Era difícil conciliar os dois
empregos. Há vinte anos, quando tudo começou, parecia que seria tranquilo, mas
tudo foi piorando com o tempo. A vida de José Maurício, mais conhecido como
Homem-Maravilha, ficava mais complicada a cada dia e ele sabia de quem era a
culpa.
Morador de uma cidadezinha do
interior de Minas Gerais, José Maurício sempre foi respeitado por onde passava.
Seu pai, durante muitos anos, fora o único médico de toda a região. Quer no
colégio, na igreja ou na pracinha, todos tratavam o rapaz da melhor forma
possível, pois eram extremamente gratos ao trabalho do doutor Carlos Alberto,
seu pai.
Desde a mais tenra idade, José
Maurício sempre quis ser médico, seguindo os caminhos do pai. O que ele nunca
soube era se aquele desejo era natural, surgido da admiração que sentia por
Carlos Alberto, ou se foi uma pequena lavagem cerebral feita dentro da própria
casa.
Tudo parecia se encaminhar para o
óbvio, até que o Grande Circo Fantástico das Maravilhas chegou à cidade.
Naquela época, aos 15 anos, José Maurício já não tinha mais idade para se
empolgar com a chegada do circo, mas pela profunda falta do que fazer acabou
indo ao espetáculo da primeira noite.
Durante uma hora e vinte minutos
ele assistiu a apresentação. Deu algumas risadas com o palhaço, se impressionou
um pouco com os malabaristas, arregalou os olhos com o mágico e sua assistente
e deu um leve bocejo durante a apresentação dos tigres amestrados. Mas foi com
os saltos dos trapezistas que sua vida mudou.
Jana, a Dama dos Ares, e Ruy, o
Príncipe do Trapézio, faziam o último show da noite no Grande Circo Fantástico
das Maravilhas. Eles balançavam de um lado para o outro e se jogavam para a
morte certa, apenas para logo em seguida serem salvos pela mão do companheiro.
Faziam piruetas que encantavam a todos os presentes. E o coração de José
Maurício parava e voltava a bater a cada novo movimento.
Na hora de voltar para casa,
dispensou a companhia dos amigos. Ficou vagando em torno do circo até que a última
pessoa fosse embora. Com as luzes já apagadas, ele adentrou à lona maior,
caminhou no picadeiro e ficou sentado na arquibancada admirando os trapézios
que pendulavam sozinhos.
Em casa, encarou o pai e disse
que não queria mais ser médico. Aquela não era sua vocação. Preferia ser
artista, queria se juntar ao circo. Levou uma surra de cinto de couro que
deixou marcas por duas semanas em suas costas. Quando as marcas sumiram, ele já
não estava mais na cidade. Foi até um município vizinho onde agora o circo se
apresentava.
Três anos mais tarde, durante uma
curta estadia em Belo Horizonte, José Maurício, o Homem-Maravilha, ouvia o
público gritar seu nome enquanto saltava de um lado para o outro sobre os
espectadores. Via os rostos passando em alta velocidade à sua frente, mas
conseguia identificar os sorrisos e as unhas sendo roídas. Estava realizado.
Naquela noite, contudo, seu
destino daria uma nova guinada. Ao entrar em seu trailer, encontrou o pai o
esperando. O doutor Carlos Alberto parecia pelo menos dez anos mais velho, com
os bigodes muito brancos e os cabelos despenteados. Com a força que ainda
tinha, carregou o rapaz de volta pro interior, de volta no tempo para quando
não tinha a liberdade dos trapézios.
Na casa onde cresceu, José
Maurício foi infeliz. Queria voltar para o circo, mas o pai fazia questão que
ele terminasse os estudos e fosse para a faculdade se tornar também um doutor.
As palavras do pai entravam por um ouvido e saíam pelo outro, até que uma frase
o fez refletir. “Meu filho”, disse Carlos Alberto, “essa cidade precisa de
você. Eu estou ficando velho e em breve eles não terão mais quem possa tomar
conta da saúde de tantas crianças e tantos idosos. Siga meus passos e proteja
essa cidade que sempre te amou.”
José Maurício deixou o
Homem-Maravilha de lado por algum tempo e foi para São Paulo estudar. Voltou
para Minas alguns anos depois, já vestido de jaleco branco. Mas à noite, quando
o céu escurecia, o jovem médico ficava na janela, lembrando como era voar.
Um dia, já casado e com filhos,
uma fila enorme de pacientes para atender, o médico foi obrigado a abandonar o
hospital. Seu pai, muito debilitado, havia morrido em casa. Ele enterrou o
velho, arrumou as malas e foi atrás do circo outra vez. Mas, nesse momento, a
vida de trapezista já não era tudo. Foi então que optou pela jornada dupla.
Todas as manhãs, José Maurício se
despedia da mulher, deixava os filhos no colégio, trabalhava até o meio da
tarde, quando então pegava seu carro, dirigia até uma das cidades vizinhas e se
apresentava com o Grande Circo Fantástico das Maravilhas. Tinha o pé no chão
durante o dia e voava à noite.
Os filhos achavam graça dos dois
empregos do pai, mas o admiravam. No começo, parecia que tudo seria fácil, mas
as coisas se complicaram. Nem médico nem artista circense podem se dar ao luxo
de descansar nos finais de semana e enquanto um trabalho exigia estudo
constante o outro demandava exercícios físicos. Os anos se passavam e José
Maurício só via sua rotina se endurecer. Era preciso parar.
No dia de sua aposentadoria do
picadeiro, a apresentação foi em sua cidade natal. Todo o povo estava lá para
ver o último voo do filho do doutor Carlos Alberto. E o Homem-Maravilha estava
especialmente maravilhoso naquela noite. Saltou mais alto do que nunca, brincou
com os trapézios no ar, sentiu o vento roçando em seu rosto e deu um salto
mortal que deixou a todos sem fôlego.
No último momento da
apresentação, a emoção falou mais forte e a técnica acabou ficando em segundo
plano. Num giro, a mão de José Maurício escorregou e ele caiu. Como sempre se
apresentou sem as redes, acabou se chocando contra o chão, Um barulho seco foi
ouvido por todos quando a cabeça do trapezista quicou no chão. Sua mulher
gritava e seus filhos não sabiam o que fazer. Ainda tentaram levá-lo para o
hospital, mas não havia médico naquela noite. O único da cidade fazia sua
despedida do Grande Circo Fantástico das Maravilhas.
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