quinta-feira, 4 de outubro de 2012

O Homem-Maravilha



Era difícil conciliar os dois empregos. Há vinte anos, quando tudo começou, parecia que seria tranquilo, mas tudo foi piorando com o tempo. A vida de José Maurício, mais conhecido como Homem-Maravilha, ficava mais complicada a cada dia e ele sabia de quem era a culpa.

Morador de uma cidadezinha do interior de Minas Gerais, José Maurício sempre foi respeitado por onde passava. Seu pai, durante muitos anos, fora o único médico de toda a região. Quer no colégio, na igreja ou na pracinha, todos tratavam o rapaz da melhor forma possível, pois eram extremamente gratos ao trabalho do doutor Carlos Alberto, seu pai.

Desde a mais tenra idade, José Maurício sempre quis ser médico, seguindo os caminhos do pai. O que ele nunca soube era se aquele desejo era natural, surgido da admiração que sentia por Carlos Alberto, ou se foi uma pequena lavagem cerebral feita dentro da própria casa.

Tudo parecia se encaminhar para o óbvio, até que o Grande Circo Fantástico das Maravilhas chegou à cidade. Naquela época, aos 15 anos, José Maurício já não tinha mais idade para se empolgar com a chegada do circo, mas pela profunda falta do que fazer acabou indo ao espetáculo da primeira noite.

Durante uma hora e vinte minutos ele assistiu a apresentação. Deu algumas risadas com o palhaço, se impressionou um pouco com os malabaristas, arregalou os olhos com o mágico e sua assistente e deu um leve bocejo durante a apresentação dos tigres amestrados. Mas foi com os saltos dos trapezistas que sua vida mudou.

Jana, a Dama dos Ares, e Ruy, o Príncipe do Trapézio, faziam o último show da noite no Grande Circo Fantástico das Maravilhas. Eles balançavam de um lado para o outro e se jogavam para a morte certa, apenas para logo em seguida serem salvos pela mão do companheiro. Faziam piruetas que encantavam a todos os presentes. E o coração de José Maurício parava e voltava a bater a cada novo movimento.

Na hora de voltar para casa, dispensou a companhia dos amigos. Ficou vagando em torno do circo até que a última pessoa fosse embora. Com as luzes já apagadas, ele adentrou à lona maior, caminhou no picadeiro e ficou sentado na arquibancada admirando os trapézios que pendulavam sozinhos.

Em casa, encarou o pai e disse que não queria mais ser médico. Aquela não era sua vocação. Preferia ser artista, queria se juntar ao circo. Levou uma surra de cinto de couro que deixou marcas por duas semanas em suas costas. Quando as marcas sumiram, ele já não estava mais na cidade. Foi até um município vizinho onde agora o circo se apresentava.

Três anos mais tarde, durante uma curta estadia em Belo Horizonte, José Maurício, o Homem-Maravilha, ouvia o público gritar seu nome enquanto saltava de um lado para o outro sobre os espectadores. Via os rostos passando em alta velocidade à sua frente, mas conseguia identificar os sorrisos e as unhas sendo roídas. Estava realizado.

Naquela noite, contudo, seu destino daria uma nova guinada. Ao entrar em seu trailer, encontrou o pai o esperando. O doutor Carlos Alberto parecia pelo menos dez anos mais velho, com os bigodes muito brancos e os cabelos despenteados. Com a força que ainda tinha, carregou o rapaz de volta pro interior, de volta no tempo para quando não tinha a liberdade dos trapézios.

Na casa onde cresceu, José Maurício foi infeliz. Queria voltar para o circo, mas o pai fazia questão que ele terminasse os estudos e fosse para a faculdade se tornar também um doutor. As palavras do pai entravam por um ouvido e saíam pelo outro, até que uma frase o fez refletir. “Meu filho”, disse Carlos Alberto, “essa cidade precisa de você. Eu estou ficando velho e em breve eles não terão mais quem possa tomar conta da saúde de tantas crianças e tantos idosos. Siga meus passos e proteja essa cidade que sempre te amou.”

José Maurício deixou o Homem-Maravilha de lado por algum tempo e foi para São Paulo estudar. Voltou para Minas alguns anos depois, já vestido de jaleco branco. Mas à noite, quando o céu escurecia, o jovem médico ficava na janela, lembrando como era voar.

Um dia, já casado e com filhos, uma fila enorme de pacientes para atender, o médico foi obrigado a abandonar o hospital. Seu pai, muito debilitado, havia morrido em casa. Ele enterrou o velho, arrumou as malas e foi atrás do circo outra vez. Mas, nesse momento, a vida de trapezista já não era tudo. Foi então que optou pela jornada dupla.

Todas as manhãs, José Maurício se despedia da mulher, deixava os filhos no colégio, trabalhava até o meio da tarde, quando então pegava seu carro, dirigia até uma das cidades vizinhas e se apresentava com o Grande Circo Fantástico das Maravilhas. Tinha o pé no chão durante o dia e voava à noite.

Os filhos achavam graça dos dois empregos do pai, mas o admiravam. No começo, parecia que tudo seria fácil, mas as coisas se complicaram. Nem médico nem artista circense podem se dar ao luxo de descansar nos finais de semana e enquanto um trabalho exigia estudo constante o outro demandava exercícios físicos. Os anos se passavam e José Maurício só via sua rotina se endurecer. Era preciso parar.

No dia de sua aposentadoria do picadeiro, a apresentação foi em sua cidade natal. Todo o povo estava lá para ver o último voo do filho do doutor Carlos Alberto. E o Homem-Maravilha estava especialmente maravilhoso naquela noite. Saltou mais alto do que nunca, brincou com os trapézios no ar, sentiu o vento roçando em seu rosto e deu um salto mortal que deixou a todos sem fôlego.

No último momento da apresentação, a emoção falou mais forte e a técnica acabou ficando em segundo plano. Num giro, a mão de José Maurício escorregou e ele caiu. Como sempre se apresentou sem as redes, acabou se chocando contra o chão, Um barulho seco foi ouvido por todos quando a cabeça do trapezista quicou no chão. Sua mulher gritava e seus filhos não sabiam o que fazer. Ainda tentaram levá-lo para o hospital, mas não havia médico naquela noite. O único da cidade fazia sua despedida do Grande Circo Fantástico das Maravilhas.

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