A casa ficava em um ponto alto da cidade. Poucos vizinhos e muita vegetação. O velho hesitou antes de bater à porta da filha. Eles já não se viam há quinze anos. E não é como se antes disso a relação entre os dois fosse boa. Alberto abandonou a mulher pouco depois do casamento, quando Carla, a filha, ainda não tinha completado um ano. Arranjou outra mulher e caiu no mundo.
Durante a infância da menina, os dois se viam pelo menos uma
vez por mês. Sem saber bem o que fazer com uma criança e sem qualquer
intimidade com Carla, ele simplesmente a carregava para os lugares menos
adequados. O favorito era o Jockey Club, onde ela ficava desenhando enquanto
ele apostava nos cavalos.
Quando a garota já estava com cerca de vinte e cinco anos,
ele recebeu uma ligação do antigo cunhado dizendo que a mãe de Carla havia
morrido. Alberto correu para o cemitério e não saiu do lado da filha durante
todo o dia. Foi o melhor pai possível, exatamente o que se esperava dele
naquela situação. Quando se despediram, à noite, ele disse chorando que jamais
deixaria a filha novamente, que sabia que era um pai ausente, mas que agora
corrigiria isso. Foi a última vez que os dois se viram.
Quando Carla abriu a porta, depois da milésima vez que o pai
bateu à porta, Alberto se espantou. Ela estava assustadoramente parecida com a
mãe. A mulher estava de cara fechada, como se soubesse o tempo todo que era o
pai quem batia e ainda assim estivesse evitando abrir a porta. Como se fosse um
vendedor qualquer de tralhas, que se ignorado vai embora.
– O que você quer? – ela perguntou com a voz rouca. Não
abriu a porta toda para deixar claro que Alberto não era bem-vindo. Mesmo
assim, o velho se convidou para entrar. Carla fez que iria se opor, mas acabou
cedendo.
A sala da casa era um pequeno resumo da vida de Carla. Os
porta-retratos deixavam claro que ela não era casada e que não tinha filhos.
Muitos bibelôs que pertenceram à mãe dela decoravam os muitos móveis que se
espalhavam pelo cômodo. Na gaveta de cima da cômoda, longe dos olhos de Alberto,
ela guardava todas as cartas que tinha recebido do pai, apenas pelo prazer de
reler e aumentar o rancor que sentia pelo velho.
– O que você quer? – ela repetiu a pergunta, acreditando que
enfim Alberto diria porque pegou um ônibus do Rio de Janeiro até Itatiaia com
um cachorro como companhia.
– Você deve ter ouvido no rádio. O mundo está acabando.
Temos menos de três dias até que tudo acabe. Já dá para ouvir as trombetas dos
anjos. Achei que valia a pena passar este pouco tempo com você.
– Por que você achou que seria boa ideia arruinar as últimas
horas da minha vida? Por que vir me atormentar? Eu sei que você se julga
religioso. Se você acha que se reconciliar comigo será um passaporte para o
paraíso pode tratar de fazer uma malinha com roupas de verão, porque você vai
direto para o inferno.
A ausência do pai realmente foi um grande trauma para Carla.
Abandonada nos primeiros meses de vida, ela sempre se sentiu rejeitada. Passou
a vida com grandes dificuldades de se relacionar com outras pessoas. Um medo
constante de ser abandonada novamente. Teve poucos namorados e se casou tarde,
já com trinta e cinco anos, mas viu seu casamento desabar quando se recusou a
ter filhos. Temia que o marido a abandonasse e que seus filhos passassem por
tudo o que ela tinha sofrido. Além disso, a memória da mãe deprimida sempre
alimentava seu ressentimento.
O velho queria jogar conversa fora, para de pouco em pouco
se reaproximar da filha. Ele, contudo, não sabia a profissão dela, seus talentos ou informações de sua vida pessoal. Então ficou ali, pensando em uma boa
maneira de pedir desculpa por tudo o que tinha feito. Ou não feito.
A filha, para evitar qualquer conversa, levantou-se sob o
pretexto de fazer café e ligou o rádio. Quem sabe, com o pai distraído com
alguma coisa, o tempo passasse mais rápido e o meteoro caísse logo na Terra.
Como ela queria que o meteoro chegasse logo...
As estações de rádio e os canais de televisão praticamente tinham
encerrado sua programação habitual. As equipes de jornalismos trabalhavam
praticamente o tempo todo para levar alguma novidade. Conversavam com
autoridades e especialistas, alguém que pudesse dar mais luz sobre a catástrofe
que estava por vir. Um desses homens estava no ar no momento. Um professor
qualquer de uma universidade qualquer.
“A verdade é que não podemos determinar se a chegada do
meteoro realmente vai marcar o fim do mundo”, dizia o professor ao repórter. “Se
considerarmos que é um meteoro semelhante ao que dizimou os dinossauros, ele
não fará o planeta explodir. Ele apenas mudaria algumas condições atmosféricas,
dificultando a perpetuação da vida de algumas espécies, mas não todas. Temos
que ter esperança e acreditar que a raça humana vai seguir adiante. Minha
recomendação é que as pessoas evitem regiões costeiras e se abriguem em áreas
mais altas. Supondo que o meteoro caia no oceano, é provável que um grande
tsunami seja formado. As demais consequências, só o tempo nos dirá, mas garanto
que o mundo continuará inteiro daqui a três dias.”
Uma excitação tomou conta de Alberto. Ele saltou da poltrona
para procurar a filha, com Hugo logo atrás dele. Carla tinha ouvido o professor
falando no rádio, mas não deu muita atenção. O velho parecia um novo homem,
tomado de profunda esperança.
– É isso, filha. Não vamos morrer. Estamos em uma das
cidades mais altas do estado, distantes da costa. Se você tiver comida
suficiente armazenada, podemos ficar aqui por um bom tempo. Teremos tempo de
nos conhecer melhor e eu poderei ser o pai que você merece. Eu estou aqui para
te proteger, Carla.
A filha confirmou que tinha um pequeno estoque de comida,
algo que pudesse alimentar os dois por algumas semanas, mesmo se ficassem sem
gás e sem energia elétrica. Talvez fosse o suficiente até que todos pudessem retomar
suas rotinas.
No dia seguinte, eles realmente estavam mais próximos. Carla
tinha aberto o coração em relação às frustrações que tinha e Alberto tinha
tentado justificar parte de suas ações. Não estavam bem, mas estavam
caminhando. Se o mundo realmente não acabasse, tudo indicava que eles poderiam
ser uma família feliz.
O único que estava impaciente era Hugo. O cachorro gostava
da casa, bem maior do que o apartamento do velho na Tijuca, mas parecia que
Alberto simplesmente havia esquecido que o animal precisava passear para se
aliviar. Para chamar a atenção do dono, Hugo pegou a coleira com a boca e levou
para o colo de Alberto. O velho captou imediatamente a mensagem.
Com o cachorro saltitante, como sempre que vestia a coleira,
Alberto abriu a porta para levar Hugo para um passeio em volta da casa. Do lado
de fora, porém, cinco pessoas esperavam que alguém aparecesse.
– Senhor, eu só vou dizer uma vez – o homem tinha um tom
ameaçador. A espingarda em sua mão ajudava a agravar este tom. Além dele, havia
outro homem, um pouco mais novo, uma mulher e dois adolescentes. – Eu e minha
família viemos de muito longe procurando um lugar para nos escondermos. Não
queremos ficar nas ruas para morrer. Queremos uma casa bonita como essa em um
lugar alto como esse. Por isso, o senhor vai voltar para dentro de casa e
chamar qualquer pessoa que more com você – o homem apontou a espingarda para o
rosto de Alberto. – Vocês vão embora daqui ou eu vou enterrá-los no quintal.
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