terça-feira, 30 de outubro de 2012

À espera – Na escuridão (2 de 4)



“Relatório do chefe de segurança da Central Bernard Silva de Exploração e Refino. Matrícula sete-sete-gama-doze. Homero, François. Milésimo octingentésimo nonagésimo nono dia, duas horas da tarde, continuo aguardando a chegada da nave de carga Conquistadora de Midgard. Desde a última hora, a situação mudou muito. Diferente do que pensávamos, não estamos sozinhos na capital. Eu prefiro não especular, pois pareceria ridículo, então suponho que seja algum antigo habitante da capital. Mas, se me perguntassem com franqueza, eu diria que até a última hora só havia três pessoas em todo o planeta. Eu estava fazendo a minha ronda diária na unidade de tratamento de águas, que está desativada, mas preferi voltar para a minha cabine. Precisava gravar meu relatório e não queria ser ouvido.”

Na gravação, François Homero estava sussurrando. A voz parecia calma, mas era nítido que ele estava se escondendo de alguém. Houve uma longa pausa até que ele retomasse a narração do relatório.
“Está se aproximando. Minha cabine é a única fechada, então não será muito difícil supor que eu estou escondido aqui. Central de comando da Fu Lu Shou, encerro aqui meu relatório, mas vou continuar gravando uma mensagem para o encarregado-chefe Robert Swift.”

As palavras sensibilizaram Swift. Naquele momento, o incidente deixava de ser apenas uma ocorrência e se tornava a morte de seu amigo. Os dois se conheciam desde criança, quando estudaram juntos na instituição infantil da Colônia Humana 27. Desde cedo, François Homero queria trabalhar com segurança e por isso estudou estratégia militar. Já Swift não tinha muita certeza do que queria e acabou cursando a academia apenas por insistência do amigo. Anos mais tarde, o agora encarregado-chefe foi contratado pela Fu Lu Shou e assim que pôde indicou Homero para uma vaga em Éris-4. Swift sentia-se culpado pelo destino do amigo.

“Meu amigo”, dizia Homero na gravação, “meu mais antigo amigo. Me desculpe por ter falhado com você nessa missão. Vamos pensar pelo lado bom”, o chefe de segurança não conteve o riso, “pelo menos acabou o tédio por aqui. Por Alá... está aqui na minha porta. Preciso desligar. Em uma hora gravo um novo relatório.”

Com um ruído que arranhou os ouvidos de Mei e Swift, a gravação foi encerrada. Os dois ficaram em silêncio por alguns minutos, cada um elaborando sua própria teoria sobre a morte de Homero. O corpo não possuía nenhuma marca de violência. Apenas um corte na mão, claramente feito pelo próprio segurança para desenhar o mapa na parede. Não havia sinais também de consumo de medicamentos. Era como se alguém simplesmente tivesse entrado na cabine e exigido a vida de Homero, sem sequer tocá-lo.

Em momento algum Mei relaxou a mão que segurava sua arma. Acreditava que, a qualquer momento, o assassino de Homero fosse invadir a ala das cabines para matar os dois membros restantes da missão. E se sentia especialmente exposta. Se Swift decidisse que não havia nenhum assassino, os dois voltariam a suas rotinas de trabalho. Com isso, Mei continuaria na capital, presa com a pessoa que matou Homero enquanto Swift passearia por Éris-4 a bordo de seu veículo de exploração. Para evitar que isso ocorresse, a engenheira estava obstinada em levar o encarregado-chefe para a unidade de tratamento de águas em busca de alguma pista.

“Qual a sua aposta?”, interrogou Swift enquanto tirava o lençol branco que cobria a cama da cabine de Homero. Pressionou o tecido contra a parede, gravando o mapa desenhado pelo amigo. Em seguida, guardou o lençol em sua bolsa, caso precisasse consultá-lo depois. “Ainda não tenho certeza”, disse Mei, “mas acredito que um dos detentos da ala prisional possa ter escapado antes da transferência de todos os habitantes da capital para as Colônias Humanas. Da ala prisional é fácil chegar à unidade de tratamento de águas.”

O encarregado-chefe sabia que era necessário investigar, mas achava que a ala das cabines poderia fornecer muito mais informações do que a unidade de tratamento de águas. Para ele, o encontro de Homero com seu algoz na unidade desativada fora um mero acaso.

A unidade de tratamento de águas era uma das maiores maravilhas da ciência. E a grande ferramenta que permitia a instalação de humanos em bases temporárias, como a capital de Éris-4. Nas Colônias Humanas, toda a biosfera da Terra era simulada ou recriada, com condições atmosféricas favoráveis, fauna e flora. A água era retirada de lençóis freáticos (naturais ou artificiais), rios e oceanos. No caso de planetas, como Éris-4, em que não era possível desenvolver uma biosfera, as empresas controladoras optavam pela construção de uma base temporária. E cada uma possuía uma unidade de tratamento de águas, um espaço amplo (cerca de um terço da área de toda a base), que retirava a água ou substância semelhante existente do solo, a adaptava para que virasse monóxido de dihidrogênio e eliminava as impurezas. Essa água era usada em toda a base, quer para aquecimento e resfriamento de ambientes, limpeza, geração de energia e consumo humano, sendo reaproveitada por um longo período, até que se tornasse totalmente imprópria. Neste caso, a substância era armazenada em naves-tanque, que a utilizavam para controlar a temperatura externa na decolagem e, em seguida, eliminada no espaço, anulando o risco de contaminação de humanos.

Como a Central Bernard Silva de Exploração e Refino estava praticamente desativada, não havia necessidade de manter a unidade em funcionamento. Apenas um equipamento de menor porte permanecia operando, garantindo as condições vitais necessárias no edifício administrativo, na ala das cabines e, quando necessário, em áreas que Swift, Mei e Homero precisassem acessar. Isso fazia da unidade um monstro sombrio e silencioso, que podia abrigar muitos segredos. Inclusive um assassino escondido.

Mei e Swift caminhavam com cuidado na unidade. Apesar de a maior parte da capital ter sido construída com metal, a unidade de tratamento de águas utilizava no chão fibras de carbono, semelhantes a madeira. Isso fazia com que os passos ressoassem e ecoassem, aumentando a tensão dos dois. Com suas armas e lanternas em mãos, eles exploravam o lugar em busca de alguém ou alguma pista.

Quanto mais andavam, mais barulho fazia, mas em certo momento, Swift começou a desconfiar dos sons que ouvia. Havia passos fora do ritmo em que ele e Mei andavam. Passos de outra pessoa. De uma pessoa leve e rápida. A engenheira começou a desconfiar dos barulhos também. Pararam os dois, tentando identificar de onde vinham os passos, mas o eco atrapalhava a percepção. De repente, os passos começaram a correr na direção dos dois. E, num choque, Mei foi derrubada no chão. Sua lanterna rolou para longe. E o som elétrico de um tiro foi escutado. Swift temia pela vida de sua companheira de missão. Mas ao apontar sua lanterna para ela, nada viu além de um corte começando a sangrar em seu queixo. Os passos cessaram, mas uma respiração ofegante era ouvida há poucos metros dali. Quando a luz da lanterna de Swift chegou à fonte do som, havia uma pessoa caída, com o peito queimado pelo disparo elétrico da arma de Mei. Uma menina, que não tinha mais do que nove anos terrestres.

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