
- Consultório da Doutora Carolina.
- Bom dia.
- Bom dia, Paco.
Zefa olhou no relógio. Nove horas, como de costume. Todos os dias, verão ou inverno, chovendo ou fazendo sol, ela recebia a mesma ligação. Há três anos. Um homem chamado Paco ligava, dizia “bom dia”, aguardava a resposta e desligava. Nas primeiras vezes, ela chegou a achar estranho.
- Consultório da Doutora Carolina.
- Bom dia – disse uma voz trêmula e um pouco rouca.
- Bom dia. Em que posso ajudar...?
O telefone já havia sido desligado. Zefa chegou a comentar com algumas pacientes a estranheza daquela ligação. O homem não se identificou, não disse o que queria, não pediu informação. Certamente, não seria engano. Ele não pediu desculpa, não disse que ligou para o número errado. Disse apenas “bom dia”.
No dia seguinte, nove em ponto, o telefone tocou novamente e, novamente, repetiu-se a cena. Lá pelo quinto dia, Zefa já supunha ser o estranho visitante.
- Consultório da Doutora Carolina.
- Bom dia.
- Antes de lhe responder, gostaria de saber o seu nome. Já que vamos nos cumprimentar toda manhã, quero saber para quem respondo.
O homem nada disse. Pelo telefone, Zefa ouvia apenas a respiração, um pouco impaciente. Sem saber ao certo o que fazer, ela apenas disse:
- Bom dia.
E o telefone foi desligado. Qual não foi sua surpresa, quando, na segunda-feira, seu interlocutor se apresentou.
- Consultoria da Doutora Carolina.
- Bom dia.
- Bom dia.
- Meu nome é Paco.
- Prazer, Paco. Eu sou a Zefa.
Assim começou esta estranha relação. Nunca conversaram, não sabiam nada um do outro. A outra única vez em que trocaram mais do que a saudação matutina foi quando Zefa lhe deu seu telefone de casa.
- Paco, não desligue. Vou te passar o meu número pessoal. É que eu só trabalho aqui de segunda a sexta-feira. Você pode querer me ligar no final de semana também.
Dito e feito. No sábado seguinte, Paco ligou para a casa da recepcionista aguardando seu tradicional “bom dia”.
Para paco, a história começou muito tempo antes. Na verdade, assim que ele nasceu. Sua mãe lhe acordava todos os dias com um beijo na testa e um “bom dia” sincero, que lhe alegrava muito além da simples manhã. Nunca precisou de um “boa tarde” ou “boa noite”. O “bom dia” já era completo.
Quando fez vinte e cinco anos, sua mãe faleceu. Foi difícil para Paco, mas ele se adaptou a aprendeu a viver sem a progenitora. Afinal, já estava casado e tinha a esposa para, às nove da manhã, lhe desejar um “bom dia”. Foram bons os anos de matrimônio, mas a mão do destino lhe levou a mulher, largando-o sozinho, sem filhos, sem amigos, sem “bom dia”. Foi nessa época que as ligações começaram. Paco escolheu um número aleatoriamente:
- Alô?
- Bom dia.
- Quer falar com quem?
E ele desligava. Por dias e dias insistiu. Semanas e meses se passaram sem que ele conseguisse de alguém a saudação que tanto aguardava. Havia sempre um “quer falar com quem”, “o que deseja”, “pois não”, outro “alô”. Isso quando não ganhava um palavrão ou batiam o telefone no gancho. Foi escolhendo os números a esmo até que ouviu, do outro lado:
- É o cara do “bom dia” de novo? Por que é que volta e meia você insiste em ligar para mim?
Neste dia, paco decidiu fazer uma lista dos telefones que ligava. Por mais que tentasse, seu esforço era em vão. Pareciam todos hostis ao seu cumprimento. Todos ressabiados, com medo de uma brincadeira, de um trote. Suas manhãs foram tormentos até que ouviu as palavras mágicas:
- Consultório da Doutora Carolina.
Paco já estava sem esperanças. Talvez o mundo fosse um lugar inóspito para um adicto em “bom dia” como ele. Decidiu: se esta moça não responder, eu não insisto mais.
- Bom dia.
O coração gelou por um segundo. Apesar de ter decidido que poria fim aos telefonemas, ainda não sabia qual seria seu destino. Apenas deixaria de ligar ou encerraria todas as suas atividades?
- Bom dia. Em que posso ajudar...?
Em nada.
Já havia ajudado o bastante.
Alívio.
Paco voltou a ligar no dia seguinte e no outro e no outro. Pela primeira vez, continuava a receber respostas. Pela primeira vez, tinha bons dias. Ele chegou a ficar nervoso quando a recepcionista perguntou seu nome. Era uma sexta-feira. Paco passou o final de semana nervoso. Deveria responder? Ele achava melhor não. Não queria ir além daquilo. E se ela deixar de falar? Então, era melhor dizer o nome. Após as devidas apresentações, Paco sentiu que voltava a ter um relacionamento, ainda que virtual.
Para Zefa, as ligações de Paco já faziam parte de seu cotidiano. Tanto que, numa terça-feira, quando a paciente das nove e meia chegou para a consulta e o telefona ainda não havia tocado, ela se preocupou. Na certa, Paco teria dormido até mais tarde. Que nada. Ela esperou a ligação o dia todo. No dia seguinte, a mesma coisa.
No terceiro dia, Zefa arregaçou as mangas e foi à luta. Precisava, a qualquer custo, descobrir o que estava se passando com Paco. Estava doente? Estava viajando? Havia morrido? Havia se matado? Ela arrependeu-se de não ter perguntado o sobrenome dele, ou onde ele morava, ou qual era seu telefone. Tudo que ela sabia era que ele ligava às nove, sem falta, sem atraso.
A recepcionista sacou seu caderninho de telefones e ligou para uma cliente da Doutora Carolina que trabalhava na companhia telefônica. Queria a qualquer custo saber o paradeiro de Paco. A moça titubeou, disse que era ilegal, antiético, que poderiam demiti-la se descobrissem, mas acabou cedendo. Deu o nome completo de Paco, o endereço de seu apartamento, o número de seu telefone. Zefa começou tentando ligar para ele, mas não conseguiu resposta. Após o expediente, foi à casa dele, mas ninguém atendeu à campainha. Com seu nome, visitou hospitais e o instituto médico legal. Ninguém soube dizer o que aconteceu. Zefa se preocupou, como se ele fosse um amigo verdadeiro ou um membro da família. Chegou a perder duas noites em claro, só pensando nas possibilidades. Nunca chegou à uma conclusão.
Muito tempo passou, cerca de um ano, e Zefa acabou enterrando em sua memória as chamadas de Paco. Evitava pensar no amigo invisível, mas quando o relógio avisava que chegaram as nove horas, seu coração batia apertado. Num desses dias, ela estava sentada em sua mesa, na recepção do consultório. O telefone tocou, na exata hora cheia e ela atendeu cheia de esperanças.
- Alô? Consultoria da Doutora Carolina. Zefa falando.
Uma voz de mulher respondeu:
- Desculpa, querida. Foi engano.
Ela baixou a cabeça e fechou os olhos. Quase um ano depois, deixou-se contagiar por um telefonema, que poderia ser de qualquer um. Enquanto lamentava, a maçaneta da porta girou, deixando entrar um senhor de uns sessenta anos. Com sua bengala em punho, ele se aproximou vagarosamente.
- Pois não, senhor? Em que posso ajuda-lo?
- Bom dia.
Zefa reconheceu imediatamente a voz rouca a trêmula.
- Paco?
- Sou eu, Zefa.
- Nossa... Já faz um ano. O que aconteceu com você?
- Muita coisa, Zefa.
- Nossa... Eu estou tão nervosa. Cheguei a pensar que você tinha morrido.
- Eu estou bem, Zefa.
- Você precisa me contar o que aconteceu. Tudo. Tudo!
- Só se você me permitir lhe pagar uma xícara de café.
- Claro, Paco. Eu saiu às quatro da tarde.
- Eu passo para lhe buscar.
Paco se afastou, caminhando para a porta. Zefa sentiu um grande alívio tomar conta de seu corpo. E uma ansiedade louca de que as quatro horas chegasse. Ao se dar conta de um detalhe, ela levantou correndo e foi até o corredor do edifício. Paco já estava entrando no elevador.
- Paco, Paco – ela gritou.
- O que foi, Zefa?
- Eu já ia me esquecendo... Bom dia!
- Bom dia, Zefa. E obrigado.