O que mais incomodava Swift não era a solidão ou o tédio.
Era o regime de vinte e quatro horas. Não importava aos seus empregadores que
aquele planeta minúsculo em uma esquina qualquer do universo tinha uma rotação
de treze horas e meia; Swift era obrigado a fazer seus relatórios baseado nas
horas terrestres. E por isso mesmo, com o sol amarelo azulado bem acima de sua
cabeça, fazendo-o suar por baixo de seu traje, embaçando seu visor, ele era obrigado
a iniciar o relatório informando que eram quatro horas da madrugada. Ainda que
o relatório completo fosse resumido a “Milésimo nongentésimo terceiro dia de
espera, quatro horas da madrugada, continuo aguardando a chegada da nave de
carga Conquistadora de Midgard”, o que mais irritava Swift era registrar o
falso horário.
Enquanto pilotava seu veículo de exploração terrestre, o
encarregado-chefe Robert Swift observava a superfície do planeta, se despedindo
novamente, como fazia todos os dias, do local em que habitara por dezessete
anos terrestres e torcendo para que aquela fosse a última vez que se despedia.
Quando anunciaram que a Conquistadora de Midgard estava a caminho, há mil
novecentos e três dias, Swift fez suas malas e, para comemorar a partida daquele
planeta que aprendeu a apreciar, bebeu todos os destilados que ainda guardava
em sua cabine. Desde então, sem ter com o que se embriagar e racionando o que
ainda restava de comida, o homem esperava que a nave chegasse. Ou a morte. O
que viesse mais rápido.
O planeta Éris-4, chamado carinhosamente por seus habitantes
de Berço da Discórdia, era uma pequena maçaroca de lama que em nada lembrava a
superfície da Terra. Era possível atravessar o planeta por seu paralelo
principal em menos de quatro dias utilizando os veículos de exploração
disponíveis. Não há oceano, apesar de a água ser abundante logo abaixo de sua
crosta. Chove diariamente, mas a água é rapidamente absorvida pelo solo,
extremamente pastoso.
Até onde a vista alcançava da Central Bernard Silva de
Exploração e Refino, a paisagem era coberta por uma vegetação rasteira, que
todo dia desaparecia no horário das chuvas, mas que voltava a se erguer da lama
no dia seguinte. As plantas serviam de alimento para uns pequenos pássaros sem
penas, os únicos animais que podiam ser vistos a olho nu. E a carne destes
pássaros era extremamente letal aos seres humanos.
Diziam os bioarquitetos que chegaram a Éris-4 a bordo da
nave Serpente que o planeta já havia sido cheio de vida. Nada de vida
inteligente. A superfície do Berço da Discórdia era coberta de vegetação
exuberante e muitas eram as espécies de animais – pequenos pássaros, pequenos
roedores e pequenos anfíbios, principalmente – que se reproduziam sob o sol
amarelo azulado. Talvez nesta época o planeta não merecesse seu apelido.
Ninguém jamais ouvira falar de Éris-4 até cerca de dois
séculos terrestres. Foi nessa época que a nave Comodoro Valente se chocou
contra o planeta, ao voltar de uma missão diplomática. Boa parte da tripulação
morreu com a queda, mas alguns oficiais conseguiram enviar uma mensagem de
socorro. O resgate não chegou a tempo. Foram mais de trinta anos entre o
acidente e a aterrissagem da Serpente.
A Serpente não era exatamente uma nave de auxílio. Era um
monstro metálico com capacidade para transportar mais de cento e cinquenta
tripulantes, além de cargas e equipamentos. E a nave já chegou a Éris-4 com uma
missão: explorar o potencial econômico do pequeno planeta. Durante cinco anos,
as equipes da Serpente tentaram descobrir de que modo aquela bola lamacenta
poderia contribuir para o desenvolvimento da Terra e das Colônias Humanas.
Neomineradores, geólogos, bioarquitetos, estrategistas militares e operadores
logísticos percorreram cada quilômetro quadrado, sem enxergar muita serventia naquele
corpo celeste.
Pouco antes de a Serpente partir, uma explosão chamou a
atenção dos cientistas. Enquanto alguns neomineradores tentavam perfurar o solo
em um local que eles acreditavam ser rico em carvão, o mau funcionamento de um
dos equipamentos acabou matando parte da equipe. Para quem estava de longe,
parecia apenas fogo, mas quando os sobreviventes voltaram para a nave, seus
trajes estavam coberto por um líquido viscoso de um verde muito escuro. Era um
combustível fóssil.
Apesar de o petróleo da Terra ter sido totalmente explorado
até o século vinte e três e os humanos terem desenvolvidos fontes alternativas
de energia, nenhuma jamais performou tão bem quanto os combustíveis fósseis.
Boa parte de todas as missões espaciais foram baseadas na busca por óleos e
minérios. Quando a notícia de que havia combustível fóssil em Éris-4 chegou à
Terra, a Fu Lu Shou, conglomerado interplanetário que operava a nave Comodoro
Valente, reivindicou a descoberta e posse do planeta. A batalha judicial entre
a Fu Lu Shou e a Luckywinds, dona da nave Serpente, antes parceiras e agora
rivais, levou Éris-4 a ser apelidada de Berço da Discórdia.
Quando finalmente a Fu Lu Shou garantiu sua posse sobre
Éris-4, muitas naves chegaram ao pequeno planeta. Em pouco tempo, foi construída
uma capital, toda de metal, que combinava edifícios administrativos, área para
armazenamento e refino do óleo verde e espaço para convivência. O complexo foi
batizado de Central Bernard Silva de Exploração e Refino, em homenagem ao
piloto da Comodoro Valente. Nas décadas seguintes foram erguidas plantas de
exploração, que alimentavam a capital com o óleo, que após ser processado era
mandado para a Terra e para as Colônias Humanas por meio das naves-tanques.
Swift chegou a Éris-4 no auge da produção. A cada mês uma
nave-tanque partia do planeta levando o óleo e outra chegava trazendo comida e
suprimentos. O agora encarregado-chefe, na época, era da força policial. Em
dezessete anos terrestres ele cresceu organicamente na hierarquia da capital,
passando pelos importantes cargos de comandante de polícia e conselheiro do
encarregado-chefe. Seu maior erro foi brigar com o responsável pela capital um
dia antes de ser entregue a mensagem que mudou a rotina do planeta.
A mensagem foi levada por uma nave-tanque. A primeira que
chegara a Éris-4 em mais de um ano. A carta era assinada pelo presidente da Fu Lu Shou e avisava sobre a venda do Berço da Discórdia para a Luckywinds. Por
conta de uma guerra entre duas Colônias Humanas que não tinham contrato com a Fu Lu Shou, as naves-tanque eram obrigadas a fazer um percurso muito maior para
chegar ao planeta. Com o aumento do custo logístico, o óleo proveniente de
Éris-4 não era mais competitivo no mercado e a companhia havia decidido vender
o ativo para a rival, cujas naves tinham autorização para atravessar a zona de
guerra.
Naves-balsas foram até o Berço da Discórdia para levar todos
os seus habitantes para a Colônia Humana mais próxima. Era necessário, porém,
que um pequeno contingente ficasse na capital, à espera de seus novos donos. A
briga de Swift com o encarregado-chefe (por motivo banal; um desentendimento
por conta do filho de um que queria namorar o filho do outro) fez com que ele
fosse o escolhido para ficar responsável pela Central Bernard Silva de Exploração
e Refino até que a Conquistadora de Midgard chegasse.
Além de Swift, apenas outras duas pessoas continuavam em
Éris-4. Um delas era Mei, engenheira responsável por manter a capital
funcionando. A outra era Homero, grande amigo de Swift, a cargo da segurança.
Os três, contudo, mal se viam. Afogados em suas tarefas, eles se reuniam uma
vez por semana para consolidarem seus relatórios. E uma hora depois voltavam
para suas solidões.
No milésimo nongentésimo terceiro dia, a reunião demorou
mais do que o previsto para começar. Swift e Mei conversavam na sala do
encarregado-chefe por mais de duas horas, quando decidiram ir à cabine de
Homero. Swift sabia que seu amigo havia estocado todos os medicamentos
disponíveis na capital e desconfiava que, volta e meia, deixava de trabalhar
para se drogar. Talvez ele tivesse esquecido a reunião por conta disso.
Da sala do encarregado-chefe à ala das cabines era uma longa
caminhada. Por mais que Swift acreditasse que era apenas uma banalidade que
afastava o amigo do compromisso, Mei não estava tão segura. Preferiu fazer o
trajeto com sua arma em punho.
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