segunda-feira, 22 de outubro de 2012

A rua do meio – Tábata e um maço de Yellows (1 de 5)



Passava das duas da manhã quando Mário voltava para casa. O trabalho como repórter o agradava muito, mas alguns dias eram tão pesados que ele precisava entrar pela madrugada para terminar uma matéria. Estava exausto e uma cerveja bem gelada ajudaria muito a relaxar. O ônibus foi do Centro até Copacabana sem parar em nenhum ponto, até que o deixou em um ponto da Barata Ribeiro.

Mário morava em Copacabana desde que nascera. Primeiro em uma casa na Bolivar, depois em um apartamento na Tonelero e agora, após seu divórcio, tudo o que conseguia pagar era uma quitinete no Bairro Peixoto. Já eram trinta e cinco anos de Copacabana e ainda assim o bairro tinha a estranha capacidade de surpreendê-lo. Esta noite era um desses momentos.

Tão logo desceu do ônibus, os olhos de Mário foram capturados por uma imagem fora do comum. A rua à sua frente, que cortava a Barata Ribeiro em direção à Nossa Senhora de Copacabana, estava extremamente iluminada e cheia de gente conversando nas calçadas. Apesar da hora avançada, todo o comércio estava aberto, com alguns restaurantes, um bar, uma banca de jornais e duas lojas de roupas. Mas nem era isso o que surpreendia o jornalista. O principal problema é que a rua ficava exatamente entre a Siqueira Campos e a Hilário de Gouveia.

“Trinta e cinco anos e nunca percebi esta rua”, pensava Mário, coçando a barba. Ele tentava puxar pela memória, mas nada vinha. Não sabia que rua era aquela. Tentou procurar por uma placa de identificação, mas não achou nada. Curioso, atravessou a Barata Ribeiro e foi até a agitada nova rua.

Mário correu até a banca, para tentar conseguir algumas informações. Ao perceber que o jornaleiro não era nada amistoso, achou que era prudente comprar alguma coisa para ganhar simpatia. Puxou uma revista qualquer da prateleira e pediu um maço de cigarros. Não tinha Marlboro, não tinha Camel, não tinha nem Hollywood. Então Mário pediu qualquer marca forte, pagou e colocou no bolso. Ao perguntar que rua era aquela, ou viu como resposta “Rua do Meio”. Ainda intrigado, mas achando a própria pergunta um tanto estranha, indagou há quanto tempo aquela rua existia. “Pelo amor de Deus, meu amigo. Você deve estar brincando”, disse o jornaleiro.

Na esquina, acendeu um dos cigarros. Yellows. Uma marca que nunca ouvira falar. Andando pela calçada, esbarrou em alguns pedestres, até que parou perto de um grupo, que bebia na rua. Eles estavam tão à vontade que certamente eram frequentadores do local. O repórter ficou próximo, para tentar ouvir alguma coisa.

O assunto era política. Eles reclamavam de corrupção. Um dos homens, o que tinha o copo mais cheio e usava óculos de lentes grossas, falava que a impunidade incentivava os desvios de dinheiro e a negligência com as necessidades da população. Outro dos rapazes, de terno cinza e gravata frouxa no colarinho, alegava que a CPI não daria em nada, pois os suspeitos de lavagem de dinheiro eram do partido do presidente. “Se ao menos o presidente Lopes, que sempre defendeu a honestidade, se posicionasse...”, suspirou um terceiro sujeito.

Presidente Lopes? Que presidente era esse? O nome do presidente da República não era nem parecido com isso. Mário não era repórter de política, mas era bem informado o suficiente para saber que não existia presidente nenhum chamado Lopes no Brasil. Nem da República, nem da Câmara, do Senado, do STF ou de qualquer CPI. Devia ser só papo de bêbado. O jornalista jogou a bituca no chão, colocou a revista debaixo do braço e entrou no bar mais próximo.

No balcão, havia apenas um banco livre. E foi lá que Mário sentou. Pediu uma caneca de chope e um pacote de amendoins. E ficou ali, saboreando a bebida, enquanto folheava a revista. Era uma dessas revistas de fofoca de celebridades. Como não assistia novelas, parecia até que estava lendo algo em outra língua. Pediu para que o bartender jogasse a revista fora e lhe trouxesse outro chope.

Na televisão sobre o balcão passava uma reprise de um jogo de futebol. Já nos acréscimos do segundo tempo, o Niteroiense ganhava do Atlético do Amazonas. Mário não se conteve: “Niteroiense? Atlético do Amazonas? Que times são esses?” Com um riso, o bartender respondeu: “Realmente, já passaram jogos melhores na televisão”.

O repórter desistiu de entender qualquer coisa. Apenas continuou ali, até a bebida acabar, até não haver mais amendoim. Duas horas se passaram e os primeiros raios da manhã surgiam do lado de fora do bar. Mário virou-se para assistir à alvorada através dos vidros empoeirados do estabelecimento, quando Tábata entrou.

Tábata era uma ruiva com a pele coberta de sardas e olhos verdes cintilantes. Vestia jeans bem apertados e uma camiseta branca que permitia ver a renda do soutien. Ela sentou-se no balcão ao lado de Mário, em um banco que havia vagado poucos minutos antes, quando um homem, brigando com a mulher no celular, partiu sem deixar gorjeta. Ela pediu um drink e perguntou se o repórter tinha cigarros. “Eu tenho, mas não é permitido fumar em estabelecimentos fechados.”

Ela divertiu-se com a preocupação de Mário, mas após um aceno permissivo do bartender ela puxou um dos Yellows do maço do jornalista. “Você vem sempre aqui?”, ele perguntou. Ela sorriu, deixando-o envergonhado. “Não, pergunto para valer. Não é cantada.”

“Eu não sou uma cliente frequente, se é isso que quer saber. Gosto mais do restaurante italiano que tem aqui ao lado, mas hoje estava procurando por algo mais forte”, ela disse. Tábata tinha braços fortes e sua aparência não era nada frágil, mas quando ela ajeitou os cabelos a opinião do repórter mudou. Um pequeno corte, bem recente, sobre a sobrancelha mostrava que ela sofria nas mãos de alguém.

Mário tentou não falar sobre aquilo. Se ofereceu para pagar uma bebida para ela, mas Tábata não aceitou. Não aceitava favores de estranhos. “Meu nome é Mário. Eu sou jornalista. E nunca estive nessa rua antes.” Ainda assim ela não aceitou a bebida, mas brindaram juntos. O maço ficou sobre o balcão e alternadamente eles puxavam cigarros e acendiam. Tentaram falar sobre banalidades, mas o corte no rosto da ruiva realmente perturbava o repórter.

“Posso perguntar o que houve, Tábata?” Ela fugiu com os olhos e voltou a esconder o corte sob os cabelos encaracolados. “Não foi nada, eu...”, ela olhava para todos os lados, como se tentasse identificar quem ainda estava no bar àquela hora. Como se tentasse tomar fôlego para criar coragem, Tábata segurou forte as mãos de Mário. Mas quando parecia que ia começar a falar, um homem surgiu à porta.

Como já havia amanhecido, tudo que o repórter viu do sujeito foi a silhueta. O homem parecia ter cerca de dois metros, não tinha cabelo e o corpo era muito quadrado. Um leve tapa daquela sombra humana já seria capaz de abrir um corte em Tábata.

Nervosa, a garota acabou derrubando a bebida que estava em suas mãos. Foi apenas um segundo, mas tempo suficiente para que o sujeito quadrado sumisse da porta. Enquanto Mário buscava uma toalha para secar Tábata, ela correu para fora do bar, com Mário logo atrás dela.

Seguiram pela Rua do Meio em direção à Nossa Senhora de Copacabana. Enquanto corriam, os letreiros iam apagando e as portas dos estabelecimentos se fechavam. As folhas das amendoeiras, que antes eram bem verdes, caíam amareladas. Quando o repórter chegou na esquina, não conseguia dizer para qual direção Tábata havia ido e não via a jovem em lugar nenhum.

Parado na via principal do bairro, ele buscava nos bolsos seu maço de Yellows, mas logo lembrou que os cigarros haviam ficado sobre o balcão do bar. Foi então que virou-se para a Rua do Meio e ela já não estava mais lá. Via apenas a agência dos Correios que sempre estivera ali.

Mário não sabia exatamente o que se passara nas últimas horas, mas precisava descobrir com urgência quem era Tábata. E o que havia acontecido com ela. E, principalmente, como voltar para a Rua do Meio.

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