O sentimento era dúbio em relação à pequena vítima. Enquanto
Mei a acusava de ser a assassina de Homero, Swift era mais razoável. “Não há
sentido em acreditar que esta criança possa ter tirado a vida do nosso chefe de
segurança”, disse o encarregado-chefe. O tiro não fora letal. A arma da
engenheira, como a de todos da base, estava ajustada na potência mínima. Apenas
o suficiente para desacordar o oponente. A menina ofegava, desmaiava e acordava
assustada, em um ciclo que se repetia. “Tem que ser ela”, Mei era a tradução do
desespero, “em jamais atiraria em uma criança inocente! Eu jamais atirei em
alguém na minha vida. Eu sou só uma engenheira...”
A menina, exceto pelo peito queimado, tinha a pele muito
suja, principalmente nos pés, joelhos, mãos e ao redor da boca. O cabelo louro
estava totalmente emaranhado e olheiras vermelhas ressaltava os olhos claros.
Swift e Mei levaram a garota até a sala do encarregado-chefe, onde estavam os
suprimentos médicos restantes. Em cerca de duas horas conseguiram estabilizar a
menina, que parecia dormir serenamente.
Mesmo sabendo que a criança estava bem, Lynn Mei andava de
um lado para o outro procurando coisas para fazer. Coisas que aplacassem a dor
da menina. Coisas que a fizessem esquecer que era responsável pelo tiro que por
muito pouco não matou uma inocente. “Eu preciso sair”, a engenheira falava mais
rápido que de costume, “não posso ficar aqui”. Antes que Swift pudesse
impedi-la, Mei já havia deixado a sala, largando sua arma sobre a mesa.
Se a criança havia chegado a Éris-4, pensava o
encarregado-chefe, há registro dela. Como havia de todas as pessoas que já
passaram pelo planeta, quer em uma nave, quer em um útero, quer geradas artificialmente.
Swift buscou o leitor de íris, escaneou a menina e enviou os dados para o
computador da Central Bernard Silva de Exploração e Refino. Em segundos, um
nome surgiu no monitor. Natalya Eugene. E a partir deste nome e dos dados
associados a ele, era possível reconstruir a vida da menina.
Natalya tinha nove anos, como Swift suspeitara. Era filha de
Lorena Eugene, que trabalhava como técnica em refino na capital. Não tinha pai
ou qualquer outro parente em Éris-4. Tanto Natalya quanto Lorena estavam
agendadas para partir do Berço da Discórdia na última nave-balsa que levou
passageiros para a Colônia Humana 31. Mas de acordo com os registros médicos da
capital, dois dias antes da partida Lorena teve uma doença infecciosa grave que
os cientistas acreditavam ter erradicado há séculos: tétano. Com a mãe morta,
ninguém levou Natalya para a nave-balsa. Sem parentes, ninguém se deu conta de
que Natalya havia sido esquecida. Com apenas quatro anos de idade, a menina foi
deixada à própria sorte em uma das muitas alas desativadas do Central Bernard
Silva de Exploração e Refino. Para sua sorte, conseguiu chegar à unidade de
tratamento de águas e se alimentou dos restos de comida de Swift, Mei e Homero,
que eram enviados para o local. Viveu como um rato, sem roupas, sem amor, sem
contato humano. Talvez, no fim das contas, o tiro da engenheira tenha sido uma
dádiva na vida da menina.
Assim que mudou o dia, pelo horário terrestre, a menina
acordou. Após cinco anos rastejando sozinha pelos esgotos do planeta, não sabia
falar uma palavra. E não confiava em Swift. A solução encontrada pelo
encarregado-chefe foi deixa-la em sua cabine com água, comida e entretenimento
suficientes para que ficasse calma até seu retorno. Se Natalya era inocente,
Swift ainda tinha uma missão. Descobrir quem matou seu amigo.
De sua bolsa, o encarregado-chefe sacou o lençol onde havia
gravado o mapa feito em sangue por Homero na parede de sua cabine, pouco antes
de sua morte. Ao estender o tecido no chão, Swift se dedicou calmamente a
entender cada parte do desenho. Cada sala, cada borrão de sangue, cada pista
deixada pelo amigo. Provavelmente se Swift visse aquele mapa cinco anos antes,
boa parte do desenho soaria misterioso. Após tanto tempo perambulado pela base
abandonada, era como se o mapa houvesse sido desenhado por ele próprio.
Tudo era muito comum no mapa. Não havia uma seta, um “X”.
Nada que indicasse por onde Swift pudesse começar sua busca. Ele começou a
suspeitar que dentro de seu delírio de moribundo, Homero tivesse feito o
desenho, sem ter a chance de colocar a informação mais importante. Mas Swift
confiava em seu amigo. Com tantos anos de trabalho juntos, ele sabia que o
chefe de segurança era detalhista e que provavelmente começara o desenho pela
pista. Observando o tecido com calma, viu um pequeno retângulo que tinha as
linhas mais finas. Talvez os primeiros traços de Homero na parede, antes que o
fluxo de sangue atrapalhasse a execução dos detalhes.
O retângulo era uma sala. Ao fim de um corredor muito longo.
Uma sala que o encarregado-chefe não conhecia. E ao checar a planta baixa
oficial da Central Bernard Silva de Exploração e Refino, Swift percebeu que
oficialmente aquela sala não existia. Aquela era uma ótima pista.
Com o auxílio do computador da base, Swift registrou o mapa
em seu traje e saiu para procurar a sala desconhecida. Ficava a cerca de três
quilômetros de sua sala, mas em uma ala em que não era possível usar qualquer
meio de transporte interno por conta dos corredores estreitos. Havia um pequeno
labirinto em seu caminho, mas com o apoio do mapa não houve qualquer
dificuldade para superá-lo. Seu único temor era ser encontrado pelo assassino
antes de descobrir a pista deixada por Homero. Quando enfim chegou ao final do
corredor, encontrou a porta da tal sala travada. Era uma daquelas portas antigas,
que utilizavam dobradiças e abriam movendo-se em ângulo para dentro ou para
fora. Esta, no caso, abria para dentro da sala. E algo não deixava que se
movesse.
A luz, porém, chamou a atenção de Swift. Raios amarelo-azulados
passavam por debaixo da porta, indicando que aquela sala tinha uma janela. Ou,
Swift torcia por isso, uma porta que desse acesso pelo exterior da capital.
O encarregado-chefe fez todo o caminho de volta, até o edifício
principal da base. Precisava voltar à sua cabine para buscar o capacete de seu
traje. Ao abrir a porta, se deparou com um cenário atordoante. O corpo de Natalya
jazia em sua cama, gelado e sem vida. Tão aparentemente intocado quanto o de
Homero no dia anterior. A menina nem tivera tempo de provar a comida fresca
deixada por Swift. Desesperado, o homem sentou-se e chorou como uma criança.
No acesso central da capital, Swift pegou um dos veículos de
exploração. Estava mais determinado do que nunca a fazer o assassino pagar por
tomar as vidas de dois inocentes. Do lado de fora, iluminado pelo sol quente,
sem qualquer som que não fosse o do seu próprio corpo dentro do traje, Swift se
sentia ainda mais sozinho. Um pouco pela morte do amigo. Um pouco pela ausência
de Mei. Mas se sentia sozinho por Natalya. Quatro pessoas viviam no Berço da
Discórdia e todas viviam sozinhas.
Ao acessar a sala pelo lado de fora, o encarregado-chefe
ficou satisfeito por ver que havia uma porta. Estava aflito em fazer grande
esforço para quebrar a janela e encontrar o assassino bem descansado dentro da
sala, pronto para matá-lo. Com a arma em punho, preparado para atirar, foi até
a porta e digitou seu código de matrícula da Fu Lu Shou. O sistema de segurança
não aceitou. Em seguida, digitou sete-sete-gama-doze. A matrícula de Homero. A
porta abriu.
A sala tinha muitas telas e, diferente de toda aquela ala,
tinha energia. Era uma sala de monitoramento, criada pelo próprio Homero para
fazer captação de todas as imagens do circuito fechado de câmeras quando a
maior parte da base estivesse desativada. A sala era bem ampla, com muitos
equipamentos, e a porta estava bloqueada por uma estante caída no chão. Talvez,
o próprio Homero tenha restringido o acesso à sala, para que seu assassino não
chegasse.
Sentado na única cadeira disponível na sala, Swif ligou os
equipamentos e procurou o momento estimado da morte de Homero. Esperava que as
gravações mostrassem a imagem do assassino. E torcia para conseguir, daquele
ponto em diante, acompanhar o paradeiro do criminoso. Mas, por mais que o
encarregado-chefe mexesse nas gravações, não conseguia encontrar os registros
do dia do assassinato de seu amigo. Decidiu, então, buscar os vídeos daquele
mesmo dia, que mostrassem quem esteve em sua cabine para sugar a vida de
Natalya.
Swift sentiu uma forte dor na cabeça. Um golpe. E aos poucos
sua visão ficou turva. Desmaiou. Acordou em menos de dois minutos terrestres.
Sobre ele, estava Mei. Ela apontava a arma do encarregado-chefe e também usava
seu traje para exploração fora da base. “Nós precisamos esclarecer algumas
coisas, Swift”, disse a engenheira decidida, ajustando o disparo da arma para a
máxima potência.
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