Enquanto aguardava na fila, Ricardo se lembrava do primeiro livro que havia lido de Manuel Holanda. Fora o divertido “Renée Tulip e os vasos chineses”, em uma edição de bolso já surrada pelo tempo. Na época, Ricardo não devia ter mais do que treze anos, mas se apaixonou pelas aventuras da detetive Tulip.
Depois disso, ele se tornou leitor voraz das obras de Manuel Holanda. Com avidez, acompanhou todos os casos de Renée Tulip, quer quando ela, em sua primeira aventura, desvendou o assassinato de seu pai, quer quando, em seu caso mais importante, ela foi convocada pelo secretário-geral da ONU para descobrir o paradeiro de um ex-ditador africano.
O problema é que desde a última aventura de sua detetive favorita houve um hiato de mais de dez anos. Nesse período, Manuel Holanda se converteu a uma seita apocalíptica e deixou a literatura de lado. Quando o fim do mundo, tão anunciado pelo reverendo que guiava sua crença, não se concretizou, o escritor reviu sua fé e deu uma banana para a seita. Se internou em um sítio da família nos pampas gaúchos e bateu à máquina as quatrocentas e vinte e sete páginas da nova aventura de Tulip.
O mercado editorial aguardou o resultado com temor. Ninguém sabia bem o que esperar da nova obra após o período de conversão, mas ao mesmo tempo as prateleiras necessitavam de um trabalho inédito de Holanda, um dos escritores mais traduzidos da história da língua portuguesa. Até que as vendas começassem, naquela quinta-feira em que Ricardo aguardava na fila, o grande público nada sabia do conteúdo do livro.
A aventura chamava-se “Renée Tulip e o pacto demoníaco”. A detetive descobre que seu nêmesis, Clark Karamasov, o assassino de seu pai, se juntou a um grupo de terroristas para destruir a humanidade. Renée se vê então obrigada a ir até o inferno e fazer um pacto com o demônio para evitar as mortes. No fim, o demônio ressurge para cobrar a alma da detetive, que é salva pelo sacrifício de John Bacon, seu ex-marido, de quem ela não sabia o paradeiro há quase uma década.
Enquanto aguardava na fila, muito longa dado o intervalo desde a última publicação e o contingente crescente de fãs no período, Ricardo teve tempo para ler três dos doze capítulos. Já estava até pensando em discutir um pouco da obra quando chegasse sua vez de pedir um autógrafo com dedicatória a Manuel Holanda.
Cansado, caminhando passo a passo na imensa fila que saía da Biblioteca Nacional e seguia pela Rio Branco, dobrava na Araújo Porto Alegre e novamente na Rua México, o grande fã da detetive Tulip se assustou quando uma gota caiu em uma das páginas do livro. E depois mais uma gota. e outra. até que se fez a chuva. De dentro da Biblioteca, um funcionário saiu com alguns pedaços de papel, senhas, que distribuiu para os primeiros da fila, garantindo sua entrada na noite de autógrafos. Ricardo não conseguiu pegar.
No metrô, frustrado, ele evitava mexer no livro úmido com medo de estragar as páginas. Foi para Ipanema e de lá para o Leblon, onde entrou em uma livraria que nunca fechava. Sentou-se no café, ao fundo, e lanchou. E continuou lendo a história do pacto demoníaco de Renée.
Lá pelas tantas, no começo da madrugada, um sujeito gordo, cabelos brancos e barba grossa, entrou na livraria. Tirou o chapéu e a capa de chuva e cumprimentou pelo nome os funcionários do estabelecimento. Era Manuel Holanda. O escritor. O verdadeiro pai de Renée. Vizinho da livraria e vizinho de Ricardo, ainda que ele nunca tivesse sabido disso.
Ricardo pagou a conta, colocou o livro debaixo do braço, e cautelosamente seguiu Manuel pela livraria. Queria saber o que o escritor lia, quais eram suas influências. Será que compraria algo de Arthur Conan Doyle? O fã suava com a proximidade do artista.
Manuel Holanda andou pelos corredores por quase meia hora. Nesse tempo, tirou das prateleiras um guia de viagem da Itália, um dicionário italiano-português, um livro sobre as obras de arte do Vaticano e uma caderneta pautada. Talvez estivesse planejando uma viagem a Roma. Ou, o mais provável, estaria pensando em enviar Renée Tulip para a Itália.
Após checar se ainda chovia, o autor pagou pelos produtos, colocou seu chapéu, agarrou a capa de chuva e partiu, com Ricardo sempre atrás dele. Agora, estava apenas curioso para saber onde Manuel morava, mas ainda pretendia pedir uma dedicatória em seu livro. Talvez algo como “Para Ricardo, o maior parceiro de Renée em todos estes anos, que esta aventura lhe incentive a recriar seu próprio mundo” ou “Para o amigo Ricardo, leitor voraz de minha obra, meus sinceros agradecimentos”.
Em uma esquina escura, Manuel Holanda apenas parou. Não havia carros passando, mas ele também não atravessava a rua. O escritor segurou sua sacola com força, ajeitou o chapéu na cabeça, enegrecendo os olhos, e virou-se para trás. “Por quanto tempo vai me seguir, garoto?”, a voz grave de Manuel ecoou pela rua vazia.
Sem graça e surpreso, Ricardo pediu desculpa. Se identificou como fã e começou a citar seus livros favoritos de Renée Tulip. “Eu sei o nome dos meus livros”, interrompeu o autor. “Me diga o que você quer ou pare de me seguir.”
A voz falhou, mas Ricardo puxou do sovaco o livro, já com a sobrecapa descascando pelo banho de algumas horas antes. “A noite de autógrafos já terminou, garoto”, esbravejou. “Por favor, senhor. Eu fiquei horas na fila da Biblioteca Nacional. Peguei chuva e quase estraguei o livro. A sua obra é muito importante para mim”, disse Ricardo.
Impaciente, Manuel pegou o livro, rabiscou algumas palavras na página três e jogou o exemplar de volta para Ricardo. Com um largo sorriso,o fã correu para ver o que estava escrito, mas se decepcionou com a dedicatória. “Odeio dar autógrafos?”, repetiu confuso enquanto lia. “Isso mesmo, garoto”, gritou um pouco de longe o escritor, “e pare de me seguir”.
As pernas pesavam, era difícil andar naquele momento. Arrasado, Ricardo nem sabia se queria continuar a ler as aventuras da detetive. Em casa, sentou-se com a roupa molhada na cama e automaticamente ligou a televisão. Uma matéria falava sobre o lançamento de “Renée Tulip e o pacto demoníaco”. Faltavam forças até para desligar o aparelho, então Ricardo assistiu.
Na matéria, muitos fãs comentavam o quanto adoravam Manuel Holanda e o quanto o escritor havia sido amável nos poucos segundo em que estiveram próximos. E três dos fãs mostraram juntos a dedicatória do autor: “Com carinho, Manuel Holanda”. Tão simples quanto simplório.
Ricardo deitou-se na cama com as pernas para fora. Num muxoxo, puxou o livro e começou a folheá-lo. “Pelo menos minha dedicatória foi original”, pensou.
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