quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Biografia – O fantasma da Lapa (6 de 6)


O português, com um balde na mão, jogava água no chão enquanto entoava um fado. Como ocorria com qualquer outro fado, Bruno não conseguia assimilar que a canção era no sue idioma. Os ponteiros do grande relógio sobre a porta da cozinha indicavam que passava das duas da manhã, mas um cliente sobrevivia no bar vazio. O ex-bancário e atual subcelebridade avançou pelo estabelecimento, esquivando-se de mesas cobertas por cadeiras de cabeça para baixo e desviando das pequenas marolas de água ensaboada que se espalhavam pelo chão desgastado pelos passos de tantos bêbados.

O garçom avisou que a cozinha já estava fechada e que o máximo que ele poderia oferecer era um chope, mas apenas um. Obrigado, mas não, obrigado. O motivo da visita era outro. Bruno estava ali em uma missão particular.

Ricardo Cruz, mais conhecido como Giovana, demorou a perceber que Bruno estava ali. O escritor terminava de entornar uma tulipa, cujo líquido estava tão quente que aranhou sua garganta. Rabiscava algumas ideias em um guardanapo.

– Bar frequentado por escritores não precisa de muita coisa – disse Giovana, quando viu que o antigo colega estava puxando uma cadeira para se sentar ao seu lado. – Não precisa de comida refinada ou de banheiro limpo. Ah, e o chope pode ser aguado, como essa porcaria que eu acabei de beber. Mas o bar precisa ter guardanapos grossos, para o caso de alguém ter uma ideia genial e não dispor de papel à mão.

O clima entre os dois era bem diferente da última vez em que se encontraram. Por parte de Giovana, o rancor havia sumido. Já Bruno não tinha mais suas dúvidas quanto ao motivo de ter virado alvo. Estavam até cordiais.

– Andei vendo algumas notícias sobre você recentemente. Colunas de fofoca. Que merda de vida a sua, hein?
Bruno riu. Merda de vida mesmo.
– Veio aqui por causa do Pestana?
– O que tem o Pestana?
– O velho morreu. Ontem. Ficou uma semana internado com pneumonia e empacotou.

Bruno fez sinal para o português e pediu dois chopes. O garçom disse que já tinha avisado que só daria um, mas Giovana resmungou e o homem trouxe duas tulipas. Como se fossem amigos, Bruno e Ricardo brindaram à vida de um velho que nem conheciam direito, mas que de certa forma os unia mais do que a amizade que tiveram no colégio.

– Eu te entendo e te respeito, Ricardo. De verdade. Você me prejudicou pra valer, mas teve seus motivos e eu não vou questioná-los. Mas acho que agora está na hora de resolvermos isso.
– Você vai me processar ou prefere me dar um soco? Eu se fosse você optaria pelo soco. Não tenho um tostão.
– E não tem mesmo – gritou o português – esse viadinho me deve uma fortuna.
– Tive uma ideia muito melhor – afirmou Bruno. – Quero te contratar.
– Contratar? Para quê?
– Ora, para escrever um livro. Minha biografia.
– Quer que eu seja seu ghost writer?
– Melhor que isso. Quero que Ricardo Cruz assine o livro. Nada de Sandro Pestana ou Giovana. Dessa vez, quero que seja o seu nome que estampe a capa.
– Eu já fiz uma pesquisa sobre a sua vida e já escrevi uma biografia sua. O que você espera com esse livro?
– Que você manipule as informações. Distorça os fatos. Faça tudo o que você não fez no outro livro.
– E o que eu ganharia com isso?
– Muito simples. Coloque Ricardo Cruz como um personagem relevante do livro. E distorça os fatos a seu favor também.

Giovana se interessou. Os dois foram para o apartamento do escritor onde, com um exemplar de “Não fui sincero com você” em mãos discutiram que pontos deveriam ser alterados e quais pontos permaneceriam iguais. Ao recontar a história, Giovana fez questão de destacar o quanto havia sido um bom e leal amigo e apagou os momentos vexatórios de sua história. Já da parte de Bruno, o principal foi omitir alguns fatos. E florear outros tantos.

Levou um mês mais ou menos até que o livro a quatro mãos fosse concluído. Giovana visitou diversas editoras até que encontrou uma que se interessou pela obra. “A verdadeira vida de Bruno Castro” teve grande tiragem e alto investimento em distribuição, mas não atraiu atenção semelhante a seu predecessor. O livro que levava a foto do biografado na capa acabou encalhando nas livrarias.

Atormentado pelo fracasso de seu plano, Bruno teve a ideia que finalmente levaria sucesso para a obra. Contratou um advogado que conseguiu uma liminar para proibir a venda dos livros. Com isso, a mídia voltou suas atenções para o caso. A liminar foi devidamente derrubada e lá estava “A verdadeira vida de Bruno Castro” figurando entre os livros mais vendidos em todos os principais rankings.

Lá estava Bruno novamente atacando de DJ e almoçando no Leblon, enquanto Ricardo foi chamado para divulgar seu trabalho em alguns programas de TV. Se encontravam secretamente nas madrugadas de terça-feira no bar da Lapa quando as portas já estavam fechadas. Brindavam ao sucesso da empreitada e a cada semana se perdoavam mais um pouco pelos erros do passado. Giovana já estava escrevendo um novo livro, um romance, que finalmente mostraria ao mundo seu estilo de literatura e Bruno festejava a abertura de sua empresa, uma fábrica de roupas e calçados, que finalmente o afastaria dos subempregos que sempre teve.

Em um desses encontros, os dois acertaram o último passo do plano de Bruno. Giovana pegou um exemplar e entregou pessoalmente para Camila. Quando ela abriu o livro, viu a dedicatória assinada pelo autor na folha de rosto. “Você já leu uma versão dos fatos, talvez seja a hora de ler uma nova versão”, diziam os garranchos de Ricardo.

Três dias se passaram. Camila não se deu ao trabalho de chegar ao final do livro. Para ela, bastou chegar a um episódio específico, a noite do primeiro beijo. Diferente do livro assinado por Sandro Pestana, “A verdadeira vida de Bruno Castro” dizia que o protagonista havia, sim, sido apaixonado por Suzana, mas que sua intenção naquele encontro era conquistar o coração de Camila. A ex-namorada de Bruno chegou a checar a informação com sua nemesis, que garantiu que Bruno não se insinuou para ela naquela noite.

Camila deixou o orgulho de lado e ligou para Bruno. Combinaram de jantar no dia seguinte e imediatamente reataram o namoro. Ela só impôs duas condições. A primeira era que ele deveria deixar de lado os processos (que ela não sabia serem falsos) contra o autor do livro. A outra, e mais importante, era Bruno garantir que os dois jamais iriam a um talk show falar sobre suas vidas privadas. Ele já estava cansado da fama, não houve motivo para recusar.

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