quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

O fim – As trombetas dos anjos (2 de 3)


A casa ficava em um ponto alto da cidade. Poucos vizinhos e muita vegetação. O velho hesitou antes de bater à porta da filha. Eles já não se viam há quinze anos. E não é como se antes disso a relação entre os dois fosse boa. Alberto abandonou a mulher pouco depois do casamento, quando Carla, a filha, ainda não tinha completado um ano. Arranjou outra mulher e caiu no mundo.

Durante a infância da menina, os dois se viam pelo menos uma vez por mês. Sem saber bem o que fazer com uma criança e sem qualquer intimidade com Carla, ele simplesmente a carregava para os lugares menos adequados. O favorito era o Jockey Club, onde ela ficava desenhando enquanto ele apostava nos cavalos.

Quando a garota já estava com cerca de vinte e cinco anos, ele recebeu uma ligação do antigo cunhado dizendo que a mãe de Carla havia morrido. Alberto correu para o cemitério e não saiu do lado da filha durante todo o dia. Foi o melhor pai possível, exatamente o que se esperava dele naquela situação. Quando se despediram, à noite, ele disse chorando que jamais deixaria a filha novamente, que sabia que era um pai ausente, mas que agora corrigiria isso. Foi a última vez que os dois se viram.

Quando Carla abriu a porta, depois da milésima vez que o pai bateu à porta, Alberto se espantou. Ela estava assustadoramente parecida com a mãe. A mulher estava de cara fechada, como se soubesse o tempo todo que era o pai quem batia e ainda assim estivesse evitando abrir a porta. Como se fosse um vendedor qualquer de tralhas, que se ignorado vai embora.

– O que você quer? – ela perguntou com a voz rouca. Não abriu a porta toda para deixar claro que Alberto não era bem-vindo. Mesmo assim, o velho se convidou para entrar. Carla fez que iria se opor, mas acabou cedendo.

A sala da casa era um pequeno resumo da vida de Carla. Os porta-retratos deixavam claro que ela não era casada e que não tinha filhos. Muitos bibelôs que pertenceram à mãe dela decoravam os muitos móveis que se espalhavam pelo cômodo. Na gaveta de cima da cômoda, longe dos olhos de Alberto, ela guardava todas as cartas que tinha recebido do pai, apenas pelo prazer de reler e aumentar o rancor que sentia pelo velho.

– O que você quer? – ela repetiu a pergunta, acreditando que enfim Alberto diria porque pegou um ônibus do Rio de Janeiro até Itatiaia com um cachorro como companhia.

– Você deve ter ouvido no rádio. O mundo está acabando. Temos menos de três dias até que tudo acabe. Já dá para ouvir as trombetas dos anjos. Achei que valia a pena passar este pouco tempo com você.

– Por que você achou que seria boa ideia arruinar as últimas horas da minha vida? Por que vir me atormentar? Eu sei que você se julga religioso. Se você acha que se reconciliar comigo será um passaporte para o paraíso pode tratar de fazer uma malinha com roupas de verão, porque você vai direto para o inferno.

A ausência do pai realmente foi um grande trauma para Carla. Abandonada nos primeiros meses de vida, ela sempre se sentiu rejeitada. Passou a vida com grandes dificuldades de se relacionar com outras pessoas. Um medo constante de ser abandonada novamente. Teve poucos namorados e se casou tarde, já com trinta e cinco anos, mas viu seu casamento desabar quando se recusou a ter filhos. Temia que o marido a abandonasse e que seus filhos passassem por tudo o que ela tinha sofrido. Além disso, a memória da mãe deprimida sempre alimentava seu ressentimento.

O velho queria jogar conversa fora, para de pouco em pouco se reaproximar da filha. Ele, contudo, não sabia a profissão dela, seus talentos ou informações de sua vida pessoal. Então ficou ali, pensando em uma boa maneira de pedir desculpa por tudo o que tinha feito. Ou não feito.

A filha, para evitar qualquer conversa, levantou-se sob o pretexto de fazer café e ligou o rádio. Quem sabe, com o pai distraído com alguma coisa, o tempo passasse mais rápido e o meteoro caísse logo na Terra. Como ela queria que o meteoro chegasse logo...

As estações de rádio e os canais de televisão praticamente tinham encerrado sua programação habitual. As equipes de jornalismos trabalhavam praticamente o tempo todo para levar alguma novidade. Conversavam com autoridades e especialistas, alguém que pudesse dar mais luz sobre a catástrofe que estava por vir. Um desses homens estava no ar no momento. Um professor qualquer de uma universidade qualquer.

“A verdade é que não podemos determinar se a chegada do meteoro realmente vai marcar o fim do mundo”, dizia o professor ao repórter. “Se considerarmos que é um meteoro semelhante ao que dizimou os dinossauros, ele não fará o planeta explodir. Ele apenas mudaria algumas condições atmosféricas, dificultando a perpetuação da vida de algumas espécies, mas não todas. Temos que ter esperança e acreditar que a raça humana vai seguir adiante. Minha recomendação é que as pessoas evitem regiões costeiras e se abriguem em áreas mais altas. Supondo que o meteoro caia no oceano, é provável que um grande tsunami seja formado. As demais consequências, só o tempo nos dirá, mas garanto que o mundo continuará inteiro daqui a três dias.”

Uma excitação tomou conta de Alberto. Ele saltou da poltrona para procurar a filha, com Hugo logo atrás dele. Carla tinha ouvido o professor falando no rádio, mas não deu muita atenção. O velho parecia um novo homem, tomado de profunda esperança.

– É isso, filha. Não vamos morrer. Estamos em uma das cidades mais altas do estado, distantes da costa. Se você tiver comida suficiente armazenada, podemos ficar aqui por um bom tempo. Teremos tempo de nos conhecer melhor e eu poderei ser o pai que você merece. Eu estou aqui para te proteger, Carla.

A filha confirmou que tinha um pequeno estoque de comida, algo que pudesse alimentar os dois por algumas semanas, mesmo se ficassem sem gás e sem energia elétrica. Talvez fosse o suficiente até que todos pudessem retomar suas rotinas.

No dia seguinte, eles realmente estavam mais próximos. Carla tinha aberto o coração em relação às frustrações que tinha e Alberto tinha tentado justificar parte de suas ações. Não estavam bem, mas estavam caminhando. Se o mundo realmente não acabasse, tudo indicava que eles poderiam ser uma família feliz.

O único que estava impaciente era Hugo. O cachorro gostava da casa, bem maior do que o apartamento do velho na Tijuca, mas parecia que Alberto simplesmente havia esquecido que o animal precisava passear para se aliviar. Para chamar a atenção do dono, Hugo pegou a coleira com a boca e levou para o colo de Alberto. O velho captou imediatamente a mensagem.

Com o cachorro saltitante, como sempre que vestia a coleira, Alberto abriu a porta para levar Hugo para um passeio em volta da casa. Do lado de fora, porém, cinco pessoas esperavam que alguém aparecesse.

– Senhor, eu só vou dizer uma vez – o homem tinha um tom ameaçador. A espingarda em sua mão ajudava a agravar este tom. Além dele, havia outro homem, um pouco mais novo, uma mulher e dois adolescentes. – Eu e minha família viemos de muito longe procurando um lugar para nos escondermos. Não queremos ficar nas ruas para morrer. Queremos uma casa bonita como essa em um lugar alto como esse. Por isso, o senhor vai voltar para dentro de casa e chamar qualquer pessoa que more com você – o homem apontou a espingarda para o rosto de Alberto. – Vocês vão embora daqui ou eu vou enterrá-los no quintal.

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