Quando a porta do quanto quatrocentos e dois se abriu e
Mário viu a lamúria ameaçando Tábata com uma faca, pareceu que o tempo tinha
parado. O jornalista conseguiu pensar em uma centena de coisas em uma fração de
segundos. Pensou na ex-mulher, que sempre o acusou de não tomar as atitudes
certas. Pensou em Tábata, frágil e indefesa no balcão do bar. Pensou em seu
trabalho. Mário era repórter policial e estava acostumado a ver crimes, mas
nunca tinha estado em uma situação como aquela.
“Você precisa se acalmar, meu amigo”, disse o jornalista
para o homem louro com a faca na mão. Os olhos vermelhos não paravam de
lacrimejar. “Vá embora!”, ordenou a lamúria com a voz embargada e soluçante. “Você
precisa me deixar terminar isso!”
O repórter deixou o livro cair perto da porta e, em pequenos
passos, foi se aproximando do casal. A ruiva estava caída no chão, desesperada,
com os olhos verdes implorando por ajuda. Ela não conseguia dizer nenhuma
palavra. Até onde lembrava, o manuscrito do livreiro não dava muitos detalhes
sobre as lamúrias. Eram criaturas que não possuíam habilidades especiais ou
fraquezas, estando fadadas apenas ao sofrimento constante.
“Por que não deixamos a Tábata ir embora e conversamos só
nós dois?”, o jornalista tentava distrair a lamúria. O homem gemia baixinho,
como se uma dor física dominasse seus pensamentos. “Eu preciso terminar isso”,
a lamúria repetia como um mantra, “posso não ter outra chance”.
Era possível sentir a determinação da lamúria. Apesar da
aparência que contagiava sofrimento, a mão que segurava a faca era firme e os
músculos do braço estavam bem contraídos. “Vá embora, por favor. Isso não vai
acabar bem. Isso precisa acabar.”
Mário se agachou, tentando enxergar melhor as reações de
Tábata. Queria passar alguma dica para ela, como se fosse pedir para que a
ruiva corresse para fora do quarto. Mas ela não olhava de volta. Estava
apavorada com aquela faca perto dela.
“Você vai acabar machucando a moça”, apelou Mário. Quanto
mais o repórter falava, mais as lágrimas rolavam pelo rosto da lamúria. “Eu já
tive uma chance”, disse o homem, “mas não consegui finalizar. Agora nada vai me
impedir de acabar com isso. Preciso acabar com isso”. Mário pensava na outra
chance a que a lamúria se referia. Provavelmente falava do corte sobre a
sobrancelha de Tábata.
O jornalista se levantou. Já estava muito próximo da ruiva e
da lamúria. E, ao olhar para o homem, começou também a chorar, já com os olhos
muito vermelhos. As lágrimas entristeceram ainda mais a lamúria, que acabou
relaxando um pouco o braço e estendeu a mão livre para amparar o repórter. “Precisamos
acabar com isso”, disse Mário. A lamúria concordou com a cabeça.
Aproveitando-se da fraqueza do homem, Mário o empurrou
contra a parede, quebrando um espelho. Com o choque, a faca voou para longe e
Tábata pôde correr para a outra extremidade do quarto. A lamúria desmaiou e seu
corpo ficou caído sobre os cacos do espelho.
Com cautela, para não assustá-la, Mário se aproximou de
Tábata. Ele tentou acalmá-la, mas a moça parecia estar com taquicardia. “Fique
tranquila. Nós já vamos embora daqui e você poderá esquecer esse cara”, disse
seguro o repórter. “Deixe apenas eu pegar o livro que estava comigo para que
possamos sair.”
Ao abaixar para pegar o livro, Mário viu novamente a foto
que pegara na casa de Tábata. E lá estava a lamúria, antes de se tornar uma
lamúria. Mas a Tábata na foto não era mais a mesma. No lugar da pele sardenta
havia um tecido que parecia cinzas e ruínas. Seus cabelos ruivos não eram mais
do que fumaça espessa e os olhos verdes estavam vazios. Antes que o jornalista
pudesse se assustar com a imagem, um grito chamou sua atenção. Era a lamúria. E
sobre ela estava a criatura cinza e esfumaçada, devorando sua caixa toráxica.
Quando finalmente o homem morreu, depois de muito agonizar e
chorar, a criatura se virou para o repórter. “Não posso mais ser Tábata”, o som
saía da boca cinzenta com eco, “você me viu da maneira que eu sou. Agora você será
o meu hospedeiro”. A criatura se transformou em uma imensa fumaça negra, que
avançou na direção de Mário. Mas antes que pudesse dominá-lo, surgiu uma
barreira. Uma barreira forte, de corpo quadrado e sem cabelos. Das trevas do
quarto a sombra se projetou para proteger o repórter.
No corpo da sombra, a criatura se contorcia. Parecia que
ambos brigavam para dominar aquela sombra tridimensional. Temendo ter o mesmo
destino da lamúria, Mário pegou a faca e cravou no ventre da sombra. Por um
segundo, a sombra pareceu sorrir, como se o repórter tivesse feito a coisa
certa. Logo depois, o corpo quadrado se atirou pela janela para fora do quarto,
sendo dissolvido pelo sol da tarde.
No canto do quarto, um gemido chamou a atenção de Mário. Era
Tábata, caída no chão. A verdadeira Tábata, dona do corpo que a criatura estava
usando. “Você está bem?”, o repórter segurava a cabeça da moça. “O que
aconteceu aqui?”, ela perguntou. “Você... Parece que eu te conheço, mas não sei
de onde.” A mulher perguntava pelo marido e pela filha. Não se lembrava de nada
do que havia acontecido recentemente.
Mário levou Tábata até o livreiro, que ficou feliz ao ver
que seu manuscrito estava intacto. Ele ainda explicou a real natureza da criatura que se fazia passar pela ruiva. Era uma sugadora. Atraía pessoas para a Rua do Meio, se alimentava de suas alegrias até que não sobrasse nada além da tristeza. Foi isso o que ela fez com a sombra e com a lamúria, transformando os dois de pessoas normais para seres compostos por sofrimento. E era isso que ela pretendia fazer com Mário.
O velho se responsabilizou por levar Tábata de volta para casa, no Mundo-Além-Da-Esquina. “Como você, eu sou um turista”, revelou o livreiro. “Posso entrar e sair quando quiser. Apenas escolhi ficar aqui, para documentar o que se passa na Rua do Meio. Acho que podemos precisar de um jornalista também. Ainda não temos nenhum.”
O velho se responsabilizou por levar Tábata de volta para casa, no Mundo-Além-Da-Esquina. “Como você, eu sou um turista”, revelou o livreiro. “Posso entrar e sair quando quiser. Apenas escolhi ficar aqui, para documentar o que se passa na Rua do Meio. Acho que podemos precisar de um jornalista também. Ainda não temos nenhum.”
De fato, Mário resolveu ficar na Rua do Meio. Passou a morar
na casa que pertencia à criatura que dominava Tábata. Todas as noites passava
na banca de jornais e depois no bar, onde podia tomar um chope e fumar seus
Yellows. Com o tempo, decidiu escrever seu próprio livro, manuscrito, claro,
sobre o que havia acontecido desde que conhecera a Rua do Meio. Um detalhe,
porém, o incomodava em toda a história. E, por isso, procurou o livreiro para
pedir ajuda.
“O senhor me disse que quem está há algum tempo na Rua do
Meio perde o nome”, disse o jornalista, “mas na primeira vez que eu estive
nesta rua ouvi uma conversa que me deixou confuso. E ainda não consegui
entender. Um grupo bebia na rua e falava sobre um homem. Um tal presidente
Lopes. Suponho que ele seja presidente da Rua do Meio, ou algo parecido. Mas se
ele estivesse tempo o suficiente por aqui para ser presidente, seu nome já não
teria sido esquecido?”
O livreiro riu e fez um gesto para que Mário o acompanhasse.
Seguiram por entre as pilhas de manuscritos até o fim da livraria. Lá, o velho
abriu uma porta, a porta dos fundos, de onde era possível ver uma rua paralela
àquela onde a livraria estava situada. E além dessa, havia outra rua. E mais
outra. E outra, até que a vista não alcançasse mais. “Meu jovem repórter, ainda
há muito para você descobrir sobre a Rua do Meio.”
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