“Relatório do chefe de segurança da Central Bernard Silva de
Exploração e Refino. Matrícula sete-sete-gama-doze. Homero, François. Milésimo octingentésimo
nonagésimo nono dia, duas horas da tarde, continuo aguardando a chegada da nave
de carga Conquistadora de Midgard. Desde a última hora, a situação mudou muito.
Diferente do que pensávamos, não estamos sozinhos na capital. Eu prefiro não
especular, pois pareceria ridículo, então suponho que seja algum antigo
habitante da capital. Mas, se me perguntassem com franqueza, eu diria que até a
última hora só havia três pessoas em todo o planeta. Eu estava fazendo a minha
ronda diária na unidade de tratamento de águas, que está desativada, mas
preferi voltar para a minha cabine. Precisava gravar meu relatório e não queria
ser ouvido.”
Na gravação, François Homero estava sussurrando. A voz
parecia calma, mas era nítido que ele estava se escondendo de alguém. Houve uma
longa pausa até que ele retomasse a narração do relatório.
“Está se aproximando. Minha cabine é a única fechada, então
não será muito difícil supor que eu estou escondido aqui. Central de comando da Fu Lu Shou, encerro aqui meu relatório, mas vou continuar gravando uma mensagem
para o encarregado-chefe Robert Swift.”
As palavras sensibilizaram Swift. Naquele momento, o
incidente deixava de ser apenas uma ocorrência e se tornava a morte de seu
amigo. Os dois se conheciam desde criança, quando estudaram juntos na instituição
infantil da Colônia Humana 27. Desde cedo, François Homero queria trabalhar com
segurança e por isso estudou estratégia militar. Já Swift não tinha muita
certeza do que queria e acabou cursando a academia apenas por insistência do
amigo. Anos mais tarde, o agora encarregado-chefe foi contratado pela Fu Lu Shou
e assim que pôde indicou Homero para uma vaga em Éris-4. Swift sentia-se
culpado pelo destino do amigo.
“Meu amigo”, dizia Homero na gravação, “meu mais antigo
amigo. Me desculpe por ter falhado com você nessa missão. Vamos pensar pelo
lado bom”, o chefe de segurança não conteve o riso, “pelo menos acabou o tédio por
aqui. Por Alá... está aqui na minha porta. Preciso desligar. Em uma hora gravo
um novo relatório.”
Com um ruído que arranhou os ouvidos de Mei e Swift, a
gravação foi encerrada. Os dois ficaram em silêncio por alguns minutos, cada um
elaborando sua própria teoria sobre a morte de Homero. O corpo não possuía
nenhuma marca de violência. Apenas um corte na mão, claramente feito pelo
próprio segurança para desenhar o mapa na parede. Não havia sinais também de
consumo de medicamentos. Era como se alguém simplesmente tivesse entrado na
cabine e exigido a vida de Homero, sem sequer tocá-lo.
Em momento algum Mei relaxou a mão que segurava sua arma.
Acreditava que, a qualquer momento, o assassino de Homero fosse invadir a ala
das cabines para matar os dois membros restantes da missão. E se sentia
especialmente exposta. Se Swift decidisse que não havia nenhum assassino, os
dois voltariam a suas rotinas de trabalho. Com isso, Mei continuaria na
capital, presa com a pessoa que matou Homero enquanto Swift passearia por
Éris-4 a bordo de seu veículo de exploração. Para evitar que isso ocorresse, a
engenheira estava obstinada em levar o encarregado-chefe para a unidade de
tratamento de águas em busca de alguma pista.
“Qual a sua aposta?”, interrogou Swift enquanto tirava o
lençol branco que cobria a cama da cabine de Homero. Pressionou o tecido contra
a parede, gravando o mapa desenhado pelo amigo. Em seguida, guardou o lençol em
sua bolsa, caso precisasse consultá-lo depois. “Ainda não tenho certeza”, disse
Mei, “mas acredito que um dos detentos da ala prisional possa ter escapado
antes da transferência de todos os habitantes da capital para as Colônias
Humanas. Da ala prisional é fácil chegar à unidade de tratamento de águas.”
O encarregado-chefe sabia que era necessário investigar, mas
achava que a ala das cabines poderia fornecer muito mais informações do que a
unidade de tratamento de águas. Para ele, o encontro de Homero com seu algoz na
unidade desativada fora um mero acaso.
A unidade de tratamento de águas era uma das maiores
maravilhas da ciência. E a grande ferramenta que permitia a instalação de
humanos em bases temporárias, como a capital de Éris-4. Nas Colônias Humanas,
toda a biosfera da Terra era simulada ou recriada, com condições atmosféricas favoráveis,
fauna e flora. A água era retirada de lençóis freáticos (naturais ou
artificiais), rios e oceanos. No caso de planetas, como Éris-4, em que não era
possível desenvolver uma biosfera, as empresas controladoras optavam pela
construção de uma base temporária. E cada uma possuía uma unidade de tratamento
de águas, um espaço amplo (cerca de um terço da área de toda a base), que
retirava a água ou substância semelhante existente do solo, a adaptava para que
virasse monóxido de dihidrogênio e eliminava as impurezas. Essa água era usada
em toda a base, quer para aquecimento e resfriamento de ambientes, limpeza, geração
de energia e consumo humano, sendo reaproveitada por um longo período, até que
se tornasse totalmente imprópria. Neste caso, a substância era armazenada em
naves-tanque, que a utilizavam para controlar a temperatura externa na
decolagem e, em seguida, eliminada no espaço, anulando o risco de contaminação
de humanos.
Como a Central Bernard Silva de Exploração e Refino estava
praticamente desativada, não havia necessidade de manter a unidade em
funcionamento. Apenas um equipamento de menor porte permanecia operando,
garantindo as condições vitais necessárias no edifício administrativo, na ala
das cabines e, quando necessário, em áreas que Swift, Mei e Homero precisassem
acessar. Isso fazia da unidade um monstro sombrio e silencioso, que podia
abrigar muitos segredos. Inclusive um assassino escondido.
Mei e Swift caminhavam com cuidado na unidade. Apesar de a
maior parte da capital ter sido construída com metal, a unidade de tratamento
de águas utilizava no chão fibras de carbono, semelhantes a madeira. Isso fazia
com que os passos ressoassem e ecoassem, aumentando a tensão dos dois. Com suas
armas e lanternas em mãos, eles exploravam o lugar em busca de alguém ou alguma
pista.
Quanto mais andavam, mais barulho fazia, mas em certo
momento, Swift começou a desconfiar dos sons que ouvia. Havia passos fora do
ritmo em que ele e Mei andavam. Passos de outra pessoa. De uma pessoa leve e
rápida. A engenheira começou a desconfiar dos barulhos também. Pararam os dois,
tentando identificar de onde vinham os passos, mas o eco atrapalhava a
percepção. De repente, os passos começaram a correr na direção dos dois. E, num
choque, Mei foi derrubada no chão. Sua lanterna rolou para longe. E o som
elétrico de um tiro foi escutado. Swift temia pela vida de sua companheira de
missão. Mas ao apontar sua lanterna para ela, nada viu além de um corte começando a sangrar em seu queixo. Os passos cessaram, mas uma respiração ofegante era
ouvida há poucos metros dali. Quando a luz da lanterna de Swift chegou à fonte do
som, havia uma pessoa caída, com o peito queimado pelo disparo elétrico da arma
de Mei. Uma menina, que não tinha mais do que nove anos terrestres.
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