segunda-feira, 29 de outubro de 2012

À espera – Berço da Discórdia (1 de 4)



O que mais incomodava Swift não era a solidão ou o tédio. Era o regime de vinte e quatro horas. Não importava aos seus empregadores que aquele planeta minúsculo em uma esquina qualquer do universo tinha uma rotação de treze horas e meia; Swift era obrigado a fazer seus relatórios baseado nas horas terrestres. E por isso mesmo, com o sol amarelo azulado bem acima de sua cabeça, fazendo-o suar por baixo de seu traje, embaçando seu visor, ele era obrigado a iniciar o relatório informando que eram quatro horas da madrugada. Ainda que o relatório completo fosse resumido a “Milésimo nongentésimo terceiro dia de espera, quatro horas da madrugada, continuo aguardando a chegada da nave de carga Conquistadora de Midgard”, o que mais irritava Swift era registrar o falso horário.

Enquanto pilotava seu veículo de exploração terrestre, o encarregado-chefe Robert Swift observava a superfície do planeta, se despedindo novamente, como fazia todos os dias, do local em que habitara por dezessete anos terrestres e torcendo para que aquela fosse a última vez que se despedia. Quando anunciaram que a Conquistadora de Midgard estava a caminho, há mil novecentos e três dias, Swift fez suas malas e, para comemorar a partida daquele planeta que aprendeu a apreciar, bebeu todos os destilados que ainda guardava em sua cabine. Desde então, sem ter com o que se embriagar e racionando o que ainda restava de comida, o homem esperava que a nave chegasse. Ou a morte. O que viesse mais rápido.

O planeta Éris-4, chamado carinhosamente por seus habitantes de Berço da Discórdia, era uma pequena maçaroca de lama que em nada lembrava a superfície da Terra. Era possível atravessar o planeta por seu paralelo principal em menos de quatro dias utilizando os veículos de exploração disponíveis. Não há oceano, apesar de a água ser abundante logo abaixo de sua crosta. Chove diariamente, mas a água é rapidamente absorvida pelo solo, extremamente pastoso.

Até onde a vista alcançava da Central Bernard Silva de Exploração e Refino, a paisagem era coberta por uma vegetação rasteira, que todo dia desaparecia no horário das chuvas, mas que voltava a se erguer da lama no dia seguinte. As plantas serviam de alimento para uns pequenos pássaros sem penas, os únicos animais que podiam ser vistos a olho nu. E a carne destes pássaros era extremamente letal aos seres humanos.

Diziam os bioarquitetos que chegaram a Éris-4 a bordo da nave Serpente que o planeta já havia sido cheio de vida. Nada de vida inteligente. A superfície do Berço da Discórdia era coberta de vegetação exuberante e muitas eram as espécies de animais – pequenos pássaros, pequenos roedores e pequenos anfíbios, principalmente – que se reproduziam sob o sol amarelo azulado. Talvez nesta época o planeta não merecesse seu apelido.

Ninguém jamais ouvira falar de Éris-4 até cerca de dois séculos terrestres. Foi nessa época que a nave Comodoro Valente se chocou contra o planeta, ao voltar de uma missão diplomática. Boa parte da tripulação morreu com a queda, mas alguns oficiais conseguiram enviar uma mensagem de socorro. O resgate não chegou a tempo. Foram mais de trinta anos entre o acidente e a aterrissagem da Serpente.

A Serpente não era exatamente uma nave de auxílio. Era um monstro metálico com capacidade para transportar mais de cento e cinquenta tripulantes, além de cargas e equipamentos. E a nave já chegou a Éris-4 com uma missão: explorar o potencial econômico do pequeno planeta. Durante cinco anos, as equipes da Serpente tentaram descobrir de que modo aquela bola lamacenta poderia contribuir para o desenvolvimento da Terra e das Colônias Humanas. Neomineradores, geólogos, bioarquitetos, estrategistas militares e operadores logísticos percorreram cada quilômetro quadrado, sem enxergar muita serventia naquele corpo celeste.

Pouco antes de a Serpente partir, uma explosão chamou a atenção dos cientistas. Enquanto alguns neomineradores tentavam perfurar o solo em um local que eles acreditavam ser rico em carvão, o mau funcionamento de um dos equipamentos acabou matando parte da equipe. Para quem estava de longe, parecia apenas fogo, mas quando os sobreviventes voltaram para a nave, seus trajes estavam coberto por um líquido viscoso de um verde muito escuro. Era um combustível fóssil.

Apesar de o petróleo da Terra ter sido totalmente explorado até o século vinte e três e os humanos terem desenvolvidos fontes alternativas de energia, nenhuma jamais performou tão bem quanto os combustíveis fósseis. Boa parte de todas as missões espaciais foram baseadas na busca por óleos e minérios. Quando a notícia de que havia combustível fóssil em Éris-4 chegou à Terra, a Fu Lu Shou, conglomerado interplanetário que operava a nave Comodoro Valente, reivindicou a descoberta e posse do planeta. A batalha judicial entre a Fu Lu Shou e a Luckywinds, dona da nave Serpente, antes parceiras e agora rivais, levou Éris-4 a ser apelidada de Berço da Discórdia.

Quando finalmente a Fu Lu Shou garantiu sua posse sobre Éris-4, muitas naves chegaram ao pequeno planeta. Em pouco tempo, foi construída uma capital, toda de metal, que combinava edifícios administrativos, área para armazenamento e refino do óleo verde e espaço para convivência. O complexo foi batizado de Central Bernard Silva de Exploração e Refino, em homenagem ao piloto da Comodoro Valente. Nas décadas seguintes foram erguidas plantas de exploração, que alimentavam a capital com o óleo, que após ser processado era mandado para a Terra e para as Colônias Humanas por meio das naves-tanques.

Swift chegou a Éris-4 no auge da produção. A cada mês uma nave-tanque partia do planeta levando o óleo e outra chegava trazendo comida e suprimentos. O agora encarregado-chefe, na época, era da força policial. Em dezessete anos terrestres ele cresceu organicamente na hierarquia da capital, passando pelos importantes cargos de comandante de polícia e conselheiro do encarregado-chefe. Seu maior erro foi brigar com o responsável pela capital um dia antes de ser entregue a mensagem que mudou a rotina do planeta.

A mensagem foi levada por uma nave-tanque. A primeira que chegara a Éris-4 em mais de um ano. A carta era assinada pelo presidente da Fu Lu Shou e avisava sobre a venda do Berço da Discórdia para a Luckywinds. Por conta de uma guerra entre duas Colônias Humanas que não tinham contrato com a Fu Lu Shou, as naves-tanque eram obrigadas a fazer um percurso muito maior para chegar ao planeta. Com o aumento do custo logístico, o óleo proveniente de Éris-4 não era mais competitivo no mercado e a companhia havia decidido vender o ativo para a rival, cujas naves tinham autorização para atravessar a zona de guerra.

Naves-balsas foram até o Berço da Discórdia para levar todos os seus habitantes para a Colônia Humana mais próxima. Era necessário, porém, que um pequeno contingente ficasse na capital, à espera de seus novos donos. A briga de Swift com o encarregado-chefe (por motivo banal; um desentendimento por conta do filho de um que queria namorar o filho do outro) fez com que ele fosse o escolhido para ficar responsável pela Central Bernard Silva de Exploração e Refino até que a Conquistadora de Midgard chegasse.

Além de Swift, apenas outras duas pessoas continuavam em Éris-4. Um delas era Mei, engenheira responsável por manter a capital funcionando. A outra era Homero, grande amigo de Swift, a cargo da segurança. Os três, contudo, mal se viam. Afogados em suas tarefas, eles se reuniam uma vez por semana para consolidarem seus relatórios. E uma hora depois voltavam para suas solidões.

No milésimo nongentésimo terceiro dia, a reunião demorou mais do que o previsto para começar. Swift e Mei conversavam na sala do encarregado-chefe por mais de duas horas, quando decidiram ir à cabine de Homero. Swift sabia que seu amigo havia estocado todos os medicamentos disponíveis na capital e desconfiava que, volta e meia, deixava de trabalhar para se drogar. Talvez ele tivesse esquecido a reunião por conta disso.

Da sala do encarregado-chefe à ala das cabines era uma longa caminhada. Por mais que Swift acreditasse que era apenas uma banalidade que afastava o amigo do compromisso, Mei não estava tão segura. Preferiu fazer o trajeto com sua arma em punho.

E o pior aconteceu. Na cabine de Homero, o corpo do chefe da segurança estava caído no chão, morto há três ou quatro dias. Nas paredes, marcas de sangue pareciam desenhar a planta baixa da capital. E sobre a mesa, um pequeno disco tinha escrito o nome de Robert Swift. Era o último relatório de Homero, com a data de duas horas da tarde do milésimo octingentésimo nonagésimo nono dia à espera da Conquistadora de Midgard.

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