Passava das duas da manhã quando Mário voltava para casa. O
trabalho como repórter o agradava muito, mas alguns dias eram tão pesados que
ele precisava entrar pela madrugada para terminar uma matéria. Estava exausto e
uma cerveja bem gelada ajudaria muito a relaxar. O ônibus foi do Centro até
Copacabana sem parar em nenhum ponto, até que o deixou em um ponto da Barata
Ribeiro.
Mário morava em Copacabana desde que nascera. Primeiro em
uma casa na Bolivar, depois em um apartamento na Tonelero e agora, após
seu divórcio, tudo o que conseguia pagar era uma quitinete no Bairro Peixoto.
Já eram trinta e cinco anos de Copacabana e ainda assim o bairro tinha a
estranha capacidade de surpreendê-lo. Esta noite era um desses momentos.
Tão logo desceu do ônibus, os olhos de Mário foram
capturados por uma imagem fora do comum. A rua à sua frente, que cortava a
Barata Ribeiro em direção à Nossa Senhora de Copacabana, estava extremamente
iluminada e cheia de gente conversando nas calçadas. Apesar da hora avançada,
todo o comércio estava aberto, com alguns restaurantes, um bar, uma banca de
jornais e duas lojas de roupas. Mas nem era isso o que surpreendia o
jornalista. O principal problema é que a rua ficava exatamente entre a Siqueira
Campos e a Hilário de Gouveia.
“Trinta e cinco anos e nunca percebi esta rua”, pensava
Mário, coçando a barba. Ele tentava puxar pela memória, mas nada vinha. Não
sabia que rua era aquela. Tentou procurar por uma placa de identificação, mas
não achou nada. Curioso, atravessou a Barata Ribeiro e foi até a agitada nova
rua.
Mário correu até a banca, para tentar conseguir algumas
informações. Ao perceber que o jornaleiro não era nada amistoso, achou que era
prudente comprar alguma coisa para ganhar simpatia. Puxou uma revista qualquer
da prateleira e pediu um maço de cigarros. Não tinha Marlboro, não tinha Camel,
não tinha nem Hollywood. Então Mário pediu qualquer marca forte, pagou e
colocou no bolso. Ao perguntar que rua era aquela, ou viu como resposta “Rua do
Meio”. Ainda intrigado, mas achando a própria pergunta um tanto estranha,
indagou há quanto tempo aquela rua existia. “Pelo amor de Deus, meu amigo. Você
deve estar brincando”, disse o jornaleiro.
Na esquina, acendeu um dos cigarros. Yellows. Uma marca que
nunca ouvira falar. Andando pela calçada, esbarrou em alguns pedestres, até que
parou perto de um grupo, que bebia na rua. Eles estavam tão à vontade que
certamente eram frequentadores do local. O repórter ficou próximo, para tentar
ouvir alguma coisa.
O assunto era política. Eles reclamavam de corrupção. Um dos
homens, o que tinha o copo mais cheio e usava óculos de lentes grossas, falava
que a impunidade incentivava os desvios de dinheiro e a negligência com as
necessidades da população. Outro dos rapazes, de terno cinza e gravata frouxa
no colarinho, alegava que a CPI não daria em nada, pois os suspeitos de lavagem
de dinheiro eram do partido do presidente. “Se ao menos o presidente Lopes, que
sempre defendeu a honestidade, se posicionasse...”, suspirou um terceiro
sujeito.
Presidente Lopes? Que presidente era esse? O nome do
presidente da República não era nem parecido com isso. Mário não era repórter
de política, mas era bem informado o suficiente para saber que não existia
presidente nenhum chamado Lopes no Brasil. Nem da República, nem da Câmara, do
Senado, do STF ou de qualquer CPI. Devia ser só papo de bêbado. O jornalista
jogou a bituca no chão, colocou a revista debaixo do braço e entrou no bar mais
próximo.
No balcão, havia apenas um banco livre. E foi lá que Mário
sentou. Pediu uma caneca de chope e um pacote de amendoins. E ficou ali,
saboreando a bebida, enquanto folheava a revista. Era uma dessas revistas de
fofoca de celebridades. Como não assistia novelas, parecia até que estava lendo
algo em outra língua. Pediu para que o bartender jogasse a revista fora e lhe
trouxesse outro chope.
Na televisão sobre o balcão passava uma reprise de um jogo
de futebol. Já nos acréscimos do segundo tempo, o Niteroiense ganhava do Atlético
do Amazonas. Mário não se conteve: “Niteroiense? Atlético do Amazonas? Que
times são esses?” Com um riso, o bartender respondeu: “Realmente, já passaram
jogos melhores na televisão”.
O repórter desistiu de entender qualquer coisa. Apenas
continuou ali, até a bebida acabar, até não haver mais amendoim. Duas horas se
passaram e os primeiros raios da manhã surgiam do lado de fora do bar. Mário
virou-se para assistir à alvorada através dos vidros empoeirados do
estabelecimento, quando Tábata entrou.
Tábata era uma ruiva com a pele coberta de sardas e olhos
verdes cintilantes. Vestia jeans bem apertados e uma camiseta branca que
permitia ver a renda do soutien. Ela sentou-se no balcão ao lado de Mário, em
um banco que havia vagado poucos minutos antes, quando um homem, brigando com a
mulher no celular, partiu sem deixar gorjeta. Ela pediu um drink e perguntou se
o repórter tinha cigarros. “Eu tenho, mas não é permitido fumar em
estabelecimentos fechados.”
Ela divertiu-se com a preocupação de Mário, mas após um
aceno permissivo do bartender ela puxou um dos Yellows do maço do jornalista. “Você
vem sempre aqui?”, ele perguntou. Ela sorriu, deixando-o envergonhado. “Não,
pergunto para valer. Não é cantada.”
“Eu não sou uma cliente frequente, se é isso que quer saber.
Gosto mais do restaurante italiano que tem aqui ao lado, mas hoje estava
procurando por algo mais forte”, ela disse. Tábata tinha braços fortes e sua
aparência não era nada frágil, mas quando ela ajeitou os cabelos a opinião do
repórter mudou. Um pequeno corte, bem recente, sobre a sobrancelha mostrava que
ela sofria nas mãos de alguém.
Mário tentou não falar sobre aquilo. Se ofereceu para pagar
uma bebida para ela, mas Tábata não aceitou. Não aceitava favores de estranhos.
“Meu nome é Mário. Eu sou jornalista. E nunca estive nessa rua antes.” Ainda
assim ela não aceitou a bebida, mas brindaram juntos. O maço ficou sobre o
balcão e alternadamente eles puxavam cigarros e acendiam. Tentaram falar sobre
banalidades, mas o corte no rosto da ruiva realmente perturbava o repórter.
“Posso perguntar o que houve, Tábata?” Ela fugiu com os
olhos e voltou a esconder o corte sob os cabelos encaracolados. “Não foi nada,
eu...”, ela olhava para todos os lados, como se tentasse identificar quem ainda
estava no bar àquela hora. Como se tentasse tomar fôlego para criar coragem,
Tábata segurou forte as mãos de Mário. Mas quando parecia que ia começar a
falar, um homem surgiu à porta.
Como já havia amanhecido, tudo que o repórter viu do sujeito
foi a silhueta. O homem parecia ter cerca de dois metros, não tinha cabelo e o
corpo era muito quadrado. Um leve tapa daquela sombra humana já seria capaz de
abrir um corte em Tábata.
Nervosa, a garota acabou derrubando a bebida que estava em
suas mãos. Foi apenas um segundo, mas tempo suficiente para que o sujeito
quadrado sumisse da porta. Enquanto Mário buscava uma toalha para secar Tábata,
ela correu para fora do bar, com Mário logo atrás dela.
Seguiram pela Rua do Meio em direção à Nossa Senhora de
Copacabana. Enquanto corriam, os letreiros iam apagando e as portas dos
estabelecimentos se fechavam. As folhas das amendoeiras, que antes eram bem
verdes, caíam amareladas. Quando o repórter chegou na esquina, não conseguia
dizer para qual direção Tábata havia ido e não via a jovem em lugar nenhum.
Parado na via principal do bairro, ele buscava nos bolsos
seu maço de Yellows, mas logo lembrou que os cigarros haviam ficado sobre o
balcão do bar. Foi então que virou-se para a Rua do Meio e ela já não estava
mais lá. Via apenas a agência dos Correios que sempre estivera ali.
Mário não sabia exatamente o que se passara nas últimas
horas, mas precisava descobrir com urgência quem era Tábata. E o que havia
acontecido com ela. E, principalmente, como voltar para a Rua do Meio.
Nenhum comentário:
Postar um comentário