O ventilador de teto girava, mas Mário não sentia nenhum
vento em seu corpo. Jogado no sofá de sua sala, no Bairro Peixoto, o jornalista
ainda tentava entender o que havia acontecido nas últimas horas. Não conseguia
parar de pensar em Tábata, nos cabelos cacheados ruivos, nos olhos vedes
brilhantes, nas sardas que se espalhavam pela pele, nos braços fortes e firmes,
na camiseta branca quase transparente, nos jeans muitos justos. Mas,
pincipalmente, pensava naquele corte sobre a sobrancelha.
Enquanto se perdia nas lembranças de abata, era trazido de
volta à realidade pelo discurso da sombra viva. O sujeito forte, quadrado, sem
cabelos e sem corpo fora incisivo ao dizer que Tábata era o verdadeiro risco e
que Mário deveria ficar longe da Rua do Meio. Mas será que a história era
verdade?
Mário não sabia em que acreditar. De um lado, ele tinha
fresca a memória de Tábata tentando se abrir sobre seu agressor no bar, o
surgimento da sombra na porta e a fuga da ruiva, que acabou afastando o
jornalista da Rua do Meio por algum tempo. Do lado oposto, havia a conversa da
última madrugada na salinha dos fundos do bar, onde a sombra tentou convencer
Mário a desistir de sua busca enquanto podia.
Sem saber qual lado era o certo, restou ao repórter apurar o
fato. E se a Rua do Meio não possuía aparentemente uma força policial, um órgão
governamental ou, ao menos, uma assessoria de imprensa, havia entre seus
imóveis uma velha livraria, tão misteriosa quanto a própria rua.
A Rua do Meio não se abriu logo à porta do prédio de Mário
desta vez. Foi preciso caminhar alguns quarteirões até achar, bem no meio da
Miguel Lemos, a esquina com a já conhecida banca de jornais onde Yellows era a
marca de cigarros mais vendida. O jornalista foi andando pela rua, que seguia
em direção ao Arpoador e desta vez era dividida por um túnel, até encontrar o
pequeno livreiro de cabelos rebeldes.
Tão logo Mário entrou na livraria, o livreiro pediu que ele
fizesse silencia. Então, o pequeno homem caminhou pela loja, solicitando
gentilmente que os demais fregueses se retirassem, oferecendo como brinde pelo
transtorno os exemplares que os mesmos consultavam no momento. Em seguida,
trancou a porta da frente e guiou o jornalista até as poltronas, onde se
sentaram. “Não sabia se você voltaria”, disse o livreiro, com uma xícara de chá
quente nas mãos, “mas já estava preparado para termos esta conversa”.
Mário agradeceu o livro que o ajudou a encontrar a Rua do
Meio, lamentou o incidente que fez com que as páginas do exemplar se soltassem
e voltou a agradecer ao velho pela página da lista telefônica com o endereço de
Tábata, caso ele tivesse algo a ver com aquilo. Logo depois, o jornalista
implorou que o velho explicasse algo sobre a Rua do Meio que o ajudasse a
entender melhor toda aquela situação, para enfim encontrar Tábata e saber se
ela estava bem.
“O seu problema, meu jovem”, o livreiro falava em voz baixa,
entre um gole e outro no chá, “é que você pensa na Rua do Meio como um lugar.
Isso aqui não é um lugar. É apenas uma ideia”. Mário já não se espantava mais
com o que ouvia e o velho sabia disso. Prosseguiu: “Esta rua não existe no
espaço e não existe no tempo. Não se surpreenda se da próxima vez que você
cruzar a esquina se deparar com o trânsito louco de Nova Delhi. E não se
incomode se as tropas de Napoleão cruzarem o seu caminho enquanto estiver no bar
em frente tomando uma cerveja.”
O repórter deixou escapar uma risada. “Nada me surpreende
mais aqui”, comentou Mário, servindo para si uma xícara de chá. Desta vez, quem
riu foi o livreiro. “Pois devia se surpreender com muita coisa. A Rua do Meio
aprisiona almas atormentadas que não têm mais para onde ir, os espíritos que
não pertencem mais ao Mundo-Além-Da-Esquina, como chamamos aqui. E a cada dia
que passa, mais moradores chegam à nossa humilde rua e não conseguem mais sair.
Raros são os turistas, como você, que podem ir e vir quando bem entendem.”
“Esta rua já foi uma travessa”, o velho olhava para cima,
como se pudesse visualizar os primeiros dias daquele lugar esquecido pela
humanidade. “Foi nessa época que eu cheguei. Não éramos mais do que dez
moradores naquela época, vivendo em barracas. Muitas coisas aconteciam. Muitas
pessoas desapareciam ou simplesmente mostravam suas verdadeiras faces. Homens
viravam cães, mulheres viravam pássaros. Alguns dormiam o tempo todo, enquanto
outros nem conseguiam piscar. A única coisa que acontecia com todos era a
perda. Em pouco tempo perdíamos nossos nomes e nossos passados. Foi então que
eu decidi começar a escrever. Peguei um punhado de folhas e passei a relatar
todos os acontecimentos da Rua do Meio. E quando esses relatos se acumularam,
eu abri esta livraria. Tudo aqui foi escrito pelo meu próprio punho, na
esperança de um dia ajudar a alguém. Esse é um desses dias. Me diga como eu
posso ajudar.”
O jornalista só conseguia pensar em uma única coisa. “Tábata.
Se você está aqui desde os primeiros dias, deve conhecê-la. Ouvi coisas
estranhas sobre ela e gostaria de saber a verdade e onde ela está.”
“Tábata”, repetiu o livreiro. “Como eu disse, perdemos
nossos nomes aqui, então ela deve ser nova. E ainda não mostrou quem ela
realmente é. Vou te dizer o que posso fazer para ajudá-lo.” O velho
levantou-se, foi até sua escrivaninha e tirou da gaveta um livro. “Este aqui é
o maior trabalho da minha vida. É apenas uma lista, com desenhos e breves
descrições sobre os tipos de pessoas que vivem na Rua do Meio. Não fala das
pessoas propriamente ditas. Não terá uma página sobre eu, sobre o bartender ou
sobre o jornaleiro, mas sobre a essência de cada um que vive nas inúmeras
residências desta rua.”
Com um forte aperto de mãos, Mário agradeceu ao velho e saiu
da livraria com o exemplar. Pensou em voltar para o bar, onde poderia comer
algo enquanto descobria mais sobre os habitantes da rua, mas temia que o
bartender o pusesse para correr como fez na última noite. Andou mais um pouco,
atravessou o túnel, que murmurava em um tom assustador, e foi encontrar do lado
oposto um edifício de cinco andares. Era o maior da rua, sem dúvidas. Apesar de
não haver qualquer letreiro, suas portas giratórias e os uniformes dos
empregados indicavam que aquilo era um hotel. Como o livreiro havia falado que
poucos eram os turistas que passavam pela Rua do Meio e que Tábata, por ainda
ter um nome, era nova no local, talvez alguém do hotel soubesse quem era ela e
onde estava.
Alegremente, o gerente do hotel recebeu Mário na porta e o
levou até o restaurante, indicando uma mesa bem iluminada. Próximo dali, um
pianista animava os presentes e os garçons passavam apressados de um lado para
o outro com suas bandejas repletas de pratos. Enquanto aguardava um filé com
batatas, o repórter começou a ler o livro.
Os relatos do livreiro eram fascinantes e havia todo tipo de
figura na Rua do Meio. Não era possível encontrar nenhum relato sobre vampiros,
lobisomens ou curupiras naquelas páginas, mas os desenhos e descrições indicavam
personagens tão complexos e interessantes quanto os seres consagrados pelo
folclore e pelas mitologias.
Uma das páginas chamou a atenção de Mário. Era sobre as
sombras, como a que ele havia conhecido. O texto do livreiro dizia que eram
pessoas que tinham suas vidas sugadas pelo desespero a um ponto que o próprio
corpo desaparecia. As últimas linhas indicavam, contudo, que em geral as
sombras eram traiçoeiras e tentavam enganar as pessoas, acreditando que levando
desespero a elas seus corpos poderiam ser restaurados. “Não há como confiar no
que a sombra disse, então. Tábata realmente está em perigo.”
Depois de almoçar e conhecer um pouco melhor sobre os tipos
que viviam na Rua do Meio, Mário sacou do bolso a foto que pegara na casa de
Tábata, aquela em que ela parecia estar ao lado de alguém, mas não havia outra
pessoa na imagem. Com cautela para não assustar ninguém e não atrair atenção
indesejada, o repórter foi de mesa em mesa perguntando se alguém conhecia a
ruiva. A resposta, em todos os casos foi negativa.
De volta a seu lugar, Mário largou a foto sobre a mesa e
pediu a conta. Quando o gerente apareceu para apanhar o dinheiro, deixou
escapar um número. “Quatrocentos e dois”, disse o homem. O jornalista perguntou
do que se tratava o número e o gerente apontou para a foto. “Tábata?”, perguntou
otimista o repórter. “Não sei quem é Tábata”, disse o gerente. “Mas esse
sujeito está hospedado no quarto quatrocentos e dois.”
Quando o repórter olhou novamente a foto para a qual o
gerente apontava, percebeu que Tábata não estava mais sozinha na imagem. Ao
lado dela, um homem louro, de olhos azuis, sorria. Certamente era ele quem
tinha desaparecido com a moça, pensava Mário. Ao lembrar as complicadas
numerações e endereços da Rua do Meio, preferiu conferir com o gerente onde
ficava o quarto. “Não se preocupe”, divertiu-se o homem, “aqui é um espaço para
turistas, a numeração é tradicional. Pode ir até a segunda porta do quarto
andar, mesmo”.
Ainda que houvesse elevador, Mário não teve paciência para
aguardar. Disparou pelas escadas até o quatrocentos e dois e arrombou a porta
com um chute. Dentro do quarto, Tábata estava caída ao chão, com o homem louro
de pé com uma faca na mão. Sua aparência estava bem distante do sorriso da foto.
Seus olhos eram muito vermelhos e lacrimejavam incessantemente. Mário não sabia
quem era o homem, mas sabia o que ele era. Havia visto aqueles mesmos olhos chorosos nas páginas do livreiro. O homem era uma lamúria, uma criatura que
lamenta silenciosamente o próprio sofrimento.
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