o colégio e que eles deveriam escovar os dentes e tomar banho. Antes do almoço, ela ligava pra o marido, certificando-se que ele comeria algo saudável, que não atacasse sua úlcera. Antes de ir embora, ela fazia a última ligação, interurbana, para a mãe que morava no interior, avisando que estava saindo do trabalho e que ligaria assim que chegasse em casa para por a conversa em dia.

Na hora do almoço, a secretária era a única que não descia para o restaurante da empresa. Comia ali mesmo, sobre sua mesa, alegando que tinha muito trabalho e pouco tempo a perder. Tirava da bolsa uma toalha branca, bordada por ela quando estava grávida, e estendia sobre os arquivos e pastas. Tirava de uma sacola um prato de louça, talheres com cabo de madeira e duas embalagens plásticas. Da primeira, a secretária tirava a salada, sempre a mesma, com alface, cenoura, tomate e repolho. Jogava um pouquinho de sal e comia. Em seguida, abria a segunda embalagem, onde sempre estava uma panqueca de carne de soja moída, arroz integral e um ovo cozido. Quando terminava, guardava as embalagens, dobrava a toalha e seguia sorridente para a copa, onde lavava os talheres e o prato.

De sua sala, o chefe observava todas as manias da secretária, irritado com os sorrisos e a aparente felicidade, mas sem achar um erro sequer. A mulher trabalhava muito bem, era competente, incentivava outros funcionários e fazia bolos maravilhosos. Por mais que ele estudasse algo para reclamar, o único problema dela era estar sempre contente. O patrão inventava coisas loucas para a mulher fazer, mandava-a a outros andares a toa, dava serviço dos outros e a secretária simplesmente piscava o olho esquerdo e voltava ao trabalho. Nem o mais cáustico dos obstáculos impedia aquela mulher de sorrir. O carrancudo patrão começou a levar a questão para o lado pessoal. Resolveu que atrapalharia a todas as cerimônias diárias da secretária.

Seu primeiro ato foi retirar o telefone da mesa da mulher. Quando um colega ofereceu seu celular para que ela acordasse os filhos, a mulher respondeu: "não precisa, obrigado, eles já estão bem crescidinhos, já podem se levantar sozinhos", e riu satisfeita e orgulhosa. Depois do almoço, a secretária passou a escrever cartas para a mãe, incapaz de ligar para dar um alô. Em vez de se abalar, ela apenas mudou suas manias. Ainda insatisfeito, ele proibiu que os funcionários comessem no escritório. Ou desceriam para almoçar, ou seriam obrigados a jejuar. A secretária não desceu. Ficou lá em cima, trabalhando no tempo vago. Se não fosse suficiente, ela ainda se orgulhava da nova silhueta, alguns quilos mais leve, resultado dos dias sem almoço. A secretária cantarolava sorridente. A questão foi ficando mais séria e o chefe decidiu desafiar o organismo da mulher. Determinou que todos os dias, por volta das dez e vinte, ela deveria organizar os arquivos de sua sala. O trabalho durava, pelo menos, meia hora, o que impedia que a secretária fosse ao banheiro na hora de costume. Sem se abalar, ela habituou-se à falta de horário para suas necessidades.

Sem se dar conta da guerra que travava com o patrão, a mulher foi vencendo todas as batalhas. Passo a passo ela demarcava seu espaço na empresa. Aos poucos, o chefe teve que recuar. Como medida desesperada, resolveu que a mandaria embora, pelo simples fato de não poder conviver com pessoa tão alegre. Passou o dia todo planejando o ato, o que diria, o que faria. Alguns minutos antes da saída, ele chamou a secretária em sua sala. Ela pediu um momento, arrumou sua mesa, ajeitou a cadeira e foi atendê-lo. No meio do caminho, deu uma topada na porta e deixou escapar um “putaqueopariu”. Entrou na sala séria, irritada com o susto e com a reação. "O que foi, senhor?", ela perguntou carrancuda. O patrão pôs as mãos atrás da cabeça e abriu um largo sorriso, quase uma gargalhada silenciosa. "Não foi nada", respondeu, "nada mesmo".

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