quarta-feira, 24 de outubro de 2012

A rua do meio – A sombra e a ausência (3 de 5)


Rua do Meio, terceira casa, sobrado. Um endereço pouco comum, mas nada surpreendente para a Rua do Meio. O difícil era encontrar a residência de Tábata. Da mesma forma que não havia uma placa com o nome da rua, também não havia letreiros com os nomes das lojas ou sinalização dos números dos edifícios. Com o endereço em mãos, Mário ia tentando adivinhar onde morava a ruiva misteriosa que ele conhecera alguns meses antes e desde então jamais abandonara seus pensamentos.

A rua, nesta encarnação, estava especialmente longa. Mesmo assim, o repórter já havia cruzado suas pistas de um lado para outro diversas vezes. Tocava interfones, pedia informações. Muitos conheciam Tábata, mas o máximo que podiam ajudar era repetindo o endereço. “Rua do Meio, terceira casa, sobrado.” Apenas quando Mário pediu socorro ao livreiro ficou mais fácil achar o apartamento.

Quando finalmente o jornalista se pôs em frente ao prédio de Tábata, sua cabeça ficou ainda mais confusa. Em nenhuma ordem possível – seja da direita pra esquerda ou vice versa – aquela era a terceira casa. E tampouco havia um sobrado. Era apenas uma casa de um andar, que aparentava ter menos de cinquenta metros quadrados, sem janelas e sem telhado. “Terceira casa se refere ao terceiro imóvel construído na Rua do Meio”, explicou o livreiro. “E o endereço diz sobrado, pois esta foi uma das casas que sobrou das construções originais desta rua.”

Não havia mais sentido em buscar sentido na Rua do Meio, Mário pensava. Mas era fundamental achar Tábata, para saber se estava tudo bem com ela. O jornalista tocou a campainha da casa algumas vezes, mas não houve resposta. Bateu à porta, mas ninguém foi atender. Foi então que ele percebeu alguns arranhões próximos à fechadura e preferiu forçar a entrada. A porta cedeu com um rangido bem agudo e a luz que entrou pela fresta crescente mostrou o interior da casa. O imóvel parecia ainda menor por dentro e havia uma escada que levava para um porão, mas lá embaixo não havia nada.

No cômodo único da casa, muitos porta-retratos se espalhavam pelos móveis. Em todos eles, Tábata parecia estar posando ao lado de alguém, mas só ela aparecia nas fotos. Era como se a outra pessoa simplesmente tivesse sido apagada. Mário guardou uma das fotos no bolso, caso precisasse explicar para alguém quem era a ruiva. Além das fotos e dos móveis, apenas um bilhete sobre a mesa de centro.

“Precisei sair, pois não estava bem. Se eu fosse você, sairia também. Me desculpe por te fazer ir tão longe, mas sempre é possível voltar pelo mesmo caminho. E, se voltar a ver a Rua do Meio entre os endereços que você tão bem conhece, escolha o caminho mais longo para voltar para casa. T.”

Mário não sabia se aquele recado era para ele, apesar de ter falado com Tábata havia menos de uma hora pelo telefone. Não sabia nem se o recado era recente, pois havia uma mancha de café seca no papel. Mas aquelas palavras confusas e genéricas não poderiam afastar o repórter. Para ter alguma chance de saber onde a jovem estava, ele foi procurar o homem que considerava o perseguidor da ruiva.

No bar, com o maço de Yellows em mãos, Mário aguardou até anoitecer. E aguardou mais um pouco, até que o bartender se aproximou. “O homem que você procura está na salinha que eu mantenho fechada ali nos fundos”, disse o responsável pelo estabelecimento, enquanto limpava a mesa do jornalista. “Se eu fosse você iria até lá o quanto antes. Ou o sujeito pode acabar desistindo. Ou pode ser você quem desista.”

O jornalista tomou o resto de cerveja que ainda havia em seu copo e foi para a tal sala. Na penumbra, não parecia haver alguém. Talvez o bartender estivesse mentindo sobre o tal homem, o sujeito grande, quadrado e sem cabelo que Mário havia visto contraluz na porta do bar na noite em que conheceu Tábata. Ou, quem sabe, o homem realmente tivesse ido embora. Quando acendeu a luz para enxergar melhor, o repórter quase caiu para trás. Havia apenas uma sombra na sala.

Uma sombra. E mais nada. Uma sombra de um homem quadrado, forte e sem cabelos. Ora em duas dimensões, grudada na parede, ora em três dimensões, indo na direção do jornalista. O homem era apenas uma sombra.

“Soube que você me procura”, disse a sombra. Mário riu de nervoso. “Espero que não tenha sido um erro”, respondeu o jornalista, puxando uma cadeira. Não sabia se apontava outra cadeira para que o homem também se sentasse. Não sabia se sombras sentavam. “Quero saber onde está Tábata.”

“O erro não foi ter me procurado”, a voz da sombra era impaciente. “O erro foi achar que eu tenho algo a ver com isso. Naquela noite, quando você me viu na porta deste bar, eu não estava atrás da Tábata. Eu estava atrás de você.”

Mário fazia cara de espanto. Mais pelo fato de estar falando com uma sombra do que propriamente pelo que a sombra estava dizendo. “Foi a Tábata que me impediu. Quando ela correu para fora do bar, fazendo com que você fosse atrás dela, eu não pude segui-los. O dia já havia nascido e eu não podia voltar para a rua naquele momento. Estava enfraquecido, sob o risco de minha sombra se esvair.”

A sombra prosseguiu com a explicação, enquanto Mário demonstrava estar claramente desconfortável. “Chame-a de anjo, de demônio ou de sereia. Do que você quiser. Tábata é uma criatura e sua verdadeira face nem de longe lembra aquela ruiva de olhos verdes que te encantou na outra noite. Você viu o corte na testa dela e acha que ela está em risco, mas é nela que você deve ficar de olho.”

“Esqueça esta mulher”, recomendou a sombra. “Você estará preso à Rua do Meio para sempre. E se isso não parece ruim o suficiente, eu te digo uma coisa. Um dia fui em quem entrou nesta rua. Achei estranho uma rua diferente, que corria entre a King Street e a Pall Mall, em Londres. Conheci uma linda morena de olhos amendoados em um pub e hoje sou só uma sombra.”

A porta se abriu e a luz que entrou diluiu a sombra na parede. Era o bartender. “O bar fechou! Está na hora de você sair, repórter! Mas se eu fosse você daria ouvido a tudo o que o homem disse.”

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