terça-feira, 23 de outubro de 2012

A rua do meio – O livreiro e o livro (2 de 5)



Foram quinze longos dias. Mário aproveitou que tinha férias vencidas no trabalho e passou quinze dias de pé. Quinze dias dando voltas no quarteirão desenhado pelas ruas Siqueira Campos, Barata Ribeiro, Hilário de Gouveia e pela avenida Nossa Senhora de Copacabana. Quinze dias esperando que milagrosamente a Rua do Meio voltasse a aparecer, com seus bares e restaurantes, com sua banca de jornais e suas amendoeiras. E com Tábata.

As pessoas que passavam pelas ruas do bairro, os camelôs e comerciantes daquela vizinhança, já conheciam bem o repórter que tantas vezes se aproximou para perguntar se alguém conhecia a Rua do Meio. Se alguém sabia como chegar lá. De pé, na Barata Ribeiro, no local onde ele viu a rua que não existia pela primeira vez, Mário era motivo de piadas.

Quando os quinze dias a que Mário tinha direito se esgotaram ele foi obrigado a voltar ao trabalho. Munido das ferramentas comuns ao ofício de qualquer jornalista (papel, caneta, internet, telefone e curiosidade), ele pesquisou tanto quanto pode. Procurou políticos, médiuns, professores e pais de santo. Até cartógrafos ele buscou em busca de uma resposta. Ninguém jamais ouvira falar da tal Rua do Meio.

Toda noite, ao voltar para casa, ele ia até o lugar onde deveria estar a rua em que ele conheceu a bela Tábata, mas achava apenas lojas fechadas e prédios gradeados. Talvez fosse justamente o que ele temia: um delírio. Mas as memórias eram vivas demais para que fosse apenas uma loucura.

Alguns meses se passaram. Mário ainda pensava com frequência no que havia ocorrido, mas não estava mais determinado a buscar a rua. Foi então que voltou a acontecer. Saindo de um restaurante na esquina da Atlântica com a Constante Ramos, o repórter percebeu algo estranho. Uma rua que seguia da Constante até a Santa Clara, separada da Domingos Ferreira por poucos metros. Estava lá a Rua do Meio.

Muito mais comprida do que da última vez e com muitas diferenças, a Rua do Meio ainda mantinha a mesma aura. Novamente, todo o comércio estava aberto e muitas pessoas andavam pela rua, mas era impressionante como o número de lojas havia aumentado.

A primeira coisa que Mário fez ao entrar na rua foi buscar a banca de jornais, aquela mesma em que ele pedira informações da primeira vez. Agora, comprou apenas seu maço de Yellows e voltou para a rua. Andou um pouco, tentando achar Tábata ou o bar onde se conheceram, mas não havia sinal de nenhum dos dois. Preferiu então explorar uma livraria.

A tal livraria parecia mais um sebo. Havia pilhas e mais pilhas de livros usados e nenhuma identificação de seção, autor ou estilo. Em um canto, algumas poltronas indicavam que os clientes poderiam ler as obras no próprio local. De trás de uma enorme escrivaninha, um senhor muito pequeno com os cabelos muito brancos fazia anotações em fichas pautadas.

“Boa tarde, senhor”, interrompeu Mário. “Com licença. Estou procurando uma mulher.” O velho riu e tossiu um pouco. “Não tem nenhuma mulher aqui. Só um velho livreiro e muitos livros. Se quiser algo, me peça. Ou vá embora”, disse o velho.

O jornalista andou pelos corredores da livraria e folheou muitos exemplares. Nada que ele conhecesse. Nunca havia lido nenhum daqueles livros, nunca ouvira falar de nenhum dos autores. Preferiu pedir ajuda ao velho.

“Queria uma ajuda, mas não sei nem como alguém poderia me ajudar. Essa é a Rua do Meio, certo?”, Mário sentia que seria expulso do lugar. O velho livreiro saltou de sua cadeira e disse já saber do que o repórter precisava. Subiu em uma pequena pilha de livros, e de lá para uma pilha maior, até conseguir alcançar um exemplar de capa marrom. O livro estava totalmente destruído pelo tempo e as páginas pareciam que iam se soltar a qualquer momento.

Mário perguntou se deveria ler o livro em uma das poltronas, mas o velho resmungou, afirmando que seria uma leitura cansativa e ele provavelmente precisaria dormir um pouco em algum momento. “Quanto é o livro então?”, disse o jornalista, sacando a carteira do bolso. O livreiro apenas o empurrou para fora da loja e fechou a porta. O repórter temia deixar a rua e só voltar a achá-la meses depois, mas não via nenhuma solução melhor do que ler aquele livro.

Em casa, no Bairro Peixoto, Mário deitou-se no sofá para devorar aquelas páginas velhas. O livro estava todo escrito à mão, com uma caligrafia difícil de compreender. Mas foi só insistir um pouco que a leitura fluiu. A obra chamava-se “Rua do Meio – Mapas e indicações”. Não havia, contudo, qualquer mapa, apenas palavras e mais palavras.

Foram praticamente dois dias lendo o livro sem parar para comer, beber água ou usar o banheiro. E quanto mais Mário avançava nas páginas, mais ele tinha certeza que não estava compreendendo nada. E tal e qual o velho livreiro havia dito, assim que a última sentença foi concluída, o jornalista sentiu um sono incontrolável e desmaiou no sofá.

Sonhou. No sonho, Tábata estava sentada no sofá junto com ele. Seus cabelos estavam mais alaranjados, os olhos brilhavam como neon, as sardas se uniam como constelações. Ela usava um vestido verde que desenhava seu corpo com perfeição e quando falava sua voz não saía, mas era possível ouvir um canto marinho correndo por toda a sala. Tábata então se levantava, agarrava Mário pela mão e o carregava até a saída do edifício. Em frente ao prédio, havia um imenso paredão, que não terminava em nenhuma das direções. Os tijolos se seguiam eternamente para a direita, para a esquerda e para cima. Tábata, então, largava a mão de Mário e corria em direção ao paredão, até desaparecer, mas o jornalista permanecia estático. Num estalo, ela voltava a aparecer atrás dele e cobria seus olhos com as mãos. Em seguida ela sussurrava outra canção marinha em seus ouvidos e quando tirava as mãos da frente dos olhos, lá estava a Rua do Meio. E Mário acordou.

O sonho havia durado menos de um minuto, tempo suficiente para que ele se sentisse revigorado. Trocou rápido de roupa e correu para fora de casa. Bem em frente ao seu prédio estava a Rua do Meio, que se desenrolava imensa até a praia.

Desta vez, a rua parecia completa. Estava lá a livraria, mas também estava o bar. A banca de jornais continuava próxima à esquina, e todo aquele povo ainda perambulava pela rua, jogando conversa fora. Mário foi instintivamente procurar o livreiro, para agradecê-lo e devolver o exemplar, na esperança de que ele pudesse ajudar outra pessoa. Quando esticou a mão para entregar o livro, todas as páginas se soltaram. E enquanto o jornalista ajudava o velho a catar tudo, uma página diferente chamou sua atenção. Era uma página amarela, de lista telefônica. E nela, uma linha estava sublinhada em vermelho.

“T. 323 – Rua do Meio, terceira casa, sobrado”

Era Tábata, só podia ser. “323. O que é 323?”, perguntou ao livreiro. Era o telefone, segundo ele. Apenas três algarismos. Mário sacou seu celular, mas a ligação não completou. Foi então que ele entendeu. Pediu uma moeda para o velho, correu até um orelhão da Rua do Meio e de lá ligou. O telefone chamou três vezes até que alguém atendesse. A voz era aquela mesma com que ela sonhara, aquela que se confundia com um canto marinho, com uma sereia. “Achei que você não fosse ligar”, disse Tábata.

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